Rafaela Azevedo: “humor de menino da quinta série já não cola mais”
Rafaela Azevedo, idealizadora do espetáculo, faz de momentos trágicos o material para seu humor avassalador
Sensível e impiedosa. Reflexiva e energética. Engraçada e ácida. Todas essas facetas se encontram em Rafaela Azevedo, atriz e palhaça carioca de 31 anos que dá vida à irônica Fran, protagonista do monólogo stand up King Kong Fran.
No espetáculo, produzido por financiamento coletivo e com ingressos esgotados noite após noite, ela comanda uma inversão de papéis entre o que é feminino e masculino: coloca homens de cueca no palco e diz que “estão pedindo”, faz piadas grosseiras sobre sua aparência, atira facas cenográficas em direção a um assistente de palco, que, claro, é um homem.
Rafaela faz tudo isso vestida de mulher gorila (com direito a pelos e prótese peniana), para que o público ria do absurdo que é ver homens no lugar de mulheres — e depois pare para pensar em onde exatamente está a graça nisso.
Com um texto impecável, ela toma para si o protagonismo feminino na comédia e lembra que comportamentos violentos mascarados de piada deixaram de ser engraçados faz tempo.
Nesta entrevista para CLAUDIA, Rafaela reflete sobre as origens da sua arte, fala sobre traumas pessoais e coletivos e defende o humor que zomba dos poderosos.
CLAUDIA: Como começou a sua jornada no mundo do teatro e da palhaçaria? São ambientes que você frequenta desde nova?
Rafaela Azevedo: Desde pequena eu sempre quis ser artista e sonhava em ser bailarina. Cheguei a praticar balé e dança, e foi a partir disso que tive contato com a expressão corporal e o teatro. Então comecei a estudar artes cênicas de fato, com a intenção de me profissionalizar e buscar uma linha de pesquisa dentro da encenação. Foi aí que eu encontrei o Grupo Moitará, no Rio de Janeiro, que na época realizava pesquisas sobre diversas máscaras teatrais, da commedia dell’arte [tipo de teatro cômico desenvolvido na Itália dos séculos 16 a 18, em que os atores apareciam mascarados] a máscaras neutras. A única que não estava na pesquisa era a máscara de palhaço, com nariz vermelho e tudo mais. Foi então que eles me remanejaram para um grupo de circo, que na verdade estava mais para uma oficina, onde eu poderia me profissionalizar na palhaçaria. Eu nunca pensei que fosse me tornar comediante, mas entrei no humor a partir da palhaçaria e me apaixonei.
Como o circo inspirou a sua Fran?
O ambiente circense é bastante machista. Inclusive comento isso na peça King Kong, sobre como as únicas funções que uma mulher pode exercer no circo envolvem risco de vida ou exigem perfeição. Isso vai desde a bailarina que se equilibra sobre um fio, até a mulher-elástica que é cortada ao meio, à assistente do mágico que está sempre à disposição, à modelo seminua sobre quem alguém atira facas. Então comecei a fazer humor a partir desses cenários. Os mestres que lecionavam a palhaçaria não faziam a menor ideia do que fazer com essa linha, e comentavam que a minha pesquisa e arte não se encaixavam em números de palhaçaria, sabe? Eu chegava com algemas, prendia os caras durante as apresentações e, de certa forma, todos começavam a rir do picadeiro — principalmente as mulheres que se identificavam com aquela maneira de humor. Eu tinha apenas 22 anos, era muito novinha e militante.
Qualquer mulher que ouve o texto da sua peça e dos vídeos reconhece rapidamente a inspiração: as agressões masculinas. Você poderia contar um pouco do seu processo criativo?
A Fran é como se denunciasse todas as violências que eu sofri e sofro por causa do meu gênero. Ela ri do que está acontecendo no momento presente e cria situações para que todo mundo ria junto a ela. Então foi uma construção de personagem a partir do ambiente em que eu estava inserida. Ela lida com isso como se colocasse um espelho, e utiliza a inversão como técnica de humor para denunciar todas as violências que eu vivi e que todas as mulheres presenciam diariamente.
“A Fran usa o humor para denunciar as violências que vivi e que todas as mulheres presenciam diariamente”
Rafaela Azevedo
Por que inverter os papéis parece tão engraçado ou absurdo?
Durante 1h e 30 minutos de espetáculo, a Fran é a protagonista de um terror. Ela faz a inversão dos ambientes misóginos e das violências que sofremos com muita personalidade, afinal, ela é uma vilã. Ela embebeda os caras e os humilha, fazendo piadas que, nós mulheres, ouvimos desde muito novas. Ela os coloca na frente de um alvo e atira facas próximas ao seu corpo, assedia aqueles que ficam mais envergonhadinhos e até deixa alguns de cuequinha para se sentirem “mais à vontade”. E aí as pessoas comentam: “Nossa, mas isso é extremamente violento, vergonhoso etc”, mas esquecem que é exatamente assim que nos tratam todos os dias.
No final da peça, eu simulo uma cena que chamo de “extremo limite”. Ali criamos um cenário de abuso sexual, na qual o homem está bêbado e bastante vulnerável, enquanto todos caem na gargalhada assistindo à situação. Digo que aquilo é tudo uma “brincadeirinha” até ele cair desacordado, sem saber o que está acontecendo. E é então que a Fran chega ao seu ápice, e começo narrar que toda aquela situação, na verdade, aconteceu comigo quando eu tinha apenas 18 anos. O público, que estava rindo, agora permanece em pleno silêncio e eu sigo narrando: “Espero que vocês tenham entendido tudo, do início ao fim”.
“Estou fora da risada besteirol. Esse humor de menino da quinta série não cola mais: ‘xixi, cocô, viadinho’. Já não tem mais graça”
Rafaela Azevedo
Como vem sendo a reação do público masculino?
Os caras que mexo durante o espetáculo, que faço questão de sexualizar, são sempre homens brancos héteros que estão obviamente mais próximos do padrão, porque fazer comédia é sobre rir do que é presente. Uma mulher branca sexualizando um homem preto ou algum outro estereótipo não é humor, é vida real e isso afeta quem convive e enfrenta todos os dias esses estereótipos.
De onde surgiu a ideia de começar a peça vestida de King Kong?
Para a figuração e maquiagem, eu conto com a ajuda da Natascha Falcão, que é diretora criativa e maquiadora de King Kong Fran. Ela criou todo o figurino em camadas, que são removidas a cada etapa do espetáculo. Essa caracterização exprime a insatisfação dos padrões estéticos em relação ao corpo feminino, e como nós sofremos com essa incansável indústria que exige tanto de nós. O corpão sarado, a pele depilada, a boca preenchida. A Fran vem para trazer o oposto disso, e ainda nos fazer gargalhar desta indústria, sem ridicularizar. Meu intuito não é apontar para as mulheres que estão sofrendo com esse sistema, pois sei que elas estão gastando um montão de suas vidas tentando atender aos padrões. Elas são vítimas dessa porra e eu jamais debocharia de uma mulher.
Como surgiram as referências de Teoria King Kong para o espetáculo? A obra fez parte do processo criativo de roteiro e arte do monólogo?
Engraçado porque o nome King Kong, dado ao espetáculo, veio do livro Teoria King Kong, de Virginie Despente, mas eu não tinha lido o livro ainda, acredita? (risos). Eu queria muito trazer o contexto circense para a peça, pois já tinha em mente que a figura feminina, desde sempre, tinha apenas dois contextos: a de perfeição ou de aberração. Estávamos sempre na posição de sermos piada, do tipo: “Cala a boca, Magda” ou da clássica personagem estereotipada, como a loira gostosa e burra. Eu queria fazer uma versão da Mulher Gorila em 2020. Todos conhecemos a mulher gorila que, enquanto ainda é uma mulher, todos param para ver e ouvir. Porém ninguém fica para ver o que acontece com essa mulher depois do jogo de projeção, quando ela de fato vira uma gorila. Nessa hora todos saem correndo. Foi aí que pensei em criar uma versão estendida sobre o que seria essa mulher gorila nos dias atuais. No caso, alguém que mostra o terror no patriarcado e ri dos seus próprios terrores.
“Me vestir de gorila mostra a insatisfação que tenho com os padrões estéticos e com o que essa incansável indústria exige de nós”
Rafaela Azevedo
Você acredita que “nem todo homem”?
Eu tenho uma extrema dificuldade em lidar e confiar nos homens. Acredito muito na ideia de que devemos usar as relações anteriores de um homem como termômetro para a relação atual que será construída. Se a ex do seu companheiro ou amigo não possui mais nenhum contato, ou a relação terminou de maneira conturbada, tente entender isso como grande sinal de que você está se relacionando com uma pessoa não tão confiável assim. Para os homens héteros eu tenho pouco limite para erros. Sou intolerante mesmo.
Veremos a Fran em outras situações, além de King Kong? Tem planos de levá-la para fora do teatro?
Tenho vários projetos de expandir o universo da Fran para além dos palcos, de maneira mais consolidada, como em um programa de TV ou internet. Para o próximo espetáculo, teremos a Igreja da Fran, onde ela estará um pouco mais conservadora, mais ácida. Este projeto já está pronto e os palcos não perdem por esperar pelo que a Fran irá aprontar.
O que faz você rir? Quais são suas maiores referências na comédia?
Eu gosto muito de rir de quem tá no poder, sabe? E estou fora da risada besteirol. Esse humor de menino da quinta série não cola mais. “Ah, xixi, cocô, hahaha, meu pau, viadinho.” Isso já não tem mais graça. Eu gosto de rir com mulheres e fazê-las rir. Tatá Werneck e Ali Wong são algumas das minhas inspirações. Eu gosto de rir com elas.