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Mulherio das Letras: Um cardume rebelde e potente

João Pessoa é o lugar de nascimento do Mulherio das Letras e palco do 1º encontro presencial, com mais de 500 mulheres de todas as idades e de todo o país.

Por Liliane Oraggio
Atualizado em 16 out 2017, 13h14 - Publicado em 15 out 2017, 17h47

Foi no lugar do Brasil onde o sol nasce mais cedo que aconteceu o 1º Encontro do Mulherio das Letras, reunindo mais de 500 mulheres de todas as idades, vindas de todas as partes do país. Quem foi a João Pessoa, capital da Paraíba, contornada pelo Atlântico muito verde, entrou num imenso cardume para participar de rodas de conversa, lançamentos de livros, saraus, microfones abertos para mostrar a arte da palavra feminina e feminista em suas múltiplas formas.

Leia mais: O rebelde Mulherio das Letras leva 500 escritoras a João PessoaO rebelde Mulherio das Letras leva 500 escritoras a João Pessoa.

Todas foram até lá, toparam sair de suas zonas de “des-conforto” para participar de um evento colaborativo, não pautado por interesses do mercado editorial, e sim pela vontade de tornar visível a produção literária das mulheres brasileiras e que ainda hoje enfrentam obstáculos machistas e racistas e ainda são consideradas menores nos meios literários.

(Adriano Franco/Divulgação)

O chamado veio da premiada escritora Maria Valéria Rezende, freira, militante política, educadora popular, radicada em João Pessoa, que aos 74 anos, podia muito bem ter sossegado o facho, mas, graças aos céus, tem uma inquietude infinita. Indignada com a falta de mulheres entre os ganhadores do Prêmio Jabuti 2016, numa conversa com outras escritoras, resolveu criar um grupo na rede social, buscando gente envolvida com a Literatura. Em fevereiro deste ano, ela apitou e no dia seguinte havia quatro mil mulheres participando das conversas virtuais. Foram meses de intensa troca de experiências, discussões acaloradas e notícias sobre prosa e poesia, em livro e em outras plataformas. Surgiu daí o desejo do encontro presencial. Onde? Em João Pessoa, fora do eixo Rio-São Paulo, fora dos formatos de eventos literários, fora das ordens sociais estabelecidas. Em poucos meses, o evento colaborativo foi sendo tecido, organizado por muitas mentes, muito diversas. O resultado foi uma bagunça organicamente organizada, lembrando o fluxo de um grande cardume, onde todas foram incluídas.
“Mesmo se der errado, já deu certo, estamos todas aqui nesse Movimento em movimento”, disse Maria Valéria, na abertura, diante de um auditório repleto e emocionado. “Só a preparação do encontro já gerou três livros: uma coletânea contos e crônicas, uma coletânea de poemas e o livro Outras Carolinas, do Mulherio das Letras da Bahia, um material de muita qualidade, produzido a muitas mãos e fora dos meios convencionais”.

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A homenageada foi Maria Firmina dos Reis (1825-1917), escritora maranhense negra, considerada a mãe da literatura afro-brasileira. Em seu romance “Úrsula” é a mulher que narra a sociedade patriarcal e escravocrata. Imagina o que isso representou em 1859, quando livro foi lançado? Porém, quem já ouviu falar de Maria Firmina?

O tempo passou, muita água rolou de lá pra cá, mas em pleno século 21 o racismo, a misoginia e a invisibilidade das mulheres continua forte e despertando guerreiras. Joserlaine Freitas, 23 anos, saiu do distrito de Itapecerica, interior da Paraíba, para vir ao Mulherio. Ela é a primeira da família de agricultores a ir para a Faculdade. Estudando Letras, descobriu-se contista: “Venho de um lugar pequeno, extremamente patriarcal. Ser mulher na nossa sociedade é extremamente difícil, ser mulher negra, então, mais ainda. Existem muitos estigmas a serem vencidos e estou aqui presente no coletivo para lutar pelo nosso espaço… e tenho paciência”, fala afiada, traços delicados, em suave militância.

(Adriano Franco/Divulgação)

Viva, vivíssima, Conceição Evaristo, veio compor o mulherio. A escritora negra, nasceu há 73 anos,em uma favela de Belo Horizonte. A mãe criou sozinha dez filhos e ela foi galgando os passos da carreira acadêmica, lecionando na Literatura, hoje na Universidade Federal de Minas Gerais. Ganhou o prêmio Jabuti em 2015, por seu livro de contos Olhos D’Água. Ela fez questão de marcar: “O espaço que temos não é uma concessão. É uma conquista”. E a luta é imensa e diária.

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Em tempos sombrios como estes, no Mulherio o “Fora Temer” também foi vigoroso. Somando todas aquelas vozes femininas, o grito foi ainda mais forte. O grupo de Brasília formado por onze escritoras, veio com a missão de mostrar que na Capital Federal há vida, além da lama da política. “Brasília escreve e tem escritoras fazendo excelente literatura”, diz o manifesto elaborado por elas. Por exemplo, Alessandra Roscoe tem 33 livros publicados e foi finalista do Prêmio Jabuti: “Mas, sempre me perguntam quando eu vou começar a escrever de verdade! Pois, no Brasil, os livros para a infância são considerados literatura menor. Neste ano de crise, bancamos fazer o Festival Uni duni Ler Todas as Letras, de estímulo a leitura, sem qualquer patrocínio. Nesse momento, pela internet, o Centro de Referência para Leitura da América Latina e Caribe, da UNESCO nos descobriu e reconheceu o trabalho como inovador e modelo para o mundo”, conta a autora. Alessandra é uma incansável formadora de novos leitores desde a barriga, estimulando as mães e os pais a lerem para os filhos ainda na gravidez.

Cinquenta escritoras gaúchas se fizeram presentes em uma imensa colcha com poemas e frases bordadas à mão, por elas mesmas, ideia da artista visual Marilice Corona. Parece que em cada um daqueles pontos está a persistência, o capricho e o juntar de forças para criar o grande tecido, a grande renda que é o Mulherio das Letras. Peça de 2m x 2m, irresistível de ler, quadro a quadro.

As Rodas de Conversa começaram na sexta e grupos de cinquenta pessoas se reuniram para discutir a Literatura Feminina e Feminista, o Literatura Negra, o Mercado Editorial. Em si, essa conversas são muito potentes, juntando professores, doutores, especialistas, editoras, escritoras independentes, apaixonados por leitura, que talvez jamais se encontrassem se não fosse esse espaço aberto. Em comum, todas as rodas tiveram a missão de pensar estratégias para que a Literatura feita por mulheres negras, brancas, ricas, pobres, interioranas, urbanas, apareça mais. E para que a nossa voz reverbere em todos os cantos.“Os encontros de mulheres são vistos pejorativamente, porém o Mulherio me surpreendeu pela capacidade de diálogo entre tantas pessoas”, pontua Natália Barros, poetisa e performer paulista. “Esse é um grande exercício e aqui estamos fazendo isso com muita delicadeza. Temos muito que aprender fora do eixo Rio-São Paulo”, completa.

E ano que vem tem mais! A prefeitura de Guarujá, no litoral de São Paulo, convidou o Mulherio das Letras para ser cardume lá, em outubro de 2018.

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(Adriano Franco/)

Por enquanto, o Mulherio continua reverberando no site oficial.

Radar Mulherio

Marília Arnaud – a romancista paraibana é autora de Liturgia do Fim (ed. Tordesilhas). Ela constrói um personagem homem para mostrar o machismo entranhado no cotidiano das famílias brasileiras.

Rizolete Fernandes – poetisa, do Rio Grande do Norte, ativista feminista na década de 80, acaba de publicar o livro Tecelãs Tejedoras (ed. Sarau das Letras/Trilce Ediciones), edição bilíngue. Unindo a pesquisa cuidadosa com o talento poético, ela reconta a biografia de 20 mulheres que influenciaram os rumos da humanidade, da grega Safo a Maria Firmina dos Reis, passando por Nise da Silveira, Frida Kahlo, Simone de Beauvoir, Maria Sylvia e Dona Militana, potiguara, considera a maior cantora de versos brasileira.

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Bianca Santana – jornalista, professora universitária, militante feminista, autora de Quando Me Descobri Negra (ed. Sesi), que mostra como todo o processo de “branqueamento” dos negros no Brasil, desde o berço, dentro das próprias famílias. Inclusive, ela com 30 anos descobriu-se negra há apenas 10, antes era “morena”.

Constância Duarte – doutora em Literatura Brasileira, é autora de Literatura e Feminismo no Brasil: Trajetória e Diálogo” (ed. Diálogo), fruto da pesquisa em 143 jornais e revistas que circularam no século 19. Agora, ela mergulhada pesquisando a vida de Nísia Floresta Brasileira Augusta (1810-1885), considerada a primeira feminista brasileira, foi a primeira mulher a escrever em jornais. O nome de Nísia foi centenas de vezes citados nas rodas do Mulherio.

Mariana Tabosa – jovem, autora paraibana, transformou “escritos de divã” no livro A Mulher-Fósforo (Linguaraz Editor). Da vida cotidiana ela faz poesia delicada, que tem despertado interesse das feministas: “Nada do que vivi é especial, só aquilo que não vivi”, define-se. Veio para o Mulherio com o marido Matheus Zica, pesquisador de estudos gênero, para quem teve o prazer de apresentar Clarice Lispector. O casal participou junto da Roda de Conversa sobre Feminismo. “Como homem me senti bem recebido aqui. A causa das mulheres deve ser abraçada por todos”, diz ele. Há esperança!

Maria Rezende – jovem autora carioca, acaba de lançar seu terceiro livro Carne no Umbigo, (autopublicação). Performática, declama maravilhosamente e usa a poesia (sua e de outros) para celebrar casamentos (www.casarcompoesia.com). De muita inquietação e humor são feitos seus poemas que denunciam o machismo promovido pelas próprias mulheres e falam de amor, de morte de revolta. Na hora da raiva, ela propõe: “mastigar as cadeiras e jamais, sentar-se!”

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Veruschka Guerra – jovem paraibana, já ilustrou mais de 30 publicações, nacionais e estrangeiras. Com seu livro O Sonho de Karim foi indicada ao Jabuti em 2015. Além de dominar o desenho e a cor, em Quando Mamãe Adoeceu de Belise Mafeoli (ed. Paulus), Veruschka arrasa com ilustrações a nanquim, em preto e branco sua expressão singular fica ainda mais evidente.

Roberta Asse – designer gráfica, escritora e pesquisadora, escreve e ilustra seus próprios livros. Formada em Arquitetura, vai buscar na antropologia da infância o eixo de suas obras. Recentemente, lançou 8 livros da Coleção das Crianças Daqui,  do Projeto Criadeira de Histórias. Resultado de suas andanças pelos interiores do Brasil conhecendo brasileirinhos inspiradores. Talento puro em ação, Roberta criou o logo do Mulherio das Letras: “Desenhei a marca inspirada pelo olhar para dentro e para fora, de quem a mesmo tempo lê e escreve mundos, acessa, oferece, como um livro aberto”, diz.

Poesia Têxtil  – é um grupo de Goiás, que colocou o Bordado na Academia e usa o pano como suporte para poesia de protesto e para trabalhar a violência doméstica, o machismo, o racismo. Durante a oficina no Mulherio, o contorno de um corpo foi traçado em tecido preto e foram bordados ali palavras que ferem as mulheres, escolhidas na roda de conversa: vadia, comporte-se, vagaba… “Há muitas escritoras que não fazem literatura no papel e também não são vistas. Trabalhamos muito no trânsito da palavra com a imagem”, diz Carol Piva, doutoranda na Universidade Federal de Goiás.

Bondelê – um novo canal de livros e entrevistas com escritoras brasileiras, gratuito no youtube e fora do perfil youtuber (graças!). Tem a missão de apresentar literatura nacional feminina/feminista. Criado por Mariana Mendes e Carolina Freitas da Cunha, elas abriram o microfoneeproduziram no Mulherio um material riquíssimo para um documentário com as escritoras presentes, dando voz e fazendo um retrato fiel das mentes envolvidas com a literatura em todos os rincões do país. “Queremos mostrar a diversidade, fazer um retrato caleidoscópico das mulheres envolvidas com Literatura”, diz Mariana.

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