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As mulheres na linha de frente do Rio Grande do Sul

Como lideranças femininas estão se organizando coletivamente frente ao maior desastre socioambiental da história do estado gaúcho

Por Bárbara Poerner
Atualizado em 20 jun 2024, 20h09 - Publicado em 13 jun 2024, 10h25
Catarina Machado
Catarina Machado (Divulgação/Divulgação)
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Ainda não acabou. A calamidade que atinge o estado do Rio Grande do Sul segue. Conforme dados da Defesa Civil gaúcha, são 476, de 497, municípios afetados, mais de 35 mil pessoas em abrigos, mais de 500 mil desalojadas e 2,3 milhões afetadas diretamente pelas enchentes, inundações e alagamentos – consequências do agravamento das mudanças climáticas e de medidas políticas ineficazes – que começaram no mês de maio de 2024. 

Embora os eventos climáticos não sejam novidade no estado que concentra os biomas Pampa e Mata Atlântica, desta vez eles foram inéditos em tamanho, proporção, impacto e temporalidade. Diante disso, movimentos de solidariedade surgiram não só nas cidades gaúchas, mas em todo o Brasil e mundo.

Lideranças femininas, mais uma vez, estão na linha de frente de vários deles. Mesmo sendo um dos grupos mais afetados (a ONU Mulheres aponta que, em poucos anos, as mudanças climáticas levarão até 158 milhões de mulheres e meninas à pobreza e mais de 236 milhões à fome), elas também podem ser criadoras de soluções, ativistas, mobilizadoras, pensadoras, políticas, gestoras e articuladoras.  

Ao assumirem vários espaços no enfrentamento da maior crise de nosso tempo, as mulheres podem criar condições de solidariedade e acolhimento. Isso não foi diferente no estado do Rio Grande do Sul, agora. CLAUDIA conversou com quatro mulheres que atuaram ou estão atuando diretamente na linha de frente em abrigos, comunidades, centros comunitários e nas ruas de Porto Alegre. 

Renata Padilha

Renata Padilha, do movimento Eco Pelo Clima
Renata Padilha, do movimento Eco Pelo Clima (Andrea Graiz/Divulgação)

Em 2020, Renata Padilha sentou-se na praça Pedro Osório, no centro de Porto Alegre, com os dizeres “vamos falar sobre mudanças climáticas?” escritos em uma placa de papelão. Era um convite para dialogar com a população na rua. A motivação para a ação partiu de experiências acerca do tema que teve no Ensino Médio, na escola.

Desde então, ela encontrou no ativismo uma vazão para sua ânsia de incidir na agenda climática. Mais tarde, estudou Relações Internacionais e criou, junto de amigos, o movimento Eco Pelo Clima, que, descreve ela, “reúne a juventude gaúcha para lutar contra a emergência climática”. 

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Natural da Restinga, Porto Alegre, enchentes e alagamentos não eram novidade para ela, que já viu seu bairro natal alagar diversas vezes. Mas nunca como agora, em 2024, conta. “Era ambulância e helicópteros por todos os lados, polícia, exército, pessoas distribuindo água, pessoas de jet ski, barco e trator na rua. Parecia cena de guerra. Foi muito difícil entender o que eu estava sentindo naquele momento”, descreve Renata, que há dois anos mudou-se para o Menino Deus, outra região que está gravemente afetada.

Quando teve a oportunidade de ir para a casa onde mora atualmente com seu companheiro, apenas para pegar roupas e objetos pessoais, a ativista relata que viu a mesma placa que usou na Praça Osório embaixo d’água e enlameada pela enchente que inundou sua residência.

“A minha vida inteira, eu lutei para que isso não acontecesse com as pessoas. Os cientistas falam que isso vai acontecer em 2050, em 2100… mas está acontecendo em 2024. E está acontecendo comigo“, diz ela, que agradece o atendimento psicológico imediato que teve, via uma psicóloga desconhecida, para lidar com o trauma.  

Abrigada na residência do sogro, hoje ela entende-se como uma desalojada ou refugiada climática. “A minha casa, meu lar, onde eu fui mais feliz na minha vida adulta, tudo que eu conquistei com o meu próprio dinheiro… eu vou ter que botar fora porque ficou debaixo da água… por algo que eu luto para que não aconteça”, desabafa Renata, que reconhece essa experiência como um trauma para o resto da vida.

O Eco Pelo Clima, movimento do qual faz parte, está mobilizado desde o início da calamidade em ajudas emergenciais, como arrecadação de água e alimentos, auxílio em abrigos e distribuição de suprimentos, além de estar articulado com parceiros como a Casa de Cultura e Resistência

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Recentemente, no dia 31 de maio, o coletivo também co-organizou a Marcha Pelo Clima na capital gaúcha. “As pessoas já estão buscando suas próprias informações, então a partir de agora elas vão precisar de um espaço para se organizar. Vamos precisar pegar todos esses termos que estão dentro da nossa bolha, que foram de certa forma ‘academizados’, e traduzi-los”, acredita Renata.

O risco de privatizações e perda de direitos sociais e trabalhistas é um dos pontos de atenção que a ativista elenca como possíveis consequências dos eventos extremos no estado. Por isso, ela defende que “uma das tarefas dos movimentos e da população gaúcha vai ser fiscalizar o que o Governo vai fazer a partir de agora, para que esteja dentro dos parâmetros da justiça climática”. 

Saiba como ajudar o Rio Grande do Sul a partir do Eco Pelo Clima.

Jossana Ladse Conceição dos Santos 

Jossana Ladse Conceição dos Santos chama o contexto de calamidade no Rio Grande do Sul de “pequena pandemia”. Ela é uma das lideranças do Quilombo dos Machado, localizado na Grande Sarandi, zona norte de Porto Alegre – a cidade brasileira que mais concentra quilombos urbanos do Brasil. 

Foram organizados mutirões e equipes de apoio, explica ela, para amparar o território e outras comunidades no entorno que tiveram suas casas inundadas e afetadas. “Temos apoiadores que levam marmitas, água, roupas e cobertores para os desabrigados”, continua. “O quilombo é uma resistência, e eu tenho orgulho de fazer parte e de ser quilombola.”

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Na comunidade, existe um centro de acolhimento que está aberto 24 horas por dia para oferecer “uma conversa, um café, uma roupa quente. Estamos aqui fazendo o que podemos, e às vezes até o que não podemos“, relata a quilombola, que valoriza a comunidade organizada, mas reconhece a responsabilidade da Prefeitura e do Governo do Estado.

“Se não fosse o povo pelo povo, o que está acontecendo seria ainda mais terrível. A gente se sente abandonado [pelo poder público], essa é a real palavra, um abandono.” 

Ela destaca que o movimento de solidariedade precisará continuar mesmo depois das enchentes e alagamentos passarem por completo. “Quando a água baixar, as pessoas irão ver o que realmente perderam, e vamos seguir precisando de cobertas, de roupas, de limpeza pesada, de higiene pessoal, de ajuda para ajudá-las a limparem as suas casas, a se organizarem”, argumenta.

Saiba como ajudar o Rio Grande do Sul a partir do Quilombo dos Machado.

Juliana Araújo

Juliana Araújo
A psicóloga Juliana Araújo (Acervo pessoal/Divulgação)
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Assim que o estado de calamidade começou em Porto Alegre, a psicóloga especialista em luto Juliana Araújo se mobilizou para auxiliar em abrigos da cidade, especificamente no abrigo da APAMECOR, na zona sul, que têm abrigado moradores dos bairros Humaitá e Sarandi. “Eu me senti útil no meio de tanto caos”, relembra. Mas não demorou para ela perceber que também era uma das impactadas. “Quem não foi atingido diretamente tem algum conhecido, ou vê alguma notícia, e nos afetamos pelo afeto dos outros. Em diferentes graus a gente sofre, e nenhum sofrimento deixa de ser importante”, argumenta. 

Em experiências traumáticas, como aquelas que várias pessoas têm vivenciado no estado gaúcho, Juliana explica que a abordagem é o PSP, ou Primeiros Socorros Psicológicos, algo bem diferente de um atendimento clínico. “Os primeiros socorros psicológicos são pontuais, onde vamos acolher o que [o atendido] está sentindo, perguntar o que ele precisa, escutar de forma atenta, acionar sua rede de apoio e fazer encaminhamentos para a equipe de saúde que se concentra no respectivo abrigo”. 

O cuidado com a saúde mental é uma medida essencial e urgente em contextos de crise, defende a psicóloga, que entende isso como direito à saúde pública. Mesmo a longo prazo, em um processo terapêutico continuado, ela diz que “o atendimento psicológico possibilita a elaboração de todas as perdas advindas do que aconteceu”. 

Um questionamento que surgiu para Juliana, durante o trabalho nos abrigos, foi sobre a divisão de tarefas. Comumente, funções de alimentação e limpeza foram designadas às mulheres, mas “a gente poderia fazer de tudo, assim como os homens também podem fazer tudo, como limpar ou cozinhar”.

Isso ilustra, continua a psicóloga, o quanto existem lideranças femininas dentro dos abrigos e da importância desse reconhecimento, mas também do quanto “a nossa competência ainda é vinculada ao cuidado, à educação e à faxina”.

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Para ela, que também produz conteúdos em suas redes sociais, o que vive-se agora é um luto coletivo, que atinge não só os moradores do Rio Grande do Sul, mas todo o Brasil e até o mundo. “Eu falo não só do luto pela morte, mas dos lutos simbólicos, do adiamento de sonhos, das quebras de expectativa, da ‘desidealização’ do mundo como um lugar seguro.”

Contudo, é preciso tomar cuidado com os sentimentos de impotência e ansiedade, completa Juliana. “Quando a gente coloca-se em um lugar de culpa, o processo é dificultado, porque se eu entendo que tudo que faço não adianta, em algum momento posso até parar de fazer. E o mínimo que a gente faz dentro de um coletivo, é muito“, acredita. “Se o luto é coletivo, a responsabilidade também é.”

A solidariedade, para ela, foi um acalanto que fortaleceu o estado e as populações atingidas. Por outro lado, essa força se esgota. “Vemos a diminuição na propagação de informação, na doação, e isso é um movimento comum”, destaca ela, que atualmente faz trabalhos pontuais nos abrigos pois teve que retornar à rotina de trabalho convencional. Juliana defende que é preciso responsabilizar os tomadores de decisão e Governos.

“Existe o atravessamento climático, mas também o atravessamento das medidas que deveriam ter sido tomadas e não foram”, avalia ela, referindo-se ao desmonte de políticas públicas sociais e ambientais que ocorreu, e está ocorrendo, nas gestões da Prefeitura de Porto Alegre e do Governo do Estado.

Catarina Machado

Catarina Machado
Catarina Machado (Divulgação/Divulgação)

Assegurar que seu povo não passe fome, frio ou sede tem sido a missão de Catarina Machado, junto de várias outras lideranças, na Cohab (CHB) Rubem Berta, uma das regiões mais populosas e com maior número de pessoas negras de Porto Alegre. 

Tal missão, na verdade, tem guiado a vida da ativista e gestora pública há pelo menos 20 anos. Ela é integrante e uma das lideranças do Marlon e Marcelinho, um espaço comunitário de fomento à cultura, educação e lazer antirracista, localizado na CHB Rubem Berta.

O nome carrega o legado de dois jovens que foram assassinados na comunidade. “O nosso propósito é garantir os direitos fundamentais do nosso povo: moradia digna, saneamento, educação e alimento”, defende Catarina, que é mãe de Marcelinho. 

Por dia, o centro comunitário recebe mais de 400 pessoas e entrega duas mil marmitas na região, tudo a partir de doações mobilizadas por eles mesmos e por parceiros, além de garantir o café da manhã para as crianças do entorno. Catarina explica que são acolhidas e abrigadas não só as pessoas do Rubem Berta, mas também moradores de bairros próximos que foram afetados pelas enchentes e inundações. 

As ações são auto-organizadas e totalmente voluntárias. Existe o grupo da mamita, da logística, da comunicação, da ação social, da higiene e limpeza, das orientações às famílias etc. “É importante atuarmos aqui, porque carregamos a dor de muitas mães que não conseguem lutar. Essas mães, essas avós, também reconhecem o espaço Marlon e Marcelinho como um lugar seguro, de oportunidade, afeto, e respeito”.

Além do aumento das vulnerabilidades sociais, são muitas as dúvidas que surgem para a população nesse contexto. “Existe muita dor, e as pessoas estão desorganizadas. Elas se perguntam ‘onde eu procuro? Como faço a carteira de identidade de novo? Como pago a segunda via da certidão de nascimento?’, explica a ativista, ao contar que o espaço Marlon e Marcelinho, junto com parceiros ao entorno, estão organizando mutirões, com equipes especializadas, para orientar os cidadãos e cidadãs.  

Embora Catarina reconheça e valorize os movimentos de assistência, ela avalia que esse dever é do poder público, e faz questão de endereçá-los: Governo do Estado, gerido por Eduardo Leite, e Prefeitura de Porto Alegre, gerida por Sebastião Melo. Por isso, “trabalhamos com as comunidades a conscientização de que o nosso papel é de solidariedade e não de caridade, e que devemos tensionar e denunciar quem tem que ser responsabilizado para garantir nossos direitos”, finaliza a ativista.

Saiba como ajudar o Rio Grande do Sul a partir do Espaço Marlon e Marcelinho. 

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