O papel da espiritualidade no tratamento do câncer de mama
Elas tiveram câncer de mama e compartilham como a fé, independentemente de qualquer religião formal, auxiliou a encarar o medo
Eram pouco mais de cinco horas da manhã do dia 2 de fevereiro de 2022, o sol estava começando a raiar. Com os pés descalços, vestindo uma regata e um shorts branco, a enfermeira Carla Rosa, hoje com 48 anos, caminhava à beira-mar pela praia de Tramandaí (RS) carregando uma cesta com 120 rosas brancas que foram lançadas em direção ao mar em agradecimento à Iemanjá pela cura do seu câncer de mama, diagnosticado um ano antes. Carla, que foi criada em uma família extremamente religiosa e desde muito cedo aprendeu sobre a importância da fé, diz não ter nenhuma religião específica, mas ressalta que nunca deixou de ser espiritualizada – fator que define como essencial em toda a sua trajetória de vida e na sua jornada de tratamento do câncer.
“Saí de casa antes do alvorecer para cumprir a minha promessa de agradecer à Iemanjá por me manter firme durante 2021, que foi um ano tão desafiador e no qual eu enfrentei uma travessia dentro da travessia. Graças a Deus, aos Mentores de Luz e também a Ela, que é uma divina Mãe, saí vencedora. Eu não tinha nada, além da fé, e foi o suficiente”, relata Carla, muito emocionada por lembrar desse momento tão delicado.
Carla é apenas um exemplo de como parte das mulheres lidam com o impacto de receber um diagnóstico de câncer de mama. Muitas delas recorrem à fé e à espiritualidade como forma de amenizar o sofrimento para conseguir administrar as expectativas de um futuro incerto, que permeará um caminho cercado de dificuldades e obstáculos.
É preciso acreditar em algo para seguir em frente – não à toa, quase nove em cada dez brasileiros dizem acreditar em Deus ou em alguma força superior especialmente para superar crises, doenças e conflitos, segundo dados da pesquisa Global Religion 2023, produzida pelo Instituto Ispsos e que ouviu mais de 19 mil pessoas em 26 países. Ao mesmo tempo, somente 76% dos brasileiros dizem seguir uma religião na prática.
“Quando a mulher recebe o diagnóstico de uma doença que ameaça a sua vida, ela se dá conta de que a vida é finita. E é nesse momento que entra em questão a religiosidade e a espiritualidade. Essa mulher vai buscar força, fé e uma parte espiritual que não tem nome, que não tem rótulo, mas que será necessária para ajudá-la a enfrentar o que vem pela frente. Não estou falando de religião nenhuma, mas de uma energia superior, essencial para aumentar a esperança dessa paciente”, diz a mastologista Maira Caleffi, presidente da Femama (Federa- ção Brasileira das Instituições Filantrópicas de Apoio à Saúde da Mama) e coordenadora do Núcleo da Mama do Hospital Moinhos de Ven- to, em Porto Alegre (RS).
Medo versus fé
Lidar com o diagnóstico de câncer é uma tarefa complexa para qualquer pessoa, mesmo com todos os avanços da ciência nas opções de tratamentos cada vez mais modernos e efetivos. No caso das mulheres, descobrir um câncer de mama pode ser ainda mais desafiador: além do medo da morte diante da crença de que a doença muitas vezes é irremediável, muitas delas ainda enfrentam o medo de deixarem os filhos órfãos de mães e de perderem a sua identidade, especialmente relacionada à queda do cabelo e possível necessidade de retirada da mama.
Uma pesquisa feita pela Veja Saúde, a pedido da Femama, do Instituto Oncoguia e da Roche, entrevistou 1.237 mulheres diagnosticadas com câncer de mama e perguntou qual foi o sentimento delas ao descobrirem a doença: 57% relataram medo e 46% disseram sentir fé. Após iniciarem o tratamento, esse sentimento se inverteu – 27% das mulheres disseram ter medo e 61% sentir fé. Além disso, a pesquisa constatou que 78% das pacientes entrevistadas afirmaram cuidar da espiritualidade.
Segundo Luciana Holtz, presidente do Instituto Oncoguia, o primeiro e maior desafio das mulheres é justamente o medo – e em muitos casos ele vem até antes do diagnóstico, quando a mulher ainda tem uma suspeita e chega a evitar fazer os exames para não descobrir a doença. “Ainda existe um medo muito grande do câncer. Apesar de sabermos que hoje estamos diante de uma doença prevenível, tratável, controlável e curável, para a população o câncer continua sendo a doença que mata”, disse.
Maira Caleffi, da Femama, ressalta que esses preconceitos em torno da doença ainda estão muito enraizados. “O sentimento de medo é inerente ao diagnóstico. É normal sentirmos medo do desconhecido, do que é incontrolável. Se essa mulher já vivenciou o câncer de alguma maneira, com algum familiar ou pessoa mais próxima, por exemplo, ela sente mais medo ainda. Não é medo apenas da doença em si, mas de todo o contexto de estigma em torno do câncer”, afirmou
É o caso da administradora Giulliana Stano Valença, de 35 anos, que descobriu a doença aos 32 e o primeiro sentimento que veio à sua cabeça foi o medo. “Quando abri o resultado da biópsia e li ‘carcinoma ductal invasivo’ fiquei sem chão. Eu não tinha plano de saúde e pensei: e agora? O que eu vou fazer? Por onde eu começo, com quem eu falo? Tive muito medo do que viria pela frente”, lembra Giulliana, que conseguiu fazer o tratamento no Icesp (Instituto do Câncer do Estado de São Paulo) e precisou realizar uma mastectomia bilateral por segurança.
Giulliana disse não ter nenhuma religião, mas também atribui à sua fé em algo superior o fato de ela ter conseguido realizar um tratamento de excelência na rede pública. “Quando achava que estava sozinha, eu conversava com Deus. Tinha muita fé e ainda tenho. Hoje valorizo o que realmente importa na vida”, contou ela.
Estudiosa dos efeitos da espiritualidade na vida das pacientes com câncer, a psicooncologista Regina Liberato, especialista em cuidados paliativos e coordenadora do Comitê de Saúde Emocional do Instituto Oncoguia, ressalta que a espiritualidade é um aspecto humano que impulsiona o indivíduo em busca do sentido e do propósito da vida.
“A espiritualidade não precisa ser expressa exclusivamente através da religião organizada. Tem forte relação com esperança, fé, paz interior e amor pela vida. Diversas outras formas são utilizadas e podem se associar, inclusive, às práticas integrativas tais como meditação, mindfulness, yoga, reiki, contemplação e relacionamento com a natureza”, destacou.
Neste mês, a campanha Outubro Rosa — de conscientização sobre o câncer de mama — entra em sua 15ª edição com o objetivo de chamar a atenção sobre a importância do diagnóstico precoce. “Precisamos seguir informando e fortalecendo as mulheres com relação ao autocuidado. A mulher não está conseguindo colocar a sua saúde em primeiro lugar e o câncer está chegando. Decidimos assumir tantos papéis e para seguir dando conta de todos precisamos estar bem, nos cuidando de forma prioritária”, finalizou Luciana Holtz.