Simone Tebet: Planejar um dia de cada vez
Ministra do Planejamento é capa da edição de março de Claudia
Aos 5 anos, ela foi levada pelo pai para um bairro longe de casa. A escuridão a impedia de reconhecer as pessoas reunidas ali ao redor do poste de madeira. A menina nada entendia até que, depois de uma contagem regressiva, a luz acendeu pela primeira vez no bairro Guanabara, no município de Três Lagoas, no Mato Grosso do Sul. Ela enxergou alguns dos seus colegas de sala e eles comemoraram juntos a chegada da iluminação pública em mais um bairro de sua cidade natal, onde o pai era prefeito. “Assim fui despertada para a desigualdade: eu tinha geladeira, podia estudar de noite, enquanto a energia elétrica ainda era desconhecida por muitos, não era justo. Descobri ali que a política podia fazer bem para as pessoas”, diz Simone Tebet (MDB-MS), 53 anos.
Hoje Ministra do Planejamento e Orçamento, Simone tem nas mãos o poder de mudar realidades como essa da sua memória de infância. E quer usar cada instante para esse propósito. Às vésperas de uma decisiva reunião do Conselho Monetário Nacional (CMN), numa apertada brecha na agenda reservada para receber a equipe de reportagem de CLAUDIA, foi gentil e objetiva em iguais medidas. O tempo todo, do momento de vestir-se para sair de seu apartamento alugado em Brasília até chegar à Esplanada e despachar intensamente com sua equipe, recebendo secretários em seu gabinete e estabilizando turbulências, manteve o foco, uma demanda de cada vez. Não se trata de mero protocolo ou postura para campanha: é a rotina de quem sabe que cada decisão conta na trajetória de uma mulher. “Mais do que coragem, é a indignação que me move, me transformando em um ser político.”
Simone é filha do ex-governador do Mato Grosso do Sul e ex-presidente do Senado, Ramez Tebet (1936-2006), que também foi advogado, sociólogo, professor e promotor de justiça. “Costumo dizer que nasci dentro da política do interior do interior do Brasil. Fui apresentada a ela não porque gostava, mas por querer estar perto do meu pai”, conta. A mais velha de quatro irmãos também tem uma conexão especial com a mãe, Fairte Nassar Tebet, professora formada em Letras, uma religiosa amante da educação e da cultura. “Dois ensinamentos dela serão heranças para as minhas filhas: ‘Deus nos cobra na justa medida do que ele nos dá’ e ‘Ninguém é feliz vendo a infelicidade alheia’.”
Em Campo Grande, para onde se mudou com a família após o pai ser eleito deputado estadual, ainda durante a ditadura militar, estudou em colégio religioso somente para meninas. A mudança para a escola mista ocorreu já na redemocratização, quando começou a ter contato direto com a política. “Participava das manifestações pacíficas. Não era só o meio familiar que era altamente politizado. Eu vivi uma época que exigia posicionamento de todos nós. Tinha consciência da importância do meu papel como jovem e cidadã, mesmo em um tempo em que a timidez me dominava. Mas nunca estava à frente dos holofotes, não era liderança ali.”
Três anos depois, Tebet passou no vestibular para Direito, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Era o mesmo ano em que foi instalada a Assembleia Nacional Constituinte, com o objetivo de elaborar uma Constituição democrática para o Brasil. Os trabalhos da Constituinte foram encerrados em 22 de setembro de 1988, após a votação e aprovação do texto final da nova Constituição do Brasil. “A gente estudava a Constituição antiga enquanto via cada capítulo da nova ser construído. Sentada no sofá da minha casa, vi Ulysses Guimarães [então presidente da Assembleia Nacional Constituinte] lendo a Constituição. Aquilo para mim foi um deslumbramento”, recorda-se.
Aos 22 anos, substituiu o pai, professor de direito de administrativo, na faculdade local. Começou a lecionar sobre como se administra uma cidade, um estado ou um país. “Passaram a pressionar o meu pai.” Ele, que nunca havia a estimulado, travou a primeira conversa sobre seguir carreira na vida pública. “Quando distribuía santinhos, vi como tudo era mais difícil para as mulheres. O meu pai foi o primeiro a me mostrar que lugar de mulher é onde ela quiser”, afirma. Depois, Tebet especializou-se em ciência do direito, pela Escola Superior de Magistratura, e formou-se mestre em direito do Estado, pela PUC-SP. Lecionou na UFMS, na UCDB, na Uniderp e na Faculdades Integradas de Campo Grande (Fic-Unaes). “Estar professora em uma universidade é o exercício da política em sua essência.” Ela também foi Consultora Técnica Jurídica e Diretora Técnica Legislativa (1995 a 2001) na Assembleia Legislativa do Mato Grosso do Sul, onde aprendeu a dominar o regimento do poder legislativo.
Ser a primeira na estrada da política tantas vezes, já no século 21, demonstra o quanto ela é árdua para a mulher. Por outro lado, reforça o meu compromisso de abrir portas para outras
Simone Tebet
Convencida a enveredar pela política partidária, em 2002 foi eleita deputada estadual. Na sequência, iniciou a trajetória de várias primeiras vezes: primeira prefeita de sua cidade natal, Três Lagoas; primeira vice-governadora de Mato Grosso do Sul. Já no Distrito Federal, desde 2015: primeira presidente da Comissão Permanente Mista de Combate à Violência contra a Mulher; primeira mulher a liderar a bancada do MDB no Senado; primeira presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ); primeira mulher a concorrer ao cargo de presidente do Senado; primeira líder da Bancada Feminina no Senado.
Como senadora, Tebet proferiu cerca de 300 discursos em plenário; apresentou mais de 50 proposições entre projetos de lei, Propostas de Emenda à Constituição, Requerimentos e Indicações; e foi relatora de cerca de 120 proposições. “No Senado, o feminismo aflorou muito mais em mim”, afirma. Seu papel desde então não passou despercebido. Ela foi considerada pela BBC uma das mulheres mais influentes e inspiradoras do mundo em 2022, ao lado de outras duas brasileiras: a ativista e jornalista indígena Alice Pataxó e a primeira mulher trans negra eleita para o Congresso, Erika Hilton.
O sentimento de orgulho vem, segundo Tebet, acompanhado de um misto de tristeza. “Ser a primeira na estrada da política tantas vezes, já no século 21, demonstra o quanto ela é árdua para a mulher. Por outro lado, reforça o meu compromisso de abrir portas para outras.” Ela reconhece as ações de outras pioneiras, como as sufragistas, filósofas, escritoras e ativistas de direitos humanos; e pondera que ainda é preciso “chutar a porta muitas e muitas vezes”. “Se somos a maioria da população, ainda somos a minoria em quase tudo. A minoria nos espaços de poder, no espaço de fala, de voz e de vez.”
Tebet evidenciou para o país que é possível vencer o timbre masculino durante a sua atuação na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid-19, que vigorou entre abril e outubro de 2021, com o intuito de investigar supostas omissões e irregularidades nas ações do governo do presidente Jair Bolsonaro (PL) durante a pandemia. “Nenhuma mulher havia sido indicada para a CPI. Eu, como líder da bancada feminina, impus a pedido das parlamentares a oportunidade das mulheres, que já não tinham direito a voto, a ter pelo menos direito a voz. Com isso, definiu-se que, a cada cinco homens, uma mulher podia falar. A partir daí, começamos a fazer parte dos processos e a CPI deu uma guinada”, conta.
Chamada então de “descontrolada”, foi ela, por exemplo, que conseguiu fazer com o que o deputado Luis Miranda (Republicanos-DF, então no DEM, atual União Brasil) mencionasse o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), como responsável citado por Bolsonaro por suposta irregularidade na aquisição da vacina indiana Covaxin.
Os posionamentos assertivos e a defesa convicta do diálogo, inabalável mesmo diante dos episódios de violência política, ampliaram a sua visibilidade nacional, mas estão longe de torná-la unanimidade. “Tenho consciência que na vida política a gente não entra só para ganhar, mas também para defender projetos e ideias, plantar sementes para uma colheita coletiva. A minha vida foi um pouco isso”, analisa.
Ela enumera batalhas fracassadas, como quando ficou atrás de Renan Calheiros na disputa interna no MDB pela candidatura à presidência do Senado ou perdeu a presidência da Casa para Rodrigo Pacheco (PSD). Mas relativiza e vê vitórias nas derrotas: “Quando perdi para Renan, entenderam que eu não podia ficar sem uma comissão, me deram a CCJ. Quando perdi para Pacheco, ele se viu forçado a criar a liderança da ban – cada feminina; quando deixaram as mulheres de fora da CPI da Covid, meu partido teve certeza que eu poderia ser candidata à presidência da República”, exemplifica.
O padrão se repetiu na corrida à presidência da República, em 2022. Tebet estreou na disputa em um momento de polarização política, com discursos de ódio e crises artificiais, que ela entendia levar o Brasil para o abismo. Aproximando-se da pauta progressista, se colocou, então, como uma opção do chamado centro democrático, somando apoio de outras legendas. As palavras “amor ” e “coragem ”, que marcaram sua campanha, estão nos quadros e nas cartinhas que recebe diariamente. Muitas das admiradoras são meninas de 16, 12, 9 anos de idade, fato que a Ministra compartilha cheia de alegria.
A receptividade não é a mesma em seu estado natal, principalmente depois da der – rota no primeiro turno das eleições. “Sei do meu custo político, pois meu estado é extremamente conservador e bolsonarista, mas eu não podia estar do lado errado da história. Como senadora, vi nos últimos quatro anos o avanço do projeto armamentista, anticiência, antiambientalistas e tudo o mais que flertava com o extremismo e a autocracia. Entrei de cabeça na campanha de Lula.” Ela, que não poupava críticas ao PT, se tornou símbolo na vitória dele.
Na composição do novo governo, assumiu uma das principais pastas. “Não é só cortar gastos, é preciso ter uma visão moderna de gestão, garantindo a qualidade do gasto e das políticas públicas. Isso significa planejamento.” Tebet anunciou a criação de uma nova secretaria, dentro do Ministério, que vai monitorar e avaliar as políticas públicas. “É algo inédito, é respeito com o dinheiro público”, exalta.
Está muito cedo para falar sobre 2026, temos que sobreviver em 2023. Eu não consigo enxergar um futuro sem minimamente passar por uma reforma tributária. Não se faz o social sem o fiscal
Simone Tebet
As polêmicas e as especulações — e não raro as fakenews — que giram em torno de seu nome não são poucas. A atuação na bancada ruralista, alguns posicionamentos passados sobre demarcações de terras indígenas e até uma fala recente sobre a dificuldade de contratar mulheres negras para trabalhar em sua equipe dão pano para a manga. O seu foco, entretanto, está em usar a reforma tributária para avançar com políticas públicas eficientes, gerando emprego e renda. “Não se faz o social sem o fiscal”, reitera sempre que pode.
Com agenda cheia, Tebet encontra nos momentos em família um acalento. Casada com o deputado estadual Eduardo Rocha (MDB-MS), atualmente secretário de Governo e Gestão Estratégica do Mato Grosso do Sul, ela é mãe de Maria Eduarda, 22 anos, e Maria Fernanda, 25, que as visitam uma vez por mês em Brasília, assim como ela é recebida em São Paulo. O Mato Grosso do Sul, onde a mãe mora e o marido trabalha, também está na rota. Nos intervalos, as vídeo-chamadas contribuem para todos se manterem unidos. Quando sozinha em seu apartamento no DF, costuma preparar suas refeições, sem abrir mão do ritual com chás.
—“Tenho todos os apetrechos de preparo”. Fazer atividade física era uma resolução para 2023, mas o tempo é escasso. Pular o horário de almoço ou comer na frente do computador acontecem com frequência. Seu principal cuidado consigo mesma é dormir bem. Quanto à sucessão, o assunto não a deixa confortável. “Está muito cedo para falar sobre 2026, temos que sobreviver em 2023. Eu não consigo enxergar um futuro sem minimamente passar por uma reforma tributária. Me incomoda gastar tempo falando em sucessão se a gente acabou de sair da eleição”, declara.
A Ministra frisa que também é professora, jurista e mãe, além de política. “Eu faço política desde os 15 anos, portanto já são mais de 35 anos, sendo 20 em mandatos consecutivos. Eu estava pronta para voltar para casa após a candidatura à presidência em 2022. Estarei pronta para voltar em 2026 também”, afirma. Ainda há muito pela frente, mas Simone Tebet tem a convicção que o protagonismo feminino pode contribuir para um país melhor e com menos desigualdade, um plano de cada vez.
CRÉDITOS
TEXTO: PAOLA CARVALHO
FOTOS: FÁBIO SETTI
STYLING: PAULA JACOB
BELEZA: LANUSA QUEIROZ
DIREÇÃO DE ARTE: KAREEN SAYURI
CAMAREIRA: CLEIDE BUENO