Os riscos que elas correm
A vida nada fácil e as reivindicações das mulheres que trabalham como entregadoras para os aplicativos de delivery
Imagine trabalhar dez, doze horas por dia e não ter um banheiro para usar. É essa a realidade do dia a dia de muitas mulheres que fazem entregas nas grandes cidades. “Nesses tempos de pandemia, já teve dia em que eu não achei um lugar que pudesse utilizar o banheiro, pois a maioria deles está fechada. Onde os pedidos são retirados, não podia. Nem em posto de gasolina podia”, conta Giovana*, 33 anos, que começou a trabalhar com entregas em São Paulo por não encontrar vagas de emprego na área de Recursos Humanos. O nome é fictício e é como vamos chamá-la, já que à beira de uma greve, a entregadora teme represálias que pode sofrer dos aplicativos.
Ela e muitos outros entregadores se mobilizam para uma paralisação nacional dos entregadores de aplicativo por todo o país, na próxima quarta-feira, 1o de julho. Eles reivindicam melhores condições de trabalho na relação com iFood, Rappi, Uber Eats, Loggi e James, para quem prestam serviço. Querem, entre outros direitos, mais segurança, alimentação durante a jornada, licença-remunerada em caso de acidente, o fim do sistema de pontuação e bloqueios indevidos por parte dos aplicativos, além de taxas mais justas. Em média, mesmo trabalhando todos os dias do mês, um entregador ganha em torno de apenas 900 reais.
O que já não era fácil, com a pandemia ficou ainda mais difícil. As dificuldades que a categoria enfrentava diariamente se acentuaram com a crise do novo coronavírus.
“Passei por uma situação, onde cheguei para fazer a entrega e recebi do cliente um kit de proteção contra o vírus. Uma atitude diferente de muitos”, relata Giovana.
Segundo o iFood, para proteger os entregadores enquanto trabalham, foram distribuídos mais de 818 mil itens de proteção individual, entre os dias 1o de abril e 25 de junho. Cada entregador teria recebido um kit com quatro máscaras reutilizáveis e 500ml de álcool em gel.
O medo de contrair a doença é diário. A atuação dos entregadores é considerada essencial. O trabalho segue com alta demanda. E baixa remuneração. Como se não bastasse, para as mulheres tudo é ainda mais difícil, por atuarem em um espaço majoritariamente masculino.
De acordo com uma pesquisa da Fundação Instituto Administração (FIA), divulgada pela Associação Brasileira Online to Offline (ABO20), 97,4% dos entregadores são homens. Mas esse número não quer dizer que elas, entregadoras, não existam. “Uma das maiores dificuldades é mostrar que somos tão capazes quanto homens para fazer entregas. E, assim, vamos tomando nosso espaço e mostramos que somos capazes de muitas vezes fazer até melhor o trabalho que nos foi passado”, desabafa Giovana. Ela tem dois filhos e mora com a mãe. Seu trabalho é a principal fonte de renda da casa. Com a chegada da pandemia, os problemas financeiros começaram a aparecer. “As taxas (de remuneração) baixaram, então, comecei a ter vários pagamentos atrasados. Na minha casa sou eu sozinha pra tudo, ficou complicado, o impacto foi grande”, afirma e acrescenta, “ganhei cesta básica, pois chegou a faltar coisas. Só com o trabalho de entrega não é suficiente, comecei a vender bolos de pote pra complementar a renda”.
Avançando por todo o país
As reivindicações por melhores condições começaram com força em São Paulo, mas entregadores de outras cidades têm se movimentado para que a greve aconteça onde trabalham. Pâmela Conceição, 21 anos, é entregadora em Pernambuco. “Aqui não chegou tão forte, estamos trabalhando e juntando forças para iniciar o movimento por aqui, conversando com os entregadores e tentando puxar cada vez mais pra junto”.
Pâmela fazia entregas apenas como um bico para complementar a renda, e, antes de ingressar de fato na profissão, era auxiliar-administrativa. “Ganhava um pouco mais de um salário-mínimo, mas com a chegada da pandemia, fui demitida. Fora a confusão com meu pagamento, acabei tendo que tornar as entregas minha fonte de renda principal”, conta.
Pâmela reforça que a profissão em si já é muito arriscada, mas quando se trata de mulheres, existem questões ainda mais complexas. “Infelizmente temos que ter o cuidado redobrado. Em um sistema patriarcal, estamos em imensa vulnerabilidade em relação ao homem. Já teve situações de clientes soltarem gracinhas, vezes em que fui entregar bebida à noite e quem me recebia eram caras que já estavam alterados, faziam “brincadeiras” que assustavam um pouco. Mas tento sempre ser rápida e técnica, sem conversa”, explica.
Para os aplicativos, entregadores e entregadoras não são empregados, mas “colaboradores”. Em seus comunicados, usam os termos empreendedores ou autônomos, e também não se colocam como empregadores.
Segundo pesquisa do Instituto Locomotiva e os últimos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, do IBGE (Pnad, 2019), de 2,8 milhões das pessoas que trabalham com aplicativos, 17% delas atuam sem contrato ou carteira assinada. Ainda segundo a pesquisa, cerca de 23 milhões de pessoas estão nessa situação no Brasil.
A questão da segurança é uma das principais preocupações de Pâmela. Trabalhando à noite e aos fins de semana, ela lá presenciou situações de jovens entregadores dormindo nas ruas. “Eles trabalham embaixo de chuva, sem capa. Eu no começo não tinha capa, tive que levantar o dinheiro pra poder comprar, trabalhava toda ensopada da chuva”, explica ela. A precariedade financeira também pesa. “Minha dificuldade é me sentir segura, conseguir fazer minhas entregas tranquila. Eu sou mulher e não me sinto segura, trabalhando com essa única fonte de renda”, conta.
Nas redes sociais, usuários já se mobilizam em apoio ao protesto dos entregadores no dia 1º. A página @tretanotrampo, no Instagram, divulgou um vídeo mostrando maneiras como outros trabalhadores podem ajudar na paralisação. Uma delas é não fazendo pedidos nos aplicativos de entrega. No vídeo, eles reforçam a ideia que as pessoas façam comida caseira e postem nas redes sociais com a hashtag #BrequedosApps. Já é possível encontrar publicações dos apoiadores com fotos, vídeos e recompartilhamentos dos conteúdos sobre a greve.
Veja outras informações sobre o movimento:
O que os entregadores estão reivindicando?
Os entregadores alegam que com a chegada da pandemia, os lucros dos aplicativos aumentaram, mas os reajustes dos valores não foram repassados para eles. Por conta disso, eles pedem o aumento do valor por km, além do aumento do valor mínimo de entrega para que seja compensado o deslocamento.
Auxílio-pandemia e seguro de roubo e acidente
Distribuição de EPIs (equipamentos de proteção individual), e licença remunerada em caso de doença. De acordo com Giovana, “não forneceram equipamentos de segurança, não. Só recebi uma vez do iFood máscara e álcool, mais nada”. Pâmela confirma a informação de que os equipamentos não são fornecidos. “A única coisa que fazem é colocar mensagens e avisos para nos cuidarmos. Se tivéssemos esse apoio (dos EPIs), nosso trabalho se tornaria mais correto e mais seguro”.
Fim dos bloqueios por meio de aplicativos
Segundo eles, os aplicativos rastreiam quem participa dos protestos e realizam bloqueios e desligamentos da plataforma.
Fim da pontuação e restrição de local pela Rappi
A pontuação força os entregadores a ter longas jornadas de trabalho, porque, segundo eles, para conseguir acesso a determinadas áreas, é preciso conquistar uma pontuação mínima por semana – isto significa, que quanto mais entregas fizerem, mais pontos acumulam.