Estar com amigas é estar em casa: A amizade como a grande revolução
Nossas amigas são quem nos dão contorno, e fazer uma revolução assim parece uma excelente ideia
Mariana Paula (39) e Letícia da Silva (40) são amigas desde que o jogo de basquete na escola as uniu. Entre momentos de proximidade e outros com mais distanciamento, elas compartilhavam tudo. Inclusive uma certeza sobre a vida adulta: nenhuma das duas queria ser mãe. Quando Pedro, de três meses, e Vinícius, de quatro anos, chegaram à vida delas no mesmo ano, em 2023, a certeza metamorfoseou. Agora, era de terem uma na outra um ambiente seguro para seguirem os fluxos da vida e mudarem, quantas vezes fosse preciso.
A psicanalista Ana Suy resume o sentimento de ter amigas como “estar em casa”. Ela conta que, na infância, a relação com as amigas é o que lança as meninas para fora do complexo de Édipo, do apaixonamento pela mãe. E este interesse por outras meninas vai fazendo com que as próprias personalidades das meninas se estabeleçam e por hora até se confundam.
Na nossa adolescência e juventude, marcadas pelas disputas amorosas em um mundo que parecia se restringir ao pátio da escola, fomos apresentadas ao mais perverso traço da cultura patriarcal: a disputa entre mulheres.
Em um tempo, vale lembrar, onde toda a perspectiva de futuro girava em torno da conquista do melhor par romântico – e essa opção se restringia a que ele fosse um homem.
Para a socióloga e documentarista Ingrid Gerolimich, o entendimento das amizades entre mulheres como um afeto fundamental é resultado de vários movimentos: a desobrigação do casamento, a possibilidade de escolha ou não pela maternidade e a desconstrução do ideal cristão de família, entre outros. Para ela, “a amizade entre mulheres é revolucionária e estratégica”. Mas, ainda bem, esse movimento tanto íntimo quanto coletivo não está restrito a uma fase da vida.
É possível – e desejável – fazer amigas já na fase adulta. Para Gilda Bandeira (81), a idade em que o encontro com Sônia Bonetti (86) aconteceu foi decisiva para que a amizade florescesse. Elas se conheceram aos “vinte e poucos”.
“Quando nos vimos, já tivemos certeza que éramos da mesma galera. Mesmo que os maridos mudassem, por exemplo, essa relação já era estabelecida, era nossa.” A amizade entre as duas se reinventou diversas vezes em cerca de 60 anos. A última foi quando se tornaram criadoras de conteúdo. Elas são as “Avós da Razão”.
A carreira de Jessica Oliveira da Mata (32) também teve a mão de uma amiga. Mas Gabriela Berri (36) só foi se tornar uma pessoa íntima depois desse empurrão. As duas se encontraram em um set para fotografias em momentos bem diferentes. Enquanto era a primeira sessão de Jessica como modelo, Gabriela já estava no mercado há uma década.
A empatia foi imediata e, na semana seguinte, a então novata já contava com o suporte da nova amiga para questões práticas de trabalho. “No mundo da moda existe muita competição, é verdade. As pessoas sempre se surpreendem quando descobrem que, sim, atuamos no mesmo mercado e com as mesmas marcas, mas ainda assim somos amigas e nos ajudamos”, conta Jessica.
A competitividade no ambiente profissional deu espaço à troca na vida de Cris Guterres (42). Ela é uma das fundadoras do grupo Herdeiras de Glória Maria, que reúne cerca de 60 jornalistas negras.
“Não podemos nos acostumar a ser a única, muito menos gostar de ser a única. Especialmente porque sabemos como somos fundamentais para uma transformação na sociedade”, afirma. Entre elas, além das trocas e indicações, existem grupos de mentoria em que quem entende mais sobre um assunto apoia as demais a se desenvolverem naquele tema.
Mas nem sempre os desafios a serem vencidos são profissionais. No caso de Iza Potter (40) e Jaqueline Scholemberg (30), não foram. Iza chegou em São Paulo (SP) aos 15 anos, vinda de Belém do Pará (PA), onde fazer a transição de gênero parecia impossível – se ainda hoje é, imagine há 25 anos. Ela foi morar em uma casa com 40 mulheres trans e travestis.
“Elas me deram outras perspectivas sobre o que poderia ser a minha vida”, conta ela. Muitas das pessoas que apresentaram a Iza essa nova perspectiva infelizmente não estão mais aqui. Mas há aquelas que seguem juntas, enfrentando também outros desafios. “Quando descobri o HIV e fiquei 40 dias internada, não sei o que teria acontecido se não fossem elas. Eu estou aqui por elas.”
O hospital também foi a casa de Jaque por 30 dias. Em junho de 2020 ela descobriu uma doença autoimune e perdeu os dois rins. Um ano e cinco meses de hemodiálise depois, em novembro de 2021 ela recebeu o transplante. “Durante todo esse tempo, as minhas melhores amigas nunca pareceram me ver como uma pessoa doente. Elas seguiam me mantendo informada sobre a vida delas, compartilhando comigo como elas me viam forte, como eu seguia sendo importante e eu mesma, mesmo diante de tudo.”
Lembra quando a Ana Suy disse que a nossa identidade está muito relacionada às nossas amigas e como elas nos veem? Pois é. Nas nossas vidas, há sempre alguém como a Gabriela, que revela talentos que nem a gente acreditava muito que tinha. Ou amigas como as da Jaque, que tentam fazer com que ela se veja como elas a veem.
A amizade entre mulheres não é apenas um tema. É o grande tema que vai nos acompanhar por toda a vida. E nós sabemos disso. No TEDx São Paulo de 2018, a antropóloga Mirian Goldenberg contou que, na pesquisa sobre envelhecimento que conduzia, a pergunta “quem vai cuidar de você na velhice?” era respondida de formas diferentes por homens e mulheres.
Os homens respondiam “a minha esposa”. As mulheres respondiam primeiro “eu mesma”. Logo em seguida, “as minhas amigas”.
Nossas amigas são quem nos permitem mudar, nos lembram quem somos quando parecemos esquecer, impulsionam os nossos sonhos, encolhem nossas dores e ampliam nossas perspectivas sobre o futuro. Nossas amigas são quem nos dão contorno.
Fazer revolução assim parece uma excelente ideia.