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Judith Butler e a “nostalgia furiosa” de quem ataca o gênero

Filósofa acaba de lançar seu livro "Quem tem medo do gênero?". Ataques recebidos em sua visita ao Brasil a impulsionaram a escrever o livro

Por Carol Castro
13 Maio 2024, 09h00
Judith Butler
Judith Butler lança livro depois de momentos complicados que viveu no Brasil (Foto:/Divulgação)
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A filósofa Judith Butler, que agora está lançando seu livro “Quem tem medo de gênero?”, vivenciou momentos de ódio em sua passagem pelo Brasil, em novembro de 2017. Antes mesmo de sua chegada, conservadores lançaram um abaixo-assinado virtual em repúdio à participação de Butler em um seminário sobre democracia no SESC Pompeia, em São Paulo. Segundo eles, ela representava a “destruição da identidade humana ao defender a desconstrução da sexualidade“.

Os protestos, contrários e favoráveis à presença dela, seguiram ao longo da semana do evento. Quando deixava a capital paulista em direção ao Rio de Janeiro, uma mulher a perseguiu pelo aeroporto de Congonhas, com um cartaz ofensivo à filósofa, proferindo insultos. Ela chegou a ser empurrada – assim como outras pessoas que tentaram defendê-la.

Butler é mundialmente conhecida por estudar e escrever sobre feminismo e a teoria queer. Em 1990, lançou um de seus livros mais famosos, Problemas de gênero: feminismo e a subversão da identidade, em que analisava e questionava os papeis de gênero e o binarismo imposto pela sociedade. Os paineis propostos pelo SESC, no entanto, nem tocavam no assunto. Eram apenas sobre democracia. 

A confusão fez Butler ponderar: por que esse medo todo do gênero? A quem ele ofende? Daí surgiu a ideia de escrever um livro batizado de Quem tem medo do gênero?, recém-lançado pela editora Boitempo.

Em entrevista exclusiva à Claudia, a filósofa conta como e por que o gênero conseguiu unificar medos e reunir conservadores numa luta comum. 

Por que o gênero é o escolhido para ser atacado pelos conservadores?

Judith Butler – Tem havido um ataque mundial ao gênero desde os anos 1990, então não é algo novo. Os políticos de direita tendem a se opor ao gênero porque eles pensam nele como um desafio (ou ameaça, na visão deles) à “família natural”, mas também porque envolve a transição legal e social de gênero, educação sexual para jovens, direitos gays e lésbicos, incluindo maternidade/paternidade e a adoção, feminismo, igualdade de gênero, luta contra a violência de gênero, e liberdade reprodutiva.

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Aqueles que atacam o “gênero” tendem também a atacar a “teoria crítica da raça” e os “estudos étnicos”, e recusam as histórias de subjugação racial e extrativismo igualmente em nome do nacionalismo. Muitas pessoas têm razões religiosas para se opor ao gênero, mas algumas se opõem a ele porque sentem sua própria heterossexualidade e suas famílias sendo desafiadas.

Mas o que é desafiado sobre a família heteronormativa? Suas dimensões “universais” e “obrigatórias”, suas hierarquias e a maneira como ela se baseia em ideias preconcebidas de gênero. A verdade é que a complexidade da sexualidade humana e dos arranjos de parentesco já fazem parte do nosso mundo, então por que teríamos medo dessa complexidade? Vejo que alguns gostariam de ignorar essa complexidade e voltar a um tempo idealizado em que as hierarquias e exclusões eram normalizadas. Chamo isso de “nostalgia furiosa” porque a violência está entrelaçada com esse desejo.

Quais estratégias podemos adotar para dialogar com conservadores?

JB: Talvez haja uma maneira de abrir diálogo: descobrir o que as pessoas temem perder no momento. Se fizermos isso, acredito que descobriremos que muitas pessoas sofrem com redução salarial, estão se endividando, enfrentam dificuldades em encontrar uma posição com remuneração adequada, que não têm mais expectativa de contratos de longo prazo no trabalho, e se sentem inseguros no emprego.

Elas também estão perdendo a sensação de que a Terra sobreviverá às devastadoras mudanças climáticas. O saque das terras no Brasil e em outros países da América Latina por corporações neoliberais é bem conhecido. Menos conhecida é a maneira como a economia neoliberal se aliou às formas de controle estatal e políticas autoritárias, que necessitam do apoio de um público que aceita suas falsas promessas de “segurança”, mesmo quando isso significa destruir os preceitos básicos da democracia.

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Você menciona um projeto de poder mais amplo dos movimentos anti-gênero. Qual é esse projeto? Quais ferramentas usam para ganhar adesão popular?

JB – Minha visão é que demagogos de direita em várias regiões do mundo têm apelado para os medos profundos que as pessoas vivem no mundo contemporâneo, medos de que seu modo de vida esteja sendo destruído.

A direita diz que o “gênero” é quem ameaça destruir suas vidas, ou que a prevalência de pensadores progressistas na universidade está atacando a família ou normas tradicionais. O movimento tende a ser anti-intelectual e anti-universitário, difundindo a falsidade de que ensinar sobre gênero ou sexualidade é “doutrinação”. Às vezes, o “gênero” é descrito como uma força demoníaca, ou comparado a uma bomba nuclear por autoridades da Igreja. Muitas vezes dizem que as crianças são prejudicadas.

Todos esses tipos de alegações podem ser facilmente refutadas, mas a direita não oferece argumentos quando fala sobre gênero. Apenas reproduz fantasmas com todos os medos que as pessoas já têm, e direcionam esse temor contra os movimentos sociais que representam as comunidades mais vulneráveis da sociedade.

Essas táticas são uma forma de alarmismo destinada a convencer as pessoas a acreditar em demagogos autoritários que não apenas expulsarão o gênero da terra, como também eliminarão direitos básicos para restaurar a “ordem” na sociedade. Tudo isso precisa ser analisado abertamente de forma clara e ponderada.

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Quais as inconsistências dentro do movimento anti-gênero e sua importância em discursos conservadores?

JB: O movimento de ideologia anti-gênero se contradiz o tempo todo. Faz parte de uma estratégia política capturar qualquer ansiedade com a qual as pessoas estejam vivendo em sua ampla rede, então mensagens contraditórias provam ser úteis para seu objetivo.

Eles podem dizer que o gênero é um exemplo de hiper-capitalismo – cada indivíduo em busca da própria liberdade às custas de todas as normas – ou podem dizer que é uma forma de totalitarismo. Ou, no contexto das escolas, uma forma de doutrinação que eliminará a liberdade. Estão a favor ou contra a liberdade?

No entanto, a maioria das pessoas que lutam contra a violência, ou pela igualdade de gênero e liberdade, são contrárias às desigualdades produzidas pelo capitalismo, então elas não são hiper-capitalistas. Elas também são contrárias às formas de totalitarismo e autoritarismo, apoiando em vez disso as liberdades coletivas.

Pouco importa que essas caricaturas sejam falsas, elas servem ao propósito de apelar para, e organizar, medos e ansiedades, a serviço de uma política baseada no ódio e renovação do poder autoritário. Ao mesmo tempo, precisamos mostrar que são falsas e oferecer uma visão mais convincente e justa do mundo que queremos.

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De forma prática, o que precisamos mudar na forma como debatemos o gênero?

JB: Eu sou a favor de formas de solidariedade cada vez mais amplas e transversais, multilíngues e atentas às diferenças regionais dessas lutas, comprometidas com a liberdade coletiva, a igualdade radical e uma forma de justiça que não dependa da violência estatal. Gênero está implicado em classe e raça, em diferenças regionais e linguísticas. Precisamos desafiar as estruturas coloniais sob as quais o gênero foi conceitualizado e institucionalizado, como a mensagem missionária cristã de que apenas um retorno à família patriarcal e heterossexual produzirá paz e harmonia. As famílias agora assumem todas as formas, como as formas de parentesco queer, que vão além da noção tradicional de família. Se perguntarmos às pessoas quais formas de apoio e interdependência sustentam suas vidas, identificaremos a família como algo internamente complexo e, ao mesmo tempo, historicamente contingente. Precisamos criar um chamado convincente à igualdade e liberdade: um chamado que torne um mundo não violento desejável, comprometido com um planeta capaz de ser reparado e regenerado.

Acredita em uma vitória final para aqueles que lutam pela liberdade de gênero?

JB: Eu acredito em uma luta contínua, porque importa como lutamos. Encontramos a visão do futuro incorporada, e realizada, pelos termos de solidariedade. Uma vitória pode ser encontrada toda vez que o compromisso com a liberdade coletiva é aceito e incorporado. A vitória é um processo em aberto.

Livro "Quem tem medo de gênero?"

Livro de Judith Butler

“Neste seu primeiro livro não acadêmico, Judith Butler analisa como o “gênero” se tornou central em discursos conservadores e reacionários, um fantasma com o objetivo de criar pânico moral e angariar apoio popular a projetos políticos fascistas, autoritários e excludentes.”

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