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Maternidade real: o puerpério livre de idealização

Cada vez mais mulheres usam as redes sociais para expor aspectos difíceis do puerpério que não costumavam aparecer no editado mundo virtual

Por TEXTO Sílvia Lisboa e Valentina Bressan ILUSTRAÇÕES Amanda Greavette
13 Maio 2022, 08h15

Na foto postada no Instagram para mais de 300 mil seguidores, Andressa Reis (@andressareiis) aparece com a calcinha arriada, sentada no vaso, segurando Caetano, o caçula. Seu braço está apoiado no balcão da pia e ela está de olhos fechados. O semblante revela exaustão. Ao lado, Maria Antônia, hoje com quatro anos, toma banho. Essa não é uma imagem da maternidade que costuma ser retratada em capas de revistas e editoriais, mas é uma cena cada vez mais comum nas redes sociais.

No texto que acompanha a foto, feita em maio de 2020, auge da pandemia de Covid-19, Andressa, 36 anos, esclarece seu objetivo: “retratar a maternidade que eu vivo”. “Recebo comentários dizendo que estou assustando futuras mães, mas, para mim, faz muito mais sentido ter um pouco de noção do que nos espera ao invés de criar uma fantasia, que vai trazer frustração”, esclarece para CLAUDIA.

O movimento identificado pelas hashtags #maternidadereal #maternidadesemfiltro vem crescendo em contraponto à idealização desse período particularmente sensível na vida das mulheres. Cansadas de ver apenas um lado exposto no feed, com modelos, artistas e influencers exibindo corpos perfeitos com recém-nascidos no colo, influenciadoras como Andressa começaram a contar e a mostrar um dos outros lados dessa complexa história. “A maternidade carrega esse estigma de que a mãe precisa ser perfeita. Essa ideia do ‘glamour’ foi levada para o Instagram, num movimento de mostrar apenas a parte maravilhosa”, diz. “Mesmo para aquelas mulheres com privilégios, é muito difícil ter uma maternidade totalmente perfeita. E, quem não tinha oportunidade de fazer isso, se sentia inadequada e insuficiente”, comenta a criadora de conteúdo e podcaster.

Diversas pesquisas em diferentes partes do mundo mostraram essa mesma sensação: o uso de redes sociais pelas mulheres grávidas e no pós-parto piora sua autoestima e sustenta sentimentos ruins. Um dos mais recentes levantamentos, feito pela Universidade de Leipzig, na Alemanha, analisou respostas de 252 mulheres grávidas e nas 26 semanas após o parto. Identificou-se uma associação direta entre o uso das redes sociais e insatisfação com o próprio corpo. “Nestes casos, ocorre uma exacerbação da ansiedade por dois motivos: criação de expectativas irrealistas – com a maternidade sendo apresentada como uma condição apenas maravilhosa – e o excesso de informação massificada, que não leva em conta as particularidades das famílias”, explica a psicóloga Adriane Arteche, professora de pós-graduação da PUC-RS.

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“O que mais atendo na clínica são mães no puerpério que têm que lidar com o luto de todos os ideais que ela criou. Mas ela não os criou sozinha”

Paula Leal, psicanalista e obstetriz

Por outro lado, as pesquisas também mostram que as redes sociais podem assumir um papel positivo amparado por postagens como a de Andressa Reis, que geram uma identificação instantânea com mães que precisam amamentar um filho e dar banho em outro ao mesmo tempo. “É extremamente importante tornar a vivência algo ajustado à realidade. Possibilitar às mães que expressem seus sentimentos, sejam eles quais forem, e se sintam acolhidas, é muito positivo e benéfico”, diz Adriane.

Vale dizer: a idealização faz parte da maternidade. Não é algo criado pelas redes sociais, mas uma condição comum ao período. “Sempre idealizamos o melhor e isso é necessário porque maternidade é um grande investimento”, resume a professora da PUC-RS. O problema começa quando a idealização se torna inflexível, o que pode ser fomentado pelos perfis que omitem os perrengues do período. “A fonte da ansiedade é uma ideia completamente desconectada de ajuste à realidade”, diz Adriane.

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A psicanalista e obstetriz Paula Leal, do Coletivo Nascer, concorda. “O que mais atendo na clínica são mães no puerpério que têm que lidar com o luto de todos os ideais que ela criou. Mas ela não os criou sozinha, eles são fomentados”, compartilha.

Esta idealização da maternidade, promovida dentro e fora das redes sociais, coloca as mulheres em um papel pré-definido de “mãe perfeita”, que sabe sempre o que fazer e dá conta de todas as demandas. “No meio psicanalítico, dizemos haver uma maternidade em crise”, diz Paula. Enquanto passam por transformações psíquicas intensas, as mulheres também têm dúvidas universais que envolvem a responsabilidade de colocar um filho no mundo. Essas preocupações são coletivas, mas a maior parte do trabalho acaba sendo individual, o da mãe. “Poderíamos estar falando de parentalidade, mas como esse trabalho acaba recaindo majoritariamente sobre a figura única da mãe, essa carga é potencializada com cobranças e a falta de valorização desse papel”, emenda a especialista.

Puerpério
Retratar a maternidade real e os desafios do puerpério ajuda mães a se conectarem. (Amanda Greavette/CLAUDIA)

Esse é o sentimento que une outras mães às postagens da #maternidadereal. “Falar sobre as inquietudes e vulnerabilidades conectou outras mães, que passaram a se reconhecer nesse lugar que não dar conta de tudo não é uma falha, mas um fato”, conta Andressa Reis. As postagens servem também para chamar a atenção de pais e familiares que, muitas vezes, não percebem as dificuldades do período. “Trago essas questões para os vídeos para gerar reflexão e também para denunciar essas opressões. A mulher pode encaminhar o vídeo para o companheiro, e isso acende uma luz”, explica ela.

Em um de seus vídeos, visualizado mais de 12 milhões de vezes no Instagram, Andressa assiste a um filme com o marido no sofá. Enquanto ele parece estar relaxando, ela pensa na pesada “carga mental”. “Estamos imersos em uma sociedade que cobra as mulheres para desempenhar um papel que elas não conseguem, é humanamente impossível dar conta de tudo”, desabafa. Não à toa várias postagens da #maternidadesemfiltro carregam também os termos #exaustao e #cargamental. Segundo Andressa, é preciso que as mulheres comecem a ver com novas lentes o que elas fazem e reconhecer isso como trabalho. “Esse movimento influencia até na autoestima da mulher”, diz. E, posteriormente, pode auxiliar no desenvolvimento de políticas públicas tal qual na Argentina, que passou a reconhecer o cuidado materno como tempo de serviço para a aposentadoria.

As redes sociais também serviram de fonte de informação e acolhimento para a podcaster e criadora de conteúdo Bela Reis (@belareis), mãe de Martin, de 1 ano. Ela foi a primeira do seu círculo mais próximo de amigas a engravidar e viveu a gestação durante a pandemia. “Foi muito importante seguir mulheres que falavam da realidade da gravidez, do puerpério, do primeiro ano da criança. A maternidade é um voo muito solitário e, nesse quesito do preparo e da identificação emocional com outras mulheres, as redes foram tudo que eu tive”, conta.

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A partir das experiências compartilhadas de outras mães, Bela se preparou para o puerpério ser o “pior momento da vida”. “Foi bem melhor que esperava, mas, nas piores horas, eu sabia que aquilo era algo passageiro, por já ter ouvido e lido depoimentos. Sabia que aquilo era o hormônio atuando, que aquela insegurança e medo iam passar”, relata.

“O acolhimento se dá por entender que não há uma única forma de ser mãe, da mesma maneira que filhos e filhas não são iguais”

Bruna Olliveira, influenciadora

Embora os relatos mais verdadeiros do cotidiano de mães estejam comuns, eles ainda são recortes de realidades. Todos fazem escolhas do que compartilhar ou não em seus perfis, e mesmo a #maternidadesemfiltro envolve seleções e edições prévias.

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A terapeuta de orientação analítica Luísa Pesce, que pesquisa mães influenciadoras digitais, lembra que as redes tendem a parcializar os fenômenos complexos: ou a maternidade é incrível ou exaustiva, quando, na verdade, é ambivalente. “Ela tem aspectos dolorosos e lindos ao mesmo tempo. Só que o retrato que pode ficar é parcial”, observa. A psicanalista Paula Leal acrescenta: “A maternidade é múltipla. O problema é quando um determinado discurso toma a frente”.

Mãe da bebê Cecília, Bruna Olliveira (@brunaolliveira), 30 anos, questiona até o fato do uso do termo “real” nas postagens. “Existem maternidades que não sejam reais? Não podemos de forma nenhuma afirmar, como espectadores, que determinadas maternidades não sejam reais. Por vezes, essa taxação do que é ou não ‘real’ é um problema. Dá a entender que a ‘suposta’ realidade é sinônimo de sofrimento, perrengue”, reflete. A influenciadora, que viralizou contando sobre como teve Cecília no banco de trás do carro da família a caminho do hospital, defende ser preciso acolher todas as mães: “É lógico que existem pessoas cujo recorte apresentado nas redes sociais é uma parte muito pequena daquele dia a dia, mas não deixa de ser real. O acolhimento se dá por entender que não existe algo mais real que o outro. Não há uma única forma de ser mãe, da mesma maneira que filhos e filhas não são iguais”.

Uma das postagens de Bela Reis resume essa multiplicidade constante: “​​É tudo lindo, é também caos (…) Cada bebê que nasce é uma maternidade diferente que começa. Que a gente saiba acolher todas elas”.

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Neste movimento transparente e inclusivo, o que mais vale são a variedade de discursos e os modos de ser e viver a maternidade. Se essa profusão ganha corpo, nem a parte boa, nem a ruim vão se sobressair, observa a psicanalista Paula Leal. Agora, resta migrar os encontros do virtual para o presencial. “É importante valorizar a vivência ao vivo”, provoca Paula. O convite está lançado.

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