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Até quando assistiremos a tantos feminicídios?

O ano mal começou e já ultrapassamos 50 casos de feminicídio no país. Especialistas discutem as brechas do combate à violência de gênero e apontam soluções

Por Letícia Paiva Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Guta Nascimento
Atualizado em 23 fev 2017, 11h26 - Publicado em 21 fev 2017, 09h04

Na manhã do primeiro dia do ano, os jornais noticiavam dois casos de mulheres assassinadas por ex-parceiros. Uma delas, incendiada em frente à própria casa, em Campestre (MG). A outra, assassinada a tiros, em uma chacina, em Campinas (SP). O técnico de laboratório Sidnei Ramis de Araújo, 46 anos, invadiu uma festa de Réveillon para matar a ex-mulher, Isamara Filier, 41, o filho de 8 anos e outras nove pessoas da família dela. Em seguida, se suicidou.

Deixou uma carta justificando a chacina, que vitimou nove mulheres: “Quero pegar o máximo de vadias juntas”. Um manifesto de ódio às mulheres, em que as culpava pela impossibilidade de desempenhar o papel de pai e desdenhava das conquistas femininas. Desde 2005, Isamara já havia registrado cinco boletins de ocorrência contra o ex por injúria, ameaça e violência doméstica, mas desistiu de seguir com processo penal.

Até o fechamento da edição de fevereiro de CLAUDIA, outros 31 casos de mulheres assassinadas em circunstâncias semelhantes chegaram à imprensa. A reportagem continuou a acompanhar o que era noticiado – e contou 50 casos até o início deste mês. Entretanto, devido às limitações dos dados disponíveis, estima-se que as estatísticas de feminicídio, crime reconhecido como hediondo desde 2015, alcancem números maiores: sete mulheres são mortas por dia no Brasil, de acordo com o Mapa da Violência organizado pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais. Os algozes são parceiros, ex-parceiros, pais ou irmãos. A pena para esse tipo de crime varia de 12 a 30 anos de prisão.

Leia também: Mais de 50 casos de feminicídio foram notícia neste ano Brasil

Embora, no papel, já tenhamos ferramentas poderosas contra a violência de gênero – incluindo a Lei Maria da Penha, internacionalmente reconhecida como uma das mais avançadas na questão –, o Brasil continua a figurar entre as cinco nações que mais matam mulheres no mundo.

Quatro especialistas apontam as falhas que incrementam a vulnerabilidade feminina e indicam o que precisa mudar para que fiquemos realmente protegidas.

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Histórico de Dominação

Silvia Chakian, promotora do Grupo
de Enfrentamento à Violência Doméstica do Ministério Público de São Paulo

“Casos bárbaros, como a chacina de Campinas e outros assassinatos brutais de mulheres por seus parceiros, não são isolados. A carta carregada de misoginia deixada pelo homicida no interior de São Paulo, que rotula todas as mulheres como vadias, de Dilma Rousseff e Maria da Penha às de sua família, contém julgamentos morais que aparecem diariamente em comentários nas redes sociais em quantidade assustadora – evocando um perigoso senso de justiça para punir a mulher.

Alguns dos que se disseram chocados com os assassinatos reproduzem discursos semelhantes, recusando-se a reconhecer a violência cotidiana das palavras e a discutir igualdade de gênero. Esse comportamento surge na raiz da sociedade e é fortalecido pela relegação da mulher à posição de objeto, sempre submetida ao homem.

O feminicídio, a última instância da violência contra a mulher, acontece quando ela viola uma das leis do patriarcado: da fidelidade, que não lhe permite romper com o homem, ou da submissão, que não lhe dá permissão de conduzir a própria vida. Na verdade, trata-se de um crime de ódio contra todas, estimulado pela quase total indiferença do Estado e da própria sociedade.

“Trata-se de crimes estimulados pela indiferença do Estado e da sociedade”

Silvia Chakian, promotora
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Há mulheres sendo assassinadas silenciosamente, presas em um ciclo de violência sem denunciar, e outras que morrem gritando por socorro, após acionar a Justiça mais de uma vez. Nas duas hipóteses, a falha é, sobretudo, do poder público, que não se engaja para a efetivação plena da Lei Maria da Penha – tirando do papel não apenas a punição aos crimes mas a proteção às mulheres e a educação dos homens. Dentro do Judiciário, carecemos de capacitação para julgar crimes de gênero com base na perspectiva adequada.”

Violência imprevisível

Tatiane Moreira Lima, juíza da Vara de Violência Doméstica do Fórum do Butantã, em São Paulo

“Em geral, o agressor de mulheres é um homem que não seria caracterizado como violento: é inseguro e tem pouca habilidade de argumentação. Ótimo da porta para fora, mas dentro de casa exerce o controle sobre a mulher – que pode ser demonstrado sob forma de humilhação, manipulação e chantagem emocional, não tão visíveis quanto tapas, socos e chutes. Após a violência, há um pedido de desculpas, vive-se uma fase de lua de mel, mas logo as agressões retornam, tornando-se cada vez mais frequentes. O ponto final desse ciclo pode ser o feminicídio.

A violência verbal, muitas vezes, não é identificada pela vítima, que encara as palavras apenas como grosserias e acaba por ignorá-las. As denúncias costumam vir quando há um agravamento e a situação se torna insustentável. Ela se afasta, porém é quase impossível prever o que o agressor ainda é capaz de fazer.

“É quase impossível prever do que o agressor é capaz”

Tatiane Moreira Lima, juíza
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Não temos um mecanismo extremamente preciso para identificar se aquele que promete matar a ex-mulher ou colocar formigas em sua boca irá concretizar as ameaças. Mas alguns indícios são significativos: perseguições constantes, com traços de paranoia e obsessão; agressões em que o alvo é o rosto – uma tentativa de deixá-la menos atraente; ou quando um homem tenta esganar a mulher.

Apesar de merecerem atenção, esses sinais obviamente não são suficientes para uma condenação por feminicídio, que tem punição maior do que um homicídio comum. Na prática, os indícios levam a penas pouco contundentes: um mês de reclusão para ameaça e três para lesão corporal leve. O ideal, no entanto, logo após as primeiras agressões, seria o homem receber acompanhamento para um processo de desconstrução do machismo.”

Leia também: Por que precisamos falar sobre feminicídio? 

Gravidade atenuada

Marcela Ortiz, delegada da Delegacia de Homicídios da Capital, no Rio de Janeiro

“Quando uma mulher é ameaçada e procura a delegacia, recebe uma medida protetiva, que determina a distância-limite para o agressor, a ser aprovada por um juiz no prazo de 48 horas. No entanto, muitas vezes, ela mora na mesma propriedade de seu algoz. Aí, acaba na rua. É necessário um trabalho mais profundo, de que a polícia nem sempre dá conta. O volume de queixas de violência doméstica é grande e a abordagem não pode ser apenas judicial. Após a denúncia, é preciso que exista uma assistência psicológica a longo prazo, que não oferecemos hoje.

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Quando o feminicídio se concretiza, o autor do crime responde a um questionário bastante extenso na delegacia. Ele costuma defender a legitimidade de sua ação e, mesmo que confesse, culpa a vítima, justificando o homicídio com base nas atitudes dela e em sentimentos de posse. Alega que a paixão o moveu. Não podemos ser complacentes com tais afirmações! E, muito menos, não devemos chamar a ocorrência de crime passional – nomenclatura que deveria deixar de ser usada, pois faz com que pareça menor.

“Crime passional é uma nomenclatura que deveria deixar de ser usada”

Marcela Ortiz, delegada

Agora, com a Lei do Feminicídio de 2015, podemos registrar explicitamente esses assassinatos em nosso banco de dados. Conseguimos elucidar mais de 90% dos casos, estatística superior a outros tipos de homicídio, mas ainda é difícil evitá-los porque a questão vai além da segurança pública e do trabalho da polícia: é cultural e educativa.

O crime acontece, majoritariamente, dentro das casas e entre familiares e, não raro, a vítima já estava imersa em um contexto de violência doméstica desde a infância – um ciclo repetido nas gerações seguintes. Sem políticas de educação de gênero, os padrões tendem a se repetir.”

Direitos estagnados

Cristina Lopes Afonso, vereadora em Goiânia (PSDB), ativista pelas vítimas de queimaduras e contra a violência de gênero

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“Em 1986, meu namorado, um médico, jogou álcool em mim e ateou fogo. Aos 18 anos, tive 85% do corpo queimado. Três anos depois, o agressor foi condenado por tentativa de homicídio a 21 anos de prisão. Eu vivi na pele não só a queimadura, mas uma violência até então desconhecida. Antes, as agressões vinham em forma de manipulação: a cada decisão que lhe desagradava, ele ameaçava se suicidar e eu tentava impedi-lo. Por fim, ele premeditou me matar.

Na época, dois anos antes da aprovação da Constituição que reconheceria os direitos femininos, as mulheres precisavam se organizar em movimentos pontuais para exigir garantias básicas. Com a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio, houve uma acomodação e passamos a cobrar menos. Acreditava-se que haveria punições exemplares e ferramentas para resguardar a mulher.

Não foi o que se viu – é como uma caixa de presente que, ao ser aberta, descobrimos estar vazia. Sem proteção, a mulher não denuncia, temendo o aumento da violência e a morte. Em 2015, o governo federal prometeu a criação da Casa da Mulher Brasileira, onde vítimas seriam acolhidas, mas apenas três capitais receberam as instituições.

“Sem proteção, a mulher não denuncia, temendo a morte”

Cristina Lopes Afonso, vereadora

Além disso, em reação ao endurecimento e à difusão dos limites impostos pela legislação, comportamentos violentos exaltados passaram a ser defendidos abertamente, principalmente pelos homens. Não temos tido força para barrar essas manifestações. Precisamos pensar o que estamos fazendo para mudar nossa realidade com pequenas atitudes e, acima de tudo, demonstrando sororidade.”

Leia também: Alexandre Garcia, nós precisamos falar sobre feminicídio

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