A invisibilidade e a solidão da população idosa LBGT
A ONG EternamenteSOU visa amparar esses idosos, que são invisíveis para a maioria da sociedade
Otto Santo, 59 anos, sempre percebeu que havia “algo diferente” em sua personalidade. Ele era um jovem atleta da década de 1980, que quando não conseguiu mais lidar com dualidade e da descoberta de sua sexualidade, viajou para os Estados Unidos, que na época era terreno fértil pra o movimento LGBT.
Ao voltar para o Brasil, conheceu o Mauro, que era 14 anos mais velho que ele, e segundo Otto, foi amor a primeira vista. “Trocamos os olhares, parecia que tinha ligado um botão. Fomos nos conhecendo e aos poucos tudo ia ficando mais sério”, explica ele. Mauro, por sua vez, tinha uma posição profissional importante e vivia entre políticos – o que fazia com que o casal fosse o mais discreto possível, por medo de possíveis escândalos.
Os dois viveram juntos por 33 anos, viajando e conhecendo o mundo. Mas no dia 13 de novembro de 2018, Mauro passou mal e foi levado ao hospital por Otto. A despedida entre os dois não aconteceu, porque três horas depois, Mauro faleceu, aos 70 anos. “Eu ouvi frases que ninguém deve dizer pra outra pessoa que acabou de perder um ente querido. Coisas do tipo ‘já foi, acabou, é melhor você se recompor e tocar a vida’”, recorda Otto, que foi impedido por sua família de sentir a perda do companheiro.
“O fato de não me deixarem chorar, foi motivo de afastamento da minha mãe e dos meus irmãos, porque a mágoa em não me deixarem sentir o luto era grande”. Amigos do casal também se afastaram após a partida de Mauro, e a rede de apoio de Otto era cada vez menor, já que os principais amigos moravam longe.
“Eu sinto muita falta. Foram os melhores 33 anos da minha vida, mas eu queria só mais cinco minutos pra poder me despedir dele. Não deu tempo. O luto LGBT é tão violento que consegue cortar a tristeza com faca pra poder passar. Poucas vezes você tem alguém que te estende a mão. Temos os mesmos problemas de uma pessoa hétero, mas somos invisíveis”, diz Otto.
Sozinhos, mas não por opção
O relato de solidão entre os idosos LGBT é recorrente, tendo em vista que grande parte deles, quando se assumem, não são acolhidos por suas famílias e tendem a viver a vida sozinhos. A pandemia tem despertado a sensibilidade para o assunto na internet, e, cada vez mais, relatos de idosos homossexuais que vivem em solidão tem aparecido.
No Twitter, a história de Roberto* viralizou quando compartilhada por uma pessoa que morava próxima a ele. Um senhor gay e idoso do qual todos reclamavam e que era o “chato das reuniões de condomínio”. Quem conta a história é Mauro, que conhecia Roberto desde sempre e já trocou figurinhas sobre Madonna, ídolo em comum dos dois.
Qual não foi minha surpresa, ano passado e depois de muito tempo sem vê-lo pelo prédio, avistei Roberto velhinho, sem o andar rápido que ele tinha, sentado numa cadeira, olhando fixo pra rua. Quieto. Ao lado dele uma moça de branco.
— Mauricona (@Maucarvalho) June 17, 2020
A surpresa é que Roberto passou por uma cirurgia de glaucoma que deu errado, levando-o a perder a visão dos dois olhos e vivia sozinho, apenas com uma cuidadora.
Roberto, de pijama, resolveu dar uma volta – descobri que ele desce sozinho – apesar de cego, e sabe caminhar pelo prédio (ou quase, né, pois vez ou outra para no andar errado e tenta abrir a porta que não é a dele). às vezes fica confuso.
— Mauricona (@Maucarvalho) June 17, 2020
Eu fiquei tão arrasado quando soube. Me fez pensar como a velhice pode ser cruel e ainda mais entre os gays. Aquilo me deixou alguns dias desalentado. E toda vez que passo por ele, está lá, sentado, em silêncio, às vezes conversa com a cuidadora.
— Mauricona (@Maucarvalho) June 17, 2020
Outro caso semelhante foi relatado pelo publicitário Victor Spindola, que contou a história de Carlos, amigo de seus pais que nunca foi aceito pela família e sofria do mal de Parkinson há alguns anos. A família de Victor, por sua vez, acolheu o amigo já idoso, e disponibilizou um dos quartos da casa para que ele tivesse conforto.
Cozinheiro de mão cheia, o criador da receita de empada mais gostosa da região, um coração imenso, mas cheio de cicatrizes que a vida deu. Não é fácil ser gay aos 10, aos 20, aos 30, imagine aos 66 anos, tendo uma demência.
— Justiceira Treteira (@victor_spindola) September 6, 2020
Carlos tinha apenas seus amigos como sua família. Victor conta que ele sempre acordava ás 5 horas da manhã, mas um dia não saiu do quarto. Preocupada, a mãe de Victor foi ao quarto ver porque Carlos ainda não havia levanto. Veio o susto: o senhor havia falecido.
Carlos era guerreiro,aos 60, já com párkinson ele passou no vestibular pra matemática na UFT. Sonhava em ser professor,adorava estudar. Mas não conseguiu, foi nessa época que voltou pra Goiás e foi morar com minha mãe. Eu sou privilegiado pra caralho com a família que tenho. Pqp!
— Justiceira Treteira (@victor_spindola) September 6, 2020
A importância do acolhimento
O casamento e a formação de família entre homossexuais é um assunto recente no Brasil, logo, muitas pessoas LGBT, quando chegam na terceira idade, não têm uma rede de acolhimento. Sem filhos, muitos deles não são aceitos pela família. De acordo com uma pesquisa realizada pela Associação de Aposentados dos Estados Unidos, cerca de 57% de homens gays acima dos 45 anos estão solteiros e 46% vivem sozinhos.
Pensando nisso e também no seu próprio processo de envelhecimento, Rogério Pedro, 30 anos, criou um centro de convivência para idosos LGBT – a ONG EternamenteSou, no centro de São Paulo. “Hoje, olhando pra políticas públicas que contemplam as pessoas idosas, eles não trabalham todas as pautas especificas que contemplem os idosos LGBT”, explica ele, que conta com uma rede de voluntários na ONG. Hoje, a instituição atua também no Rio de Janeiro e em Florianópolis.
A medida que o mundo evolui, o idoso também deseja ser uma pessoa ativa na sociedade. Em contrapartida, quanto mais velhos, mais suas histórias são apagadas e essas pessoas precisam se adaptar a uma realidade que antes, quando mais novos, não era comum. Muitos idosos LGBT que passaram por espaços de convivência para idosos em geral, nem sempre eram bem recebidos. “Falar sobre sexo e sexualidade com eles é visto como algo absurdo. Existe a tendência da assexualidade da pessoa idosa, a infantilização. Quando se tem pessoas trans dentro desses espaços, basicamente elas são tidas como aberrações. São relatos de alguns idosos que frequentam hoje a ONG”, diz Rogério.
O espaço se mantém fechado devido a pandemia do coronavírus, mas as atividades do centro foram adaptadas para um formato online. “As atividades proporcionem dignidade e visibilidade dessas pessoas como canto e coral, oficinas de culinária, encontros pra jogos, bailes, festas”. A ONG também conta com psicólogos, orientação jurídica caso seja necessário, como para casos de aposentadoria, retificação de nome, readequação de gênero, além de encaminhamentos para o SUS.
Ativa desde 2017, cerca de 800 idosos já foram atendidos pela ONG, e todos os funcionários são voluntários que passam por um curso de capacitação para poder auxiliar os idosos no dia a dia. “Quando fazíamos atividades presenciais, eles viam a ONG como um espaço de liberdade, onde eles não seriam rechaçados por serem quem são. A EternamenteSOU é a família que muitos idosos não têm, porque infelizmente essa é a realidade dos nossos idosos. Eles tem muito, muito, muito amor por esse espaço, porque ficam à vontade de serem quem são”, diz Rogério.
Otto Santo é um dos voluntários da ONG. “Para muitos, dizer que ama o companheiro é algo comum. Mas eu só podia dizer o quanto amava o Mauro fora do Brasil. Aqui, parecia que seguíamos protocolos, algo nos calava. Pra quem nunca pode dizer isso publicamente, ver os idosos verbalizando que amam seus maridos, esposas e companheiros aquece a alma”, relata. Ele conheceu o trabalho da EternamenteSOU através de uma pesquisa despretensiosa no Google.
“Como eu já tinha sido voluntário em outras instituições, pensei que ninguém faria nada por mim no luto que estava, então decidi fazer por alguém. Tudo o que eu faço pra eles me volta dez vezes mais. Assistir a esse grupo LGBT de 50, 60, 70 quiçá 80 [anos] me proporciona muitos momentos de respiro em que essa pessoa pode ser ela mesma sem julgamentos, sem mérito”, emociona-se Otto.
Em 2018, a organização europeia TransRespect divulgou dados que apontavam o Brasil como o país com o maior número de mortes violentas de pessoas LGBT. Segundo esse levantamento, fomos responsáveis por 40% dos 2.600 assassinatos em todo o mundo ao longo de dez anos. Para se ter uma ideia, a média de vida de mulheres trans é de 35 anos por aqui, o que é menos da metade da média nacional. Um outro relatório, divulgado em 2019 pelo Grupo Gay da Bahia, apontou que o Brasil registra em média uma morte de LGBT a cada 23 horas. A discriminação ainda é enorme e a falta de amparo a idosos LGBT, tem levado essas pessoas para caminhos escuros.
“São pessoas que vivem à margem da sociedade e tem suas vidas apagadas, porque pessoas com pensamentos retrógrados estipulam que esse grupo não vai fazer diferença no mundo, mas são vidas, e elas importam”, declara Rogério. “Procure conhecer uma pessoa LGBT. Mais do que isso, procure conhecer um idoso que resistiu pra estar aqui hoje. E estamos falando dos que resistiram, muitos deles não conseguiram e tiveram suas vidas ceifadas com o passar dos anos”, finaliza ele.
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