Experiência de vida: conheça a história da jornalista que foi monja por 10 dias
Veja como pode ser uma experiência em um retiro de silêncio, como é praticar 11 horas de meditação diárias, se alimentar frugalmente e viver sob o risco de transgredir compromissos, como o de não matar um mosquito.
No retiro de meditação vipassana as meditações diárias duram 11 horas.
Foto: Getty Images
A jornalista Ana Rita Martins sempre teve simpatia pela carreira monástica. Isso a levou, em 2011, a fazer seu primeiro retiro de meditação vipassana. Durante 10 dias, os participantes viviam como monges: sem se comunicar (por meio de palavras ou olhares), meditando por cerca de 11 horas diárias e fazendo apenas três refeições simples. Na época, Ana havia acabado de sair de uma empresa na qual trabalhara durante quatro anos intensos como repórter. Queria descobrir, por meio do silêncio e da meditação, como seria sem a correria insana e as pressões do mercado de trabalho. Queria vislumbrar também como teria sido a minha vida se eu tivesse seguido o caminho dessa espiritualidade.
Veja a reportagem na íntegra:
Como da outra vez, assim que cheguei ao retiro na cidade de Monteiro Lobato, interior paulista, tive de me apartar de tudo que pudesse me distrair. Deixei aparelho de MP3, caderno, caneta, livros e celular dentro de uma sacolinha com a administração. Durante os dez dias seguintes, eu deveria esquecer o mundo exterior. E me entregar à rotina de acordar às 4 horas, meditar durante dez horas e 45 minutos, ouvir uma palestra durante uma hora e 15 minutos e, nas seis horas restantes do dia, comer, dormir e descansar.
Não parecia fácil, mas também nem tão difícil, afinal, eu já era budista e meditava. Também adorava ficar em silêncio. Tinha a impressão de que viveria, no retiro, os momentos mais relaxantes da minha vida. Estava errada.
Na sala de meditação, as mulheres ficavam de um lado e os homens de outro. Era o único lugar em que podíamos ver alguém do sexo oposto, pois havia alojamentos e refeitórios separados. A segregação, disse um voluntário do retiro, era para evitar qualquer tipo de distração. Coerentemente, durante a meditação, uma professora ficava à frente das alunas, e um professor, à frente dos alunos. Eles não falavam quase nada. Apenas apertavam o play num aparelho de som para que S.N. Goenka, um líder espiritual birmanês, desse instruções sobre como deveríamos meditar, com base em ensinamentos de Sidarta Gautama, o Buda. No início, ouvir as instruções em áudio foi um pouco estranho. Mas a voz grave do Goenka era tão poderosa e carismática que logo deixei de estranhar.
No primeiro dia, ele pediu que apenas observássemos a nossa respiração, sem interferirmos no ritmo natural. Essa meditação, chamada anapana, tinha o objetivo de acalmar a mente e desenvolver a concentração. “Observe o ar entrando e saindo das narinas”, o líder dizia. Parecia fácil, mas não era. Depois de alguns segundos observando a respiração, eu me pegava pensando em um milhão de coisas. Simplesmente me distraía e me esquecia dela. Os pensamentos, desordenados, um seguido do outro, me levavam para fatos do passado ou para hipóteses sobre o futuro. E impediam que eu me concentrasse. Essa dificuldade já era conhecida. Tinha sido assim no terceiro retiro que fiz, no ano passado. Agora, eu me sentia zangada, frustrada. Já não era mais uma iniciante, então porque tanta dificuldade? Goenka parecia ouvir meus pensamentos.
À noite, durante a palestra, explicava que a mente tem padrões de comportamento viciados e que sempre nos leva ou para o passado ou para o futuro. Observar a respiração seria uma estratégia para nos mantermos no presente, em conexão com o corpo e a alma, e para sairmos do domínio tirânico da mente. Eu precisava deixar o orgulho e a soberba de lado. Se as mesmas dificuldades dos retiros anteriores se repetiam, era porque eu precisava aprender com elas. O fato de eu ficar zangada e chateada quando a mente se distraía, fazia com que eu gerasse aversão e negatividade. Também foi explicado, durante as instruções de meditação, que devíamos aceitar a realidade como ela era. A mente havia divagado? Tudo bem. Eu deveria, assim que percebesse a distração, procurar me concentrar na respiração, sem alimentar sentimentos negativos. Gerar raiva, frustração, seria permanecer no padrão de comportamento usual, o de sempre reagir negativa ou positivamente às coisas. E a prática de anapana tinha como base apenas observar, sem reagir. De forma impassível, como um Buda. Equilibrada, como um monge.
Durante dez horas e 45 minutos por dia. Em alguns momentos, o desafio parecia maior do que eu. E eu tinha muita, muita vontade de fugir. As provações iam mais além. Carnívora convicta e mais fresca que um chef de cozinha em relação à comida, tive dificuldade com as refeições vegetarianas. No primeiro retiro que fiz, simplesmente não consegui almoçar. Tomava café da manhã e lanchava à tarde, mas como não havia descrição dos ingredientes utilizados nos refogados do almoço, não conseguia comê-los. No segundo retiro, em 2012, fui para trabalhar voluntariamente e tive acesso liberado à cozinha, o que foi um alívio.
No terceiro, me dei conta de que vencer a frescura com a comida fazia parte do processo. Eu não podia ser infantil como havia sido na primeira experiência. Não podia deixar que a aversão aos legumes e verduras que me davam de graça (o retiro é gratuito e sobrevive de doações) fizesse de mim uma pessoa ingrata. Fiz como os monges budistas, que aceitam o que lhes dão, ainda que não gostem. Foi um grande aprendizado.
Um deslize e a culpa
Para fortalecer a meditação, havia ainda outro pilar que deveríamos exercitar: o da sila, nome dado pelos budistas a uma boa conduta moral. Na própria inscrição para o retiro, feita por meio de um formulário online, eu havia me comprometido com cinco regras, cujo propósito era o de fortalecer a sila: não deveria me comunicar com outros participantes, roubar, mentir, usar intoxicantes, praticar qualquer tipo de atividade sexual nem matar sequer uma barata, mosquito e o que mais pudesse aparecer. Nada disso foi um problema até eu aniquilar, por impulso, um mosquito que me picou durante uma meditação. “Será que a professora viu? Será que a minha meditação vai enfraquecer por causa disso?” A mente queria me arrastar novamente para longe.
Queria que eu me preocupasse com o que os outros pensariam, que eu me concentrasse na culpa. Percebi o truque, respirei fundo, pedi perdão mentalmente ao mosquito e voltei a me concentrar. No quarto dia de retiro, fomos ensinados a praticar a meditação vipassana. A técnica consistia em dirigir a concentração para cada parte do corpo, prestando atenção às sensações que ali pudessem aparecer. Quanto mais meditava, mais sensações apareciam. Eu sentia coceira, peso, umidade, vibrações elétricas, uma infinidade de manifestações físicas. Nunca havia sentido tantas sensações em todo corpo antes de fazer o retiro. Era como se o meu organismo tivesse despertado. Ou como se, enfim, eu tivesse voltado para dentro de mim mesma, a ponto de conseguir captar realidades até então ignoradas.
Ao mesmo tempo, Goenka dizia que era preciso apenas observar, sem reagir às sensações agradáveis (desejando-as) ou às desagradáveis (repelindo-as). Isso foi particularmente complicado. Lembro que durante uma meditação no segundo retiro, senti todo o meu corpo se dissolver, como se eu fosse composta de uma massa de micropartículas. Foi uma experiência muito intensa, seguida por um sentimento de comunhão e paz com tudo o que me cercava. Sem perceber, passei a desejar que a sensação continuasse e deixei de observá-la de forma neutra. Quando percebi que caía na armadilha da reação, aceitei que havia me desviado do propósito e, sem gerar negatividade ou culpa pelo desejo, voltei a me concentrar e a observar as sensações. Essa luta se repetiu muitas vezes. Até hoje.
Sem raiva, em paz
Da mesma forma, foi difícil me manter neutra em relação às sensações desagradáveis. A partir do quinto dia de retiro, éramos instruídos a permanecermos imóveis durante três sessões de meditação específicas: das 8 às 9 horas, das 14 às 15 horas e das 18 às 19 horas. No meu primeiro retiro, mais precisamente no quinto e sexto dias, senti uma dor lancinante durante essas meditações. Minhas pernas pesavam, latejavam, o incômodo era crescente a ponto de eu sentir falta de ar e enjoo. Eu saía destruída dessas sessões, amaldiçoando o dia em que havia me inscrito no vipassana.
No sétimo dia, entretanto, segui os conselhos dados na palestra do dia anterior, e resolvi parar de alimentar mentalmente o meu sofrimento. Observei a dor. Aceitei a dor. Deixei-a crescer como queria, sem interferir. Ela ali reclamando e eu apenas observando, sem odiá-la, sem desejar que ela fosse embora. E, então, a dor desapareceu completamente. Ao final da meditação, meu corpo era como uma pluma, sem nenhum ponto de tensão. Fisicamente, para mim, não fazia o menor sentido uma dor tão forte sumir do nada. Fiquei assustada. Me dei conta de que coisas extraordinárias podiam acontecer se eu continuasse praticando o controle da mente.
Segundo os budistas, todas as vezes em que ansiamos, desejamos algo ou geramos sentimentos como raiva, frustração, negatividade, o corpo registra esse padrão de comportamento no nível físico, por meio de algum tipo de sensação, seja ela agradável ou desagradável. Apenas observar essas sensações, sem reagir, ou seja, praticar a meditação vipassana, seria uma forma de limpar essa carga energética. A técnica, desenvolvida por Sidarta Gautama, o Buda, há 2 500 anos, purificaria o corpo e a mente e abriria espaço para padrões de comportamento mais saudáveis.
Pessoalmente, acredito. Tanto que, em 2012, levei o Chico, meu marido, para fazer o retiro junto comigo. Voltamos novamente no ano passado porque percebemos que, de alguma forma, o que plantamos lá cresce na vida cotidiana. A experiência monástica, ainda que curta, é um belo encontro com o que somos, mas ainda não sabemos. Com aquilo que subsiste debaixo de todas as camadas, planos, medos. Ainda quero convencer o Chico a virarmos monges quando passarmos dos 60 anos. Até lá, a gente vai treinando nos próximos retiros.