Ponto firme: Projeto Travessias resgata as rendas e artesanatos do Ceará
O projeto busca resgatar os saberes ancestrais das artesãs do Nordeste e multiplicar esse conhecimento e produção para além das fronteiras do país
O que vem à cabeça quando você pensa no Ceará? Belas praias de areia clarinha e mar azul? O sol que brilha quente sobre os coqueiros? Ou, talvez, o delicioso beiju? Sem dúvidas, todas essas coisas representam o Estado, mas há, ainda, algo mais importante, que atua como o coração das comunidades: o artesanato.
Por todos os cantos, grupos resistem, contando suas histórias através de linha, agulha, tecido e palha. Fazeres manuais que, infelizmente, estão ameaçados. À medida que a população envelhece e a tecnologia avança, cada vez menos pessoas dominam as técnicas. “As artesãs são as guardiãs da memória, mas, para um grupo permanecer, é necessário ter produção. Quando você desmobiliza um saber, ele se perde. É muito difícil recuperá-lo”, explica Celina Hissa, diretora criativa da Catarina Mina, que se une ao Sebrae-CE para resgatar o artesanato do Ceará e tornar toda a cadeia produtiva mais justa por meio do Travessias Artesanais.
No último ano, o projeto acompanhou grupos de artesãos de seis diferentes cidades com suas especialidades: o labirinto do Aracati, a renda de bilro, do Trairí, o filé de Jaguaribe, o crochê de Curral Grande, o trabalho em fibra de croá de Tianguá e o artesanato em palha de carnaúba, de Sobral. Os designers convidados Dudu Bertholini, David Lee, Marina Bitú, Érico Gondim, Márcia Hissa e a própria Celina passaram a trabalhar junto aos grupos no desenvolvimento de coleções, que devem ser lançadas ainda neste mês na multimarcas Nordestesse.
Para gerar impacto social positivo, foram desenvolvidas metodologias de partilha e construção, a partir do diagnóstico das dificuldades e dos conhecimentos de cada região, criando oficinas de escuta e desenvolvimento dos produtos. A ideia é que cada grupo aprenda novas formas de trabalho e passe a receber um valor justo pelas peças que criam, tornando possível não apenas sobreviver, mas viver do artesanato.
O saber ancestral das rendas cearenses
Ao visitar Trairí, a cerca de 120 km de Fortaleza, conhecida como a cidade do bilro, pude conhecer melhor a beleza desta tipologia e também as mulheres por trás dela. A técnica é transmitida de mãe para filha desde cedo, perto dos 7 anos de idade, há gerações.
O bilro é criado sobre uma almofada cheia de palha de bananeira, que recebe um papelão com o desenho a ser criado, o pique. Os espinhos do mandacaru ou do cardeiro, muitas vezes colhidos ali mesmo, no quintal de casa, viram agulhas e marcam os pontos. A fruta do bilro é utilizada para fazer os bilros ou birros, que são manejados pelas rendeiras, sendo cruzados ou entremeados até formar o padrão desejado.
A confecção é complexa e demorada, e nem sempre recebe uma remuneração pertinente — motivo pelo qual as jovens têm abandonado a arte. “Eu passei para as minhas filhas e netas, mas só uma se interessou. Eu não deixo minha almofada por nada e, quando morrer, quero ser enterrada com ela. Mas, para os mais novos, não é assim”, conta dona Santinha, que, aos 66 anos, segue criando as rendas de bilro.
Já em Ipueiras, localidade de Jaguaribe, o saber é compartilhado por toda a comunidade. A chamada renda de filé, que nasceu do aproveitamento das redes confeccionadas para a pesca, é tecida com navete e régua, e, então, presa ao bastidor. A partir daí, as mãos hábeis do artesão preenchem os desenhos. Seu Raimundo Nunes Junior é um dos homens da região que cria roupas, toalhas e passadeiras utilizando a técnica — compartilhada também com a esposa e os dois filhos. “Minha mãe me ensinou, ainda na infância, e eu fui continuando, com toda a família”, conta.
Por lá, os mais jovens também têm abandonado o ofício, mas há exceções, como Victor Alan, de 24 anos, vencedor do Projeto São José Jovem, que contempla 300 jovens do Ceará focados na continuidade do artesanato, e o escolhido para representar o grupo no prêmio Top 100 de Artesanato, do Sebrae.
“No último levantamento, éramos mais de 8 mil artesãos, mas, hoje, a gente vê menos, porque é difícil de fazer, demora a receber e, muitas vezes, o dinheiro é pouco. Foi depois do Top 100 que ganhamos mais contatos e conseguimos até vender para outros países, como Espanha e Itália.” Hoje, a comunidade de Sítio Ipueiras conta com uma página no Instagram (@renda. de.file.sitio.ipueiras) e recebe encomendas de suas lindas peças sem fronteiras.
Um ponto em direção ao amanhã
Apesar do projeto Travessias Artesanais ser recente, a Catarina Mina já desenvolve metodologias similares há 15 anos, como o Olê Rendeiras, projeto do qual as artesãs de Trairí fazem parte. O saldo tem sido positivo, com um aumento de sete vezes na renda das envolvidas, além do notável aprimoramento técnico.
“O programa trouxe a renovação da renda de bilro, com mais destaque às peças e um ponto melhor trabalhado. Quando eu fiz a primeira, um quimo- no, me emocionei”, aponta a artesã Ivone Braga. O trabalho, aliás, permitiu a realização de um dos seus maiores sonhos: ver suas rendas alcançarem lugares como Paris e Milão. “Eu sempre tive esse desejo. É muito bom poder ver o que é nosso ser valorizado.”
O fazer mais intrincado e os ganhos maiores também já começaram a despertar o interesse das novas gerações, talvez o maior feito dos projetos. “Tenho três filhos, e a minha menina, que tem 13 anos, está começando a gostar porque está vendo as peças e as achando lindas. Quando eu levanto para fazer almoço, ela logo senta na almofada”, celebra Luziane de Souza.
Enquanto a nova coleção não sai, por aqui ficamos na torcida para que os fazeres manuais se fortaleçam e que o Ceará siga compartilhando sua beleza em linha, agulha e, claro, amor.
*A jornalista viajou a convite da Catarina Mina