Crise climática vai fazer ao menos 25 milhões de pessoas deixar suas casas
A crise climática está motivando novos fluxos de migração que podem levar de 25 milhões a 1 bilhão de pessoas a deixar suas casas nas próximas décadas
Em uma madrugada do ano passado, na área central de Rio Branco, Damares Ribeiro Curvelo acordou com seu apartamento tomado por fumaça, apesar de as janelas estarem todas fechadas. Uma crise respiratória a levou à emergência do hospital, já cheia de pacientes com os mesmos sintomas que ela.
No Acre, agosto e setembro já viraram sinônimo de queimadas. Damares já estava cansada de viver com as janelas cerradas e ainda assim ter as roupas cheirando a fumaça logo após serem lavadas e o piso diariamente escurecido pela fuligem. Com a pandemia, veio também o medo de não poder ir ao hospital para receber medicação ou inalação no caso de outra crise respiratória. Era o que faltava para transformar a vontade em determinação e sair da cidade assim que possível. “Todo mundo com quem eu tenho contato quer se mudar daqui”, diz.
Do outro lado do mundo, a população da República do Kiribati, um conjunto de mais de 30 ilhas no Pacífico, faz o que pode para permanecer em seu lar. O país é considerado um dos mais vulneráveis à mudança climática. Estima-se que será a primeira nação a se tornar inabitável e perder o seu território devido à elevação do nível do mar, o que deve acontecer nos próximos 30 anos.
Os efeitos já começaram a ser sentidos. Conforme a água invade a terra, ocorre um processo de salinização que atinge o solo – o acúmulo de sais minerais impacta a agricultura e o acesso à água potável.
Os dois casos podem parecer muito diferentes, mas têm um ponto em comum. Se esses deslocamentos ocorrerem, terão sido motivados por questões climáticas – embora para Damares partir seja uma escolha e para o povo do Kiribati provavelmente não haja outra opção. Entre essas duas experiências, existe uma gama de outros movimentos humanos que aumentará com a temperatura.
Refugiado, migrante ou deslocado?
O aumento extremo das temperaturas em certas regiões tornará a vida humana impossível. A elevação do nível do mar inundará algumas das cidades mais populosas do planeta. Desastres ambientais, como furacões, enchentes e incêndios florestais, serão ainda mais catastróficos, levando a evacuações e reconstruções frequentes.
Esses são apenas alguns dos gatilhos que fomentarão novos fluxos migratórios. Os números podem ser difíceis de prever, mas os cálculos variam de 25 milhões a 1 bilhão de pessoas deixando suas casas nas próximas décadas, de acordo com a Organização Internacional para as Migrações (OIM).
Para se referir a esses grupos, o termo refugiado climático tem se popularizado. Embora simbólico e impactante, ele não é tecnicamente correto e seu uso causa mal-estar à comunidade internacional. Segundo Erika Pires Ramos, doutora em direito internacional e fundadora da Rede Sul-Americana para as Migrações Ambientais (Resama), ao falarmos em refugiados, associamos o fenômeno ao regime do refúgio, guiado por uma convenção das Nações Unidas de 1951, que define a pessoa que deixa o seu país temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas.
A questão ambiental não é contemplada nem tampouco os deslocamentos que não cruzam fronteiras. Por vivermos atualmente um cenário muito restritivo à imigração, há o temor de que considerar a ideia dos refugiados climáticos possa fragilizar a situação dos refugiados oficiais.
É interessante, porém, notar que impactos climáticos afetam também os refugiados já reconhecidos e podem provocar novos deslocamentos. Segundo o porta-voz do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, o Acnur, no Brasil, Luiz Fernando Godinho, um terço dos refugiados atuais se encontra em países altamente vulneráveis à mudança climática, que serve também como um multiplicador de vulnerabilidades já existentes. É o caso do grupo étnico rohingya, de Myanmar. Hoje, estão em Bangladesh, região que sofre com monções cada vez mais devastadoras.
Há ainda a questão do imaginário. A palavra refugiado nos remete à imagem de barcos abarrotados cruzando o mar Mediterrâneo ou da caravana que no ano passado atravessou a América Central rumo ao norte. Entretanto, esses fluxos representam apenas uma face do problema. É importante identificarmos as diferentes formas que movimentos podem tomar para reconhecermos quão comuns essas situações já são.
Ao olharmos apenas para o cruzamento de fronteiras, por exemplo, negligenciamos muitas pessoas, pois a maior parte dos deslocamentos acontece dentro de um mesmo território. Em 2019, 24,9 milhões de trânsitos internos ocorreram motivados por desastres ambientais, de acordo com o Centro de Monitoramento de Deslocamento Interno (IDMC).
Desses trânsitos, 23,9 milhões estão relacionados a questões meteorológicas, como tempestades, enchentes, secas e até mesmo temperaturas extremas. São eventos que se agravam e se tornam mais frequentes com o aquecimento do planeta, ou seja, os números só tendem a crescer. O Banco Mundial prevê que, sem medidas concretas de mitigação, por volta de 2050 a mudança climática poderá forçar mais de 143 milhões de pessoas a migrar dentro de seus países nas três regiões mais impactadas: América Latina e Caribe, África Subsaariana e Sul Asiático.
Além do destino, existem outras variáveis que atrapalham o reconhecimento legal dessas pessoas pela comunidade internacional. A partida pode ser permanente, temporária ou sazonal; o motivo, um evento súbito, como um furacão ou uma enchente, ou de início lento, como a seca e a elevação do nível do mar.
Por fim, o movimento talvez seja voluntário ou forçado, proativo ou reativo, e é aqui que cabem os outros dois termos. Deslocamento tem caráter involuntário por definição, já migração carrega uma conotação voluntária. No entanto, estabelecer uma distinção entre o que é forçado e o que é escolha não é tarefa fácil, e essa ambiguidade inibe a vontade política e se torna uma barreira para a criação de mecanismos que respondam às demandas.
Retirantes climáticos
O retirante nordestino é uma figura tradicional no imaginário do brasileiro e, embora nunca o tenhamos classificado como refugiado climático, é movido pela seca e desertificação, ambos problemas ambientais que serão exacerbados com o aumento da temperatura global.
Como nossos deslocamentos serão majoritariamente internos, e o sertão será novamente um foco de crise, essa experiência histórica é um bom ponto de partida para entendermos como lidar com os fluxos humanos que a mudança climática criará no Brasil. Andrea Pacheco Pacífico, coordenadora do Núcleo de Estudo e Pesquisa sobre Deslocados Ambientais (NEPDA), da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), diz que o poder público sempre teimou em categorizar essas pessoas como migrantes voluntários ou econômicos e vê como fundamental a classificação correta como deslocados para que o Brasil se responsabilize internacionalmente pela proteção dos direitos deles.
Para ela, o país não está preparado para o grande trânsito climático no porvir. Além da seca no Nordeste, veremos extremos climáticos na Amazônia, a elevação do nível do mar na costa, enchentes no Sul e Sudeste e até mesmo ciclones-bomba.
Andrea defende a criação de políticas de prevenção de desastres e mapeamento de zonas de risco, além de medidas de mitigação, resiliência e autossustentabilidade para que as pessoas possam permanecer ou retornar ao seu território. Mas toda solução precisa ser abordada de forma participativa, com os atores sendo considerados com o mesmo grau de importância, capacidade e responsabilidade.
“A comunidade tem muito a contribuir, mas não é incluída nos processos de tomada de decisão, o que gera soluções que sem sempre são adequadas a seu modo de vida”, acrescenta Erika. O que vale para o Brasil também serve para o mundo.
Segundo Erika, a identificação e a categorização desses trânsitos, internacionais ou internos, são fundamentais, pois, mesmo se investirmos em mitigação e adaptação, não será possível evitar a migração por completo. “A estratégia da migração também precisa estar garantida, porque ela vai acontecer”, diz. “Podemos transformar esse movimento de crise em assegurado, digno, que dê o efetivo acesso ao essencial em toda a rota migratória, desde a partida até o destino.”
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