Jal Vieira: “O meu trabalho é muito mais do que fazer roupas”
Uma das estilistas mais relevantes da moda brasileira atual é mentora do projeto O Poder é Nosso, da Marvel, para auxiliar jovens negros artistas
Jal Vieira é um dos nomes mais relevantes da moda brasileira atual. Natural de São Paulo, a estilista começou cedo com os interesses pela moda e pelo cinema. Nos desfiles e programas de TV, encontrou inspiração para uma possível carreira. Daí, já mais velha, usou a criatividade e os desejos para tornar o sonho em realidade: por meio do ProUni, conseguiu uma das três vagas disponíveis para cursar design de moda na Faculdade Belas Artes. Trabalhou em marcas até 2011, quando lançou o primeiro projeto que viria dar corpo a Jal Vieira Brand (que inclui estilismo, desenvolvimento têxtil e figurino).
Nesses 13 anos de atuação, conciliou a empresa com os estudos — ela fez pós-graduação em modelagem criativa no Senac e especialização técnica em produção audiovisual — e estreou nas passarelas, em 2019, desfilando na Casa de Criadores. Nome quente da moda nacional, não demorou muito para Jal Vieira chamar atenção de nada menos que a Marvel. Sim, em 2021, ela foi a primeira estilista negra brasileira a assinar uma coleção com a gigante do cinema. O mote da coleção Realeza eram as mulheres de Wakanda, país fictício do filme Pantera Negra (2018). Agora, com o lançamento da sequência, Pantera Negra: Wakanda para Sempre, ela celebra mais um passo no comando do projeto O Poder é Nosso.
A iniciativa, que faz parte do compromisso de Diversidade, Equidade e Inclusão da Marvel, foi pensada com o objetivo de fomentar e potencializar artistas negros. Nela, Jal é mentora de cinco brasileiros selecionados para criar uma releitura dos personagens do filme. Mas quem te conta todos os detalhes da série, é ela mesma, na entrevista a seguir.
Quais são as suas maiores referências na moda e na cultura? Por quê?
Admiro muitos dos meus colegas na moda e vou citá-los aqui. Mas, antes disso, gosto de reforçar que minhas maiores inspirações não vêm da moda. Eu admiro demais a minha família e como eles — principalmente minha mãe — semearam as possibilidades para que eu pudesse contar minha própria história hoje. Isso move todas as emoções e inspirações que transbordam em mim. Eles começaram a minha história antes mesmo de eu estar aqui. E reverberar a história da minha família e dos meus ancestrais é o que de fato me inspira a vocalizar meus sentimentos e minha trajetória no meu trabalho enquanto designer. Somado a isso, todos os outros encontros que são frutos dessa caminhada são inspiração para o meu trabalho e transformam minha forma de ver esse mundo. O meu trabalho é muito mais do que fazer roupas, mas criar questionamentos e priorizar as pessoas que constroem a moda e que somam forças comigo, todas que abriram caminhos para nós e as que ainda virão.
Dito isso, tenho pessoas que admiro e me sinto honrada de dividir e somar espaços como a Milena Nascimento, à frente da Mile Lab; Cintia Felix, à frente da AZ Marias; Carol Barreto, criadora do Projeto Modativismo; Teodora Oshima, à frente de sua marca homônima; Erica Malunguinho, uma das pessoas mais inteligentes e engajadas em fazer dos seus acessos, acessos para os seus; Day Molina à frente da Nalimo — ela faz um dos trabalhos mais admiráveis no setor; Barbara Poerner que é uma das jornalistas mais competentes e comprometidas que tem um olhar sensível e humanizado sobre o setor. Enfim… tanta gente. Somo a isso, toda a equipe que trabalha comigo e que acredita na verdade do que eu queria contar e que contam suas histórias junto comigo.
O que você gosta de fazer no seu tempo livre?
Sendo super sincera: dormir! (risos). Encontrar um tempo para descansar tem sido bem difícil. Então, sempre que consigo, gosto de deitar na minha rede, colocar um som na vitrola, ficar prestando atenção no que está acontecendo lá fora, enquanto tomo um solzinho e ir pegando no sono. Juro que o tom poético foi sem querer (risos). Mas é que realmente esse é meu resumo de paz.
Como é a sua rotina?
Diariamente me divido entre dois trabalhos: o audiovisual e a moda. Todo dia cedinho saio de casa para ir para a universidade em que trabalho na área técnica de audiovisual em regime CLT. Depois desse expediente, dependendo do dia, ou fico direto na universidade adiantando demandas da moda ou vou para aula (faço pós em Modelagem Criativa e também estou aperfeiçoando o inglês).
Normalmente, uso todas as noites, madrugadas, finais de semana e feriados para trabalhar com as demandas que não consigo quando estou na jornada de trabalho da universidade. E pasme que, mesmo com essa rotina malucona, ainda arrumo um tempo para fazer algo com minha mãe ou meus amigues.
O que faz parte do seu processo criativo? Como você gosta de criar as suas coleções?
Os primeiros passos que dou nas coleções que realizo são muito pessoais, no que diz respeito a algo que se inicia de dentro para fora. Sou auto-analítica. Então, tento sempre me questionar sobre o que tem me gritado naquele momento. Um processo de escuta interna mesmo. E isso serve não apenas para as coleções: carrego em toda situação. Eu sempre me questiono: estou me sentindo bem quanto a isso? O que tem me incomodado? O que tem me proporcionado momentos de conforto? Aprender a escutar o que meu corpo, minha mente e minhas emoções têm a dizer não só me faz compreender melhor quem eu sou, como também sobre o que quero falar e para quem quero falar. E, naturalmente, isso se reflete no meu trabalho.
Depois disso, começo um processo de pesquisa — ainda muito livre — sobre quais coisas me ajudariam a traduzir todos esses sentimentos: texturas, cores, modelagens, equipe… Sim, equipe! Eu sempre me preocupo em unir uma equipe que não só se interesse pelo tema, mas que se conecte com ele. Que tenha uma história com ele. Porque aí deixa de ser somente sobre mim e meu trabalho em conjunto com essa equipe, e passa a ser sobre um conjunto de pessoais plurais, mas que têm valores e visões de mundo próximas das minhas. Isso eu expando para todes que se envolvem no processo como um todo. Então, essas pessoas também são presenças determinantes no resultado final do trabalho.
Após esse olhar mais contemplativo com as possibilidades, eu começo a organizar tudo, fazer testes, esboçar croquis, sondar quem faria parte disso, anotar insights. Toda a forma de tradução disso tudo. Uma vez feito isso, começamos a produção com base no desenvolvimento de peças não apenas sob medidas no que diz respeito a silhueta do modele, mas também com qual roupa elu se sentiria bem. Isso é imprescindível para mim.
Desde que você se formou, quais mudanças no mercado de moda brasileiro foram as mais impactantes para você?
Começarmos a nomear as falhas desse setor. A cultura de moda normatizou, ao longo dos anos, posturas nada éticas e/ou humanizadas como se fossem sinais de prestígio. Uma estrutura extremamente complexa e difícil de se dissipar, mas que vem sofrendo mudanças, ainda que lentas, em quem está na linha de frente questionando esses comportamentos, horizontalizando seus processos, tornando seus acessos, acessos para existências plurais. Enfim, tendo um olhar coletivo ao invés de individualista.
Como é poder desfilar o seu trabalho na Casa de Criadores? O que a presença nesse espaço trouxe para a sua carreira?
Acho que foi uma via de mão dupla. Ter marcas lideradas por mulheres negras e outras corporalidades não-hegemônicas dentro do evento, colabora para a inserção e sensibilidade de pautas que antes ou não eram abordadas, ou não tinham espaço suficiente para isso. Por outro lado, de um ponto de vista mais pessoal, foi também começar a me enxergar pertencente àquele e a tantos outros espaços. Além de poder colaborar mais efetivamente para discussões necessárias para o setor. Uma vez que o alcance do meu trabalho passou a ser maior — graças ao espaço do evento e ao fomento e curadoria de novos estilistas promovido pelo idealizador da CdC, André Hidalgo —, meu trabalho conseguiu colaborar para mudanças que eu acredito serem necessárias, como a presença de mais pessoas não-brancas nos lugares, à geração de trabalho e renda à essas pessoas e os impactos sociais que tudo isso causa.
Você também já trabalhou de perto com o Theatro Municipal e o Centro Cultural São Paulo. Quais intersecções que você mais gosta de transitar na moda?
Sim. Esse foi um convite da CdC, do CCSP e do Theatro Municipal, um dos momentos mais marcantes da minha vida. Ter podido chegar perto de figurinos de óperas que eu jamais pude sequer sonhar em assistir e ressignificá-los para o meu olhar: o de uma mulher negra, vinda da periferia, cria um total paradoxo nisso tudo, já que esses figurinos eram parte do acervo de espetáculos que não foram pensados para pessoas como eu. Foi poder dizer à sociedade: mesmo que essa estrutura social, racista, classista, misógina, homofóbica e toda infinidade de fobias sociais, tenha tentado podar minhas potências, minha resposta é continuar viva, criando e em movimento constante.
Você havia trabalhado com a Marvel antes, lançando a coleção Realeza, inspirada nas mulheres de Wakanda. O que você sentiu quando esse convite chegou? Como foi para você desenvolver essas peças?
Foi a afirmação de que no meu trabalho tinha algo a ser dito e, mais do que isso, que as pessoas queriam escutá-lo. A ficha demorou super para cair. Mas, quando caiu, eu foquei tanto no que isso representava não só para mim, mas para os meus, que me recompus rápido e logo comecei a entender que mensagens eu queria trazer e reverberar na existência das pessoas.
Minha existência é política, meu corpo é político e eu entendia a responsabilidade de ser a primeira mulher negra a assinar uma coleção para a Marvel. Foi um mergulho interno muito grande, para só então voltar para a superfície e começar a materializar cada ideia. A maneira que todo o meu processo foi respeitado pela equipe da Marvel, impactou completa e positivamente o resultado final da coleção. Além disso, me preocupei em trazer comigo quem já tinha uma conexão com a minha história. Quem caminhou comigo desde o início e acreditou em cada passo que eu dei. Desde a equipe de beleza que me acompanha há muito tempo, direção e fotografia que foi assinada por grandes e talentosos amigues, modeles que estavam comigo desde a primeira coleção que fiz em 2011, produção que foi feita por duas amigas que estão comigo desde a primeira coleção também, até a minha mãe que assinou a trilha sonora e que é a responsável por eu poder trilhar meu caminho e contar a minha história. Tudo isso somado a grandiosidade e significância que é ter o filme Pantera Negra e as figuras das mulheres de Wakanda refletindo nas telas a nossa ancestralidade.
A iniciativa foi a primeira hiperlocal da Marvel Diversidade. Agora, você volta na mentoria de jovens artistas brasileiros. Você pode contar um pouco sobre esse processo, seu contato com os nomes selecionados, o resultado de cada um?
O convite para ser mentora do O Poder é Nosso nasceu do primeiro contato que tivemos por conta da coleção Realeza. De lá pra cá, a Marvel entendeu a conexão que tudo isso representava e me convidou para o projeto. Quando fui apresentada aos artistas, minha preocupação e olhar atento estava em jamais perder o foco na identidade do trabalho deles durante o processo. E, mais do que isso, que a história deles também estivesse impressa ali. Me inteirei sobre os respectivos trabalhos, escutei as histórias pessoais deles, trocamos expectativas, simbologias dentro da arte de cada um e, a partir disso, começamos a entender com quais personagens cada artista se conectava.
Era importante nisso tudo que o artista também enxergasse um pouco da sua história na história do personagem que retrataria. Criar um elo entre artista e personagem foi fundamental para a veracidade do projeto. Depois disso, eles desenvolveram cada uma a sua maneira. Enquanto isso, eu criava um guia de estilos com peças que também representassem essas identidades. Ao mesmo tempo, a Marvel também se preocupou em buscar como parceiros do projeto, empresas que acreditassem na grandiosidade disso tudo e que, mais do que isso, já tivesse em sua estrutura um olhar atento a todos os valores defendidos no projeto.
A ideia não era apenas convidar cinco artistas para esse projeto, mas pensar formas de realizar um trabalho com real impacto social, já que não é somente sobre nós, mas em como isso reverbera noutras existências e em como o projeto ainda objetiva colaborar para mudanças sociais reais. Esse é só o começo.
O que iniciativas como essa significam para o cenário cultural brasileiro?
Quando eu era pequena, ainda que pessoas negras — desde sempre — já sustentassem o mercado da moda — não somente o mercado de moda! — , eu nunca as via dando entrevistas nos canais, falando sobre seus trabalhos nessa área e/ou sendo apontadas como grandes referências criativas, mesmo que elas fossem tudo isso. Elas estavam ali o tempo todo, mas os espaços para que elas falassem não existia. Isso impactou drasticamente como eu me enxerguei por muito tempo. Não ter tido referências com histórias próximas das minhas, me fez acreditar que eu não merecia estar nesses lugares. Hoje, olhando para esse projeto, eu consigo imaginar como seria para a Jal de 11 anos de idade ter visto 5 artistas negros, com origens parecidas com as minhas, encabeçando, junto com a Marvel, um projeto desses. Com certeza, eu não teria deixado de acreditar nas minhas potências por tantos anos. E, com absoluta certeza, isso não teria feito tanta gente com histórias parecidas terem sido obrigadas a desistirem no meio do caminho. Esse projeto vem como resposta para a sociedade: a gente tá aqui e nós não vamos parar.
O novo filme do Pantera Negra é uma das estreias mais aguardadas deste segundo semestre. O que você mais gosta na história desse herói? Está ansiosa para ver a continuação?
O que eu mais gosto é ver corpos pretes contando suas próprias histórias e estando em condição de vitória, visibilizando suas potências e potencializando os seus. E, sim!, estou super ansiosa. Curiosa também para entender como Wakanda será a partir dessa nova história e como as figuras femininas serão retratadas nela.