A felicidade não é ridícula
Para nossa editora e colunista Liliane Prata, a guerra é estranha. O sorriso, não
Parque Memorial da Paz de Hiroshima. Dezenas de turistas do mundo inteiro rindo, conversando e tomando sorvete na região que, em 1945, foi palco do primeiro ataque nuclear do mundo. A uns duzentos metros de onde eu caminhava agora, a sobrevivente cúpula de ferro retorcido era fotografada. Depois de visitar os monumentos e antes de entrar no museu, onde as pessoas fazem fila para ver, por trás de um vidro, mechas de cabelo carbonizadas de crianças e seus uniformezinhos despedaçados, eu me sentei em um banco, com um livro na mão e um café na outra. O livro era de ficção, de uma história que não tinha nada a ver com a guerra, e meu café também não tinha nada a ver com a guerra. À minha frente, uma mãe limpando a boquinha do filho. E dois turistas conversando em inglês com sotaque de não sei onde.
– Você não acha estranho todo mundo estar aqui rindo? – um deles perguntou. – Digo, nesse lugar onde caiu uma bomba?
Esse pensamento tinha me ocorrido alguns momentos antes. Mas, agora, com meu livro, meu café, aquela criança tendo sua boquinha limpa, tudo aquilo que tinha muito mais a ver com sorrisos do que com bombardeios… Só consegui pensar: não, não acho estranho. Não acho nada disso estranho.
Entendo o que aquele homem quis dizer. Entendo seu desconforto de estar ali, um lugar que, algumas décadas antes, estava tristemente desprovido de qualquer coisa que remetesse à ideia de conforto. É um contraste. Pode ser constrangedor. Mas só por alguns instantes. Depois – no meu caso, quando me sentei com um livro e um café… Depois, vi que, de estranho, aquilo não tinha nada. Que era importante ter em mente o seguinte: não é que a bomba era uma coisa grande e os cafés, os livros e os sorvetes, pequenos. Não é que as risadas sejam banais, futilidades, caprichos. Pelo contrário, é a importância dos cafés e das risadas que nos lembram de que as guerras são terríveis, lamentáveis.
Estranho não é tomar sorvete no Parque da Paz. Estranho é (deve ser) ter sete anos, estar indo à escola e ver um clarão no céu que, dali a alguns instantes, se desmancharia em um bombardeio. Estranho é (deve ser) ver sua pele descolando e pessoas correndo desesperadas ao seu redor.
Tomar sorvete não é estranho. Ficar rindo, conversando, mexendo no celular, lendo, não é estranho. Estranhas são explosões nucleares, estranhos são todos os genocídios, os assassinatos em massa e também os assassinatos mínimos, assim como os estupros coletivos e os estupros de uma só. Absurdamente estranha é a perda da delicadeza, estranhas são as vitórias do embrutecimento.
O tempo todo, vejo pessoas sensíveis se perguntarem: como posso desfrutar meu jantar, se há tanta coisa ruim acontecendo? Como posso rir com uma mensagem enviada por meu amigo, quando há um mendigo à minha frente, dormindo na calçada? Como posso viver, se tanta gente apenas sobrevive?
Pois, se eu estivesse passando por algo ruim agora, eu detestaria saber que pessoas estão estragando seu jantar simplesmente por estarem pensando em mim. Pensar na tragédia de um ou de muitos não salva ninguém, só derrota a si mesmo e a graça de estar vivo. Sempre que consigo ser útil a alguém, estou sorrindo.
Os médicos sem fronteiras só conseguem ser os médicos sem fronteiras porque, em vez de chorar e ficar repetindo bordões estéreis como “o ser humano é inviável”, estão lá sorrindo. Não sorrisos do tipo “há-há-há”. É um sorriso mais profundo: o sorriso da resistência.
O sorriso vital.
Estar vivo é sempre meio estranho. Estamos, de certa forma, todos nós, tateando no escuro. Mas, enquanto estamos vivos, rir não pode ser estranho. Privar-nos do riso, da poesia, da delicadeza é que seria estranho. Se ser feliz é algo tão ridículo, por que nos incomodaremos com as atrocidades, mesmo? Há muita coisa ridícula em ser humano e em viver. Mas a felicidade, não. A felicidade não é ridícula.