Li Desonra, famoso romance do sul-africano Coetzee, há alguns anos, mas até hoje me lembro bem de uma pequena observação sobre o ser humano logo nas páginas iniciais: o crânio e o temperamento são as partes mais duras do nosso corpo. O crânio, a Wikipedia me garante: nosso osso mais rígido fica lá. Quanto ao temperamento, há controvérsias. Pelo menos, segundo uma tia minha.
Para minha tia, o temperamento muda tanto ao longo da vida que, aos nossos olhos adultos, nossa infância pode parecer, pelo menos em alguns momentos, um filme vivido por outra pessoa – e há muito tempo. Podemos ter sido crianças sapecas, adolescentes introvertidos e adultos nem lá, nem cá. Já fomos medrosos e hoje somos corajosos. Um amigo meu sempre foi um estudante preguiçoso, que dava trabalho para os pais, e, hoje, é um acadêmico que lê o dia todo. Ao longo da vida, mudamos: eu, você e todo mundo. Então, a visão da minha tia sempre me pareceu bem razoável, apesar de eu ter gostado muito do livro do Coetzee.
Bom. Semana passada, entrevistei um acadêmico – não o meu amigo, mas um sujeito tão interessante e consistente quanto – e me lembrei da minha tia e sua defesa apaixonada da capacidade de mudança que cada um tem.
Depois da entrevista propriamente dita, tomamos um café e ele discorreu um pouco sobre o mundo, as coisas, a vida. E me deu sua visão dessa história do crânio e companhia: somos, todos nós, uma mistura de temperamento e aprendizado. O temperamento nasceu conosco. Com sua rigidez craniana, está arraigado no nosso interior desde pequenos: é bonito ver como dois irmãos criados em uma mesma casa têm o temperamento diferente. Já o aprendizado dispensa apresentações: é o que lemos, o que vemos, o que ouvimos das nossas tias, dos jornais, da escola e do mundo em geral. Nos apropriamos daquilo de modo particular e pronto, ganhamos mais uma camada nas lentes com que enxergamos lá fora.
Nossa personalidade, para o meu entrevistado, é justamente a mistura desse temperamento fixo, que já carregávamos conosco antes de aprendermos a andar, e o que aprendemos ao longo da nossa caminhada.
Penso no Coetzee. Penso na minha tia. Penso no meu entrevistado. E penso em mim pequenininha. Trinta anos atrás. Exatamente com a idade que a minha filha tem hoje. Olho minhas fotos, tento rever como eu via as coisas. Mudei muito, por um lado. E mudei nada, por outro. Algumas características minhas realmente devem até concorrer com o meu crânio em termos de rigidez. Outras, achei por bem largar pelo caminho.
Temperamento ou personalidade, não importa muito a palavra que usamos. O que importa, talvez, é que as pessoas mudam demais ao longo da vida. Algumas mais, outras menos – tem gente que fica quase irreconhecível. Mas existe uma parte nossa que está sempre lá. Às vezes, gritando. Outras vezes, mais controlada ou só como pano de fundo. Mas está lá. Acho que qualquer um de nós é capaz de reconhecê-la. E, bem, ela vai continuar lá – só nos resta aceitar e viver em paz com ela.