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Quem lava a louça? O trabalho invisível e não remunerado de mulheres

A escritora sueca Katrine Marçal oferece uma visão feminista da economia e propõe um novo jeito de nos relacionarmos com o dinheiro

Por Paola Carvalho
Atualizado em 18 jan 2024, 09h45 - Publicado em 18 jan 2024, 09h20

Se as mulheres enxergassem que a economia tem a ver com pessoas e comportamentos, poderiam se sentir mais curiosas e interessadas em desvendar o sistema em que vivemos. A reflexão é da jornalista e escritora sueca Katrine Marçal, que escreveu dois livros — o aguardado terceiro já está a caminho — justamente com a intenção de apresentar, para mulheres e homens, todas e todos, novas interpretações sobre a história econômica global.  

No primeiro, Quem Preparou o Jantar de Adam Smith? (traduzido no Brasil como O Lado Invisível da Economia, Editora Alaúde, 2017), ela mostra que o valor do trabalho não remunerado que as mulheres e meninas realizam diariamente cuidando de crianças, idosos e doentes, por exemplo, tem sido ignorado por economistas, mesmo representando uma contribuição de pelo menos US$ 10,8 trilhões por ano à economia global, segundo a consultoria Oxfam.

De acordo com a ONU Mulheres, o trabalho não remunerado exercido por mulheres ao redor do mundo corresponde entre 10% e 39% do PIB de qualquer país. No caso do pai do liberalismo, Adam Smith, o pensador chegou à conclusão que “trabalho” é aquilo que fazemos por dinheiro, apagando a enorme contribuição não remunerada que as mulheres deram e continuam dando à economia — incluindo aí o trabalho da sua mãe e irmã, que cuidavam dele.

Em Mãe da Invenção (Alaúde, 2023), ela reúne invenções feitas por mulheres, como a mala de rodinhas e o carro elétrico, que foram descartadas por serem vistas como tecnologias femininas. “Se falamos da Idade do Ferro e da Idade do Bronze, também deveríamos falar da Idade da Cerâmica ou da Idade do Linho, por serem tecnologias igualmente importantes”, critica. 

Agora, Katrine se dedica a escrever um terceiro livro, A Woman’s Worth: male fantasies about money and how they hold women down (“O valor de uma mulher: fantasias masculinas sobre dinheiro e como elas reprimem as mulheres”, em tradução livre para o português). Ela adianta que remonta a relação das mulheres com o dinheiro a vários mitos patriarcais. Tendemos a pensar na história das mulheres e do dinheiro como algo que começou na década de 1950, o que não é verdade. Confira abaixo a entrevista exclusiva que ela cedeu à CLAUDIA. 

Paola: Qual foi o gatilho para querer entender a economia de um ponto de vista mais, digamos, feminista? 

Katrine: Comecei a pensar nas mulheres e no dinheiro de uma forma mais estruturada quando era uma jovem jornalista que cobria a crise financeira global de 2008. Até então, os experts em economia diziam às pessoas que o colapso não poderia acontecer. Senti que era extremamente necessária uma outra perspectiva e que provavelmente a melhor verificação da realidade vinha do campo da economia feminista. 

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Foi então que acabei escrevendo Quem Preparou o Jantar de Adam Smith?. Eu queria criar um livro acessível a todos que explicasse como as mulheres tinham sido deixadas de fora da construção dos fundamentos da economia e como isso nos fez entender mal como tudo funcionava. 

Paola: Que relação você faz entre feminismo e dinheiro? 

Katrine: Em muitos aspectos, o dinheiro é o sistema do mundo. Precisamos compreender que toda a economia mundial está baseada no trabalho invisível das mulheres. O feminismo tem de se envolver com isso. Não sei se as mulheres têm “medo da economia”, mas os economistas e os jornalistas financeiros falam muitas vezes de uma forma que aliena muitas mulheres.

A vencedora do Prêmio Nobel de Economia deste ano, Claudia Goldin, disse que o problema é que as mulheres não percebem que “a economia tem a ver com psicologia e pessoas” e eu concordo com ela. É disso que se trata fundamentalmente. E se isto fosse dito a mais mulheres, penso que ficariam mais curiosas sobre o sistema econômico.

Paola: É um movimento que vem ganhando força?

Katrine: Tendemos a pensar na história das mulheres e do dinheiro como algo que começou na década de 1950, após a Segunda Guerra, período em que as mulheres assumiram o trabalho nas fábricas e os homens se tornaram combatentes.

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Antes disso, fomos levados a acreditar que a economia era um domínio masculino e que a contribuição das mulheres para ela tinha principalmente a ver com seu papel de mães. Mas isso não é verdade. Os direitos econômicos das mulheres são um fenômeno que surgiu e desapareceu ao longo da história.

Em diversas sociedades, as mulheres tinham muito poucos direitos. Em outras sociedades elas tinham mais. Na antiga Esparta, por exemplo, as mulheres possuíam dois terços de todas as terras. Em Atenas, que ficava a apenas 200 km de distância, não podiam herdar nem possuir propriedades. Essas coisas também foram uma questão de escolha política.

Panelas com comida no fogão
Mulheres são o principal grupo de pessoas quando o assunto é trabalho não remunerado e invisível (Imagens geradas por IA/CLAUDIA)

Paola: Você escreveu Quem Preparou o Jantar de Adam Smith em 2012. Vivenciamos uma pandemia no caminho até hoje. O que mudaria ou reforçaria no livro? 

Katrine: Quando foi lançado, era muito mais “polêmico” do que é hoje. Lembro-me de ter dado uma palestra na London School of Economics sobre isso em 2015 e alguns economistas terem sido muito críticos em relação à mensagem do livro. Não creio que a mesma coisa teria acontecido hoje.

Em particular, a pandemia destacou a nossa enorme dependência do trabalho de cuidados não remunerado na economia e temos hoje uma conversa muito mais avançada sobre a necessidade de incluir melhor a perspectiva das mulheres na economia.

Paola: Qual a sua percepção sobre as diferenças entre o Norte e Sul global? Enxerga peculiaridades para o Brasil?

Katrine: As mulheres representam 75% de todos os cuidados não remunerados e trabalho doméstico em todo o mundo. Estão também sobre-representadas no trabalho mal remunerado e na economia informal. Este fardo recai particularmente sobre as mulheres negras e pardas no Sul Global e em certas minorias no Norte Global.

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Além disso, temos a emergência climática, que é esmagadoramente causada pelos países do Norte Global, mas com as pessoas do Sul Global suportando a maior parte dos custos, como por exemplo, com recursos naturais. Dar às mulheres maior liberdade econômica é a chave para resolver estas questões. 

Paola: Eu gosto muito da parte em que você diz que uma geração inteira interpretou “Você pode ser o que quiser” como “Você tem que ser tudo”. Que precauções as mulheres precisam tomar hoje para evitar a sustentação de um sistema patriarcal?

Katrine: Estamos vendo muitas mulheres deixando corporações e organizações para criarem seus próprios negócios e sistemas. O feminismo não deveria exigir do patriarcado uma fatia maior do bolo existente para as mulheres. Deveria querer fazer um bolo totalmente novo.

Acho que precisamos nos sentir confortáveis com o projeto feminista nesse sentido. Se todo o nosso mundo se baseia na subjugação das mulheres, então todo o nosso mundo precisará, em certo sentido, mudar para acabar com esse fenômeno. Precisamos fazer um bolo novo!

Paola: Quais seriam as maiores falácias construídas a partir de razões masculinas na sua opinião?

Katrine: Provavelmente a maneira como olhamos para nós mesmos e para a natureza como coisas separadas, e como vemos o mundo natural como algo de que podemos continuar tirando tudo.

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Paola: Quais mulheres te inspiram hoje? 

Katrine: Admiro todas as que têm a audácia de tentar viver uma vida autêntica. Acho que isso é difícil para as mulheres hoje. Então, sempre que vejo, acho muito inspirador. 

Quando o capitalismo encontra o feminismo na sala de jantar

Por aqui, no Brasil, também temos sede de mudança na sala de jantar. É o que provoca o último livro lançado pela chef de cozinha e ativista pela alimentação saudável Bela Gil, Quem Vai Fazer essa Comida? (Elefante, 2023). O título foi inspirado no livro de Katrine Marçal Quem Preparou o Jantar de Adam Smith?. O grande pensador dos fundamentos do capitalismo era cuidado pela mãe e pela irmã enquanto escrevia sobre o livre mercado que conectava o açougue à mesa — mas se esqueceu de botar na conta o trabalho de quem preparou e serviu a carne. 

Bela reflete não sobre a mão invisível do mercado, mas a mão invisível do trabalho doméstico, recheando o livro de referências de pensadoras contemporâneas. De Vandana Shiva a Silvia Federici, ela conecta saúde pública e justiça de gênero. “O ato de cozinhar é uma das muitas tarefas do trabalho doméstico — o qual, no Brasil e no mundo, é feito majoritariamente por mulheres. Na maioria das vezes esse trabalho não é reconhecido, tampouco valorizado e muito menos remunerado”, escreve. 

É esse trabalho doméstico não remunerado, destaca Bela, que faz com que todos os outros trabalhos sejam possíveis. Caso não olhemos para as necessidades de quem faz a comida, “o nosso bem-estar continuará nas mãos de corporações que pretendem trazer soluções na forma de produtos ultraprocessados fáceis, rápidos e saborosos, porém prejudiciais à saúde, destinados principalmente a quem não tem dinheiro, tempo ou conhecimento para ‘escolher’ outro caminho”, provoca Bela. O livro destaca o número, no Brasil, do consumo de alimentos ultraprocessados que mata 57 mil pessoas por ano, “número maior que a já escandalosa taxa de homicídios no país”.

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