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Lembranças enganosas: como seu cérebro cria memórias

Você já jurou se lembrar de eventos que nunca existiram? Neurocientistas explicam porque as memórias falsas acontecem e como podem ser implantadas

Por TEXTO Juan Ortiz, Maurício Brum e Mariana Alves COLABOROU Valentina Bressan
7 mar 2022, 08h35
lembranças
 (MirageC/Getty Images)
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Em outubro de 1980, o empresário americano Steve Titus foi detido pela polícia em Seatac, Washington. A fisionomia e o carro dele eram semelhantes aos de outro homem que tinha estuprado uma mochileira na estrada. Durante a investigação, a vítima achou que, entre os suspeitos, Titus era “o que mais se aproximava” do agressor, e os investigadores se encarregaram de que isso se  tornasse verdade. No dia do julgamento, ela não teve  dúvidas: ele era o estuprador. O empresário foi condenado  à prisão perpétua, mas sempre defendeu sua inocência.  Enquanto aguardava a sentença, passou os detalhes do  caso ao repórter Paul Henderson, do Seattle Times, que  depois ajudou a descobrir o verdadeiro culpado. Titus foi  inocentado e processou a polícia por plantar evidências e  induzir falsas memórias na vítima. Desempregado e sem dinheiro, ele morreu de ataque cardíaco poucos dias antes  do julgamento contra as forças de segurança, em 1985. 

O caso chamou a atenção da psicóloga Elizabeth Loftus, referência no estudo da memória. Ela queria entender como a vítima tinha sido influenciada a criar uma  lembrança fictícia. O resultado de suas pesquisas trouxe  um novo entendimento da ciência sobre o tema: hoje,  sabemos que as memórias viajam pelo cérebro, são maleáveis e podem ser modificadas – até mesmo as que  carregam elementos importantes da nossa biografia.  

Nos últimos 50 anos, a psicóloga coordenou uma série  de estudos que tratam da maleabilidade da memória, nos  quais as lembranças são manipuladas com palavras e  imagens. Para isso, os pesquisadores utilizam uma memória real de cada participante e buscam adicionar  elementos falsos, como um vidro quebrado após um  acidente de carro ou o rosto de uma pessoa desconhecida  durante um interrogatório. Em 1999, uma das pesquisas  de Elizabeth concluiu que a relação psicólogo-paciente  também pode contribuir para a indução de falsas memórias. No experimento, um terapeuta analisou os relatos  dos sonhos dos pacientes e os relacionou propositalmente a situações em que, por exemplo, eles teriam se perdido em espaços públicos antes dos 3 anos de idade – embora os voluntários tivessem marcado previamente em  um questionário que nada disso havia ocorrido. Conforme escutavam o parecer do psicólogo, se convenceram  de ter passado por alguma experiência de abandono  parental ou sumiço na infância, adicionando outros detalhes fictícios à história.

Como se falseia a memória?

De acordo com a neurociência, as memórias passam por  um processo lento e gradual de filtragem e consolidação.  Isso faz com que a maioria das informações que chegam  até nós esteja fadada ao esquecimento: dificilmente você  vai lembrar dos detalhes de seu almoço de dois meses  atrás, a menos que sua mente tenha algum motivo para considerar essa informação valiosa (por exemplo, se foi  seu aniversário). As que perduram servem como repertório para o cérebro conseguir prever desfechos futuros  e se preparar para novas situações. 

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(MirageC/Getty Images)
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“As memórias são representações psíquicas do passado. Mas não são absolutas, porque se reconstroem cada  vez que as utilizamos”, explica o biólogo Martín Cammarota, chefe do Laboratório de Pesquisa da Memória do  Instituto do Cérebro, na Universidade Federal do Rio  Grande do Norte (ICe-UFRN). “A melhor maneira de  modificar uma memória é utilizá-la”, diz.  

Há três categorias básicas de classificação das memórias: 1) procedimentais, que depois de apreendidas  são acionadas de forma automática, como andar de  bicicleta ou amarrar um cadarço; 2) semânticas, relativas ao conhecimento adquirido sobre fatos gerais,  como saber que Brasília é a capital do Brasil ou que limão  é uma fruta cítrica; e 3) episódicas, que mantêm os  registros de eventos em nossa vida, como um passeio  no parque ou uma festa de casamento. É nessas duas  últimas que ocorrem as falsas memórias. “Na hora que  eu vou montar o quebra-cabeças, sempre faltam algumas  pecinhas. E eu posso preencher esses buracos com o  meu conhecimento de mundo ou por influência externa”,  ilustra a psicóloga Lilian Milnitsky Stein, professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

“As memórias são representações psíquicas do passado. Mas não são absolutas, porque se reconstroem toda vez”
– Martín Cammarota, biólogo

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A falsa memória seria, portanto, um efeito colateral  da nossa capacidade mental de atualização e complementação das lembranças. “Uma memória antiga que não foi  muito utilizada pode ser mais vulnerável a alterações.  Mas se for uma memória antiga que foi ratificada ao  longo do tempo, vai ser difícil transformá-la em outra  memória diferente, porque ela teve as conexões fortalecidas”, acrescenta o biólogo Lucas de Oliveira Alvares,  chefe do Laboratório de Neurobiologia da Memória da  Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 

A maleabilidade, por outro lado, também é fundamental no processo de ressignificação de traumas. “Algumas abordagens terapêuticas se baseiam em reaprender a  olhar essas memórias. É óbvio que nunca vão se tornar  positivas, mas não vão ter aquela carga que acaba adoecendo as pessoas – como ocorre com experiências de  guerra ou desastres ambientais”, pontua Lilian Milnitsky Stein. Mais do que determinar a verdade da memória em  si, o foco é entender o que o acontecimento representou. 

Além disso, hoje já é possível implantar falsas memórias  totalmente artificiais a partir de estímulos sensoriais e  pequenos choques elétricos – pelo menos em animais criados em laboratório. Em um estudo publicado em 2019, cientistas da Universidade de Toronto conseguiram fazer com que camundongos reagissem de forma positiva ou  negativa a um determinado cheiro sem nunca tê-lo experimentado. Os pesquisadores estimularam, ao mesmo tempo, os neurônios que decodificam aqueles odores e uma outra região do cérebro responsável por atribuir sensações de estresse ou recompensa. Ao sentirem o odor real, os animais que tinham sido estimulados anteriormente demonstraram  reações de medo ou interesse, ao contrário daqueles que  não tinham passado pelo procedimento.  

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Esse tipo de experiência, porém, não é tão facilmente replicável em humanos: ao contrário dos ratinhos, cujo  o mundo se resume à gaiola e aos testes em laboratório,  nossas novas memórias são formadas a partir de outras  preexistentes. “É muito difícil determinar onde uma  memória começa e termina. O que tem início e fim são  os eventos, não as memórias”, observa Cammarota.

Efeito Mandela

Historiadores, sociólogos, filósofos, neurocientistas e juristas seguem se debruçando sobre o tema de quão fidedignas são nossas memórias – e até que ponto podemos  utilizá-las sem questionamento. Parte da explicação para essa dúvida tem a ver com o fato de que nossas lembranças,  muitas vezes, não são exatamente “nossas”. Na primeira  metade do século 20, o filósofo francês Maurice Halbwachs ajudou a aprofundar um conceito hoje consagrado: a noção da memória coletiva. Ele percebeu que, através de diferentes vivências e informações retiradas da literatura, jornais e fotografias, era comum acabarmos incorporando uma série de fatos que nunca testemunhamos. A tal “memória coletiva” era carregada através dos tempos e acabava se confundindo com a nossa vida particular.  Preso pelos nazistas, Halbwachs morreu em 1945 no campo de concentração de Buchenwald. Coube a seus seguidores, anos mais tarde, perceber na prática como a própria guerra que o vitimou passou a ser incorporada às memórias dos sobreviventes, por vezes gerando uma confusão e uma invenção: camponeses franceses que passaram pela Segunda Guerra, por exemplo, lembravam de suas terras sendo invadidas por soldados alemães com “capacetes pontudos”. Só que os nazistas não usavam essa indumentária: esses capacetes eram das tropas dos soldados do kaiser Guilherme II, duas décadas mais cedo, na Primeira Guerra. Ainda assim, a memória da invasão original,  contada e recontada pelos pais, acabaria por se misturar com aquilo que os filhos viveram anos depois.

“É muito difícil determinar onde uma memória começa e termina. O que tem início e fim são eventos, não as memórias”
– Martín Cammarota, biólogo

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Mais recentemente, a ideia de falsas memórias mantidas  por um grande grupo ganhou um apelido: o Efeito Mandela. O nome se deve ao fato de que muitas pessoas tinham certeza da morte do lendário ativista sul-africano nos anos 1980. Na verdade, Nelson Mandela viveu para ver o fim do  Apartheid, tornou-se o primeiro homem negro a presidir o  seu país imediatamente após isso e só faleceu em 2013, aos 95 anos. E é possível que você já tenha sentido um efeito  parecido em sua própria cabeça, porque há um caso brasileiro bastante notório: ao relembrar o 11 de setembro de  2001, dia do atentado às Torres Gêmeas, muitas pessoas que eram crianças na época acreditavam ter visto a interrupção de um episódio de Dragon Ball Z pelo plantão da  Rede Globo, anunciando o choque do primeiro avião em  Nova York. Era uma lembrança vívida, afinal, tratava-se de  uma das manhãs mais marcantes da infância. Mas era falsa: quando a história ganhou pernas, os arquivos da TV  vieram à tona e se descobriu que o anime só entraria no ar  naquele dia mais de uma hora após a programação ser interrompida com o noticiário ao vivo. Provavelmente, a  memória de outras manhãs assistindo a desenhos se misturou com o que de fato aconteceu naquele dia e foi retroalimentada pelo relato de outras pessoas na internet. A confusão era tão poderosa que tinha gente que “sabia” exatamente até qual era o tal episódio que foi interrompido,  mas, na verdade, não foi. 

As memórias, sejam coletivas ou individuais, vivem  carregadas de emoções e lacunas que alteram nossa percepção sobre a realidade. Mas isso não faz delas menos  importantes: mesmo aquelas factualmente inverídicas  estão contempladas pelo funcionamento normal do nosso  cérebro, assim como o esquecimento. “Mais do que nossos  genes, somos nossas memórias. É por isso que duas pessoas geneticamente iguais ainda são indivíduos diferentes”, reflete Cammarota. E assim como em qualquer biografia, nossos erros também fazem parte da nossa história.

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