Lis Cereja: como a chef e sommelière revolucionou o cenário dos vinhos naturais
No restaurante Enoteca Saint VinSaint, ela transforma o vinho natural em ferramenta de consciência, fazendo da gastronomia um sistema de regeneração

Lis Cereja é uma figura rara no universo da gastronomia. Nutricionista, sommelière e cozinheira, ela construiu uma trajetória em que saúde, sabor e sustentabilidade não se excluem, mas se nutrem. O que conectou essas áreas, aparentemente tão distintas, foi o desejo de entender as coisas pela raiz.
À frente da Enoteca Saint VinSaint, referência de vinhos naturais em São Paulo, a profissional criou um empreendimento que vai além do conceito comum de restaurante: é um ecossistema. Tudo ali parte de um ciclo, da horta ao prato, pensado para servir, informar e construir.

O fascínio pelo vinho chegou cedo. Crescida em uma casa repleta de livros — seus pais são professores de literatura —, Lis se interessava pela história dos alimentos desde adolescente. Por volta dos 14 anos já buscava entender o que havia por trás das bebidas (especialmente o vinho), das práticas agrícolas e dos rituais alimentares.
Ao entrar na universidade, esse interesse se expandiu. Lis cursou Nutrição na USP e, em paralelo, Gastronomia na Anhembi Morumbi. A experiência foi reveladora: percebeu o abismo entre a teoria e a prática.

“Eram dois pontos de vista completamente diferentes. Na nutrição, era aquela loucura técnica. Eu fazia iniciação científica, mas você nunca via o resultado final. E na gastronomia, tinha aquela coisa do ego exacerbado.” De um lado, a ciência dos nutrientes; do outro, uma gastronomia pouco preocupada com a origem dos insumos.
“Era um mundo distópico: ninguém falava de agricultura”, analisa. Foi nesse período que teve suas primeiras aulas sobre enologia e o encantamento virou profissão: logo começou a trabalhar com vinho em empresas do setor.

Contudo, havia ali algo que parecia errado à sua percepção. Em todas as feiras, saía com sintomas físicos fortes: dor de cabeça, cansaço e as crises de asma se intensificavam. Só anos mais tarde ela descobriu que era alérgica ao SO₂ (conhecido como sulfito), conservante comum em vinhos convencionais. O ponto de virada veio por acaso, durante um jantar profissional.
Após uma sequência de degustações, provou um champanhe e sentiu o corpo melhorar. “Achei que estava ficando alcoólatra”, ri de si mesma. “Comecei a beber e a sensação física era muito esquisita, era muito boa, fluida. Meu corpo ficou melhor do que quando eu tinha começado.” Era um champanhe biodinâmico do produtor francês Fleury. A reação se apresentou tão nítida que Lis foi atrás de entender o que havia ali — e assim um novo universo se apresentou para ela.

Em 2008, aos 25 anos, decidiu abrir a Enoteca Saint VinSaint, sua casa dedicada à boa gastronomia e com um menu formado apenas por rótulos naturais, orgânicos e biodinâmicos.
Abandonou um cargo estável e bem remunerado no setor de vinhos e lançou um restaurante onde pudesse unir o que até então parecia separado: saúde, sabor, agricultura, história e prazer. O termo “vinho natural” ainda era praticamente desconhecido no Brasil e, nos primeiros oito anos, a Enoteca foi o único estabelecimento do país a falar sobre o assunto.
Desde o início, o espaço funcionou como centro de formação, servindo vinhos às cegas, explicando processos, apresentando sabores e desfazendo mitos. “A gente teve que criar o público”, explica. “Criar, ensinar e esperar que eles voltassem. As pessoas ainda vêm aqui para aprender o que é vinho natural.”

Lis, inclusive, lançou no ano passado a obra Vinho Natural, um guia que é resultado de quase duas décadas de estudos da autora. “Ficamos boa parte da história da Enoteca como a única referência de quem queria aprender sobre o assunto. Estamos nadando no meio do nada, tanto que eu tive que escrever o primeiro livro em língua portuguesa, não tinha nem material escrito! Digo isso sem orgulho nenhum, isso reflete como ainda estamos tão sem preparo.”
Em 2013, lançou a Feira Naturebas, que começou como um pequeno encontro e hoje é o maior evento de vinhos naturais da América Latina. O formato é simples e potente: os produtores vendem direto ao público, sem taxas ou comissões. “A gente nunca teve participação nas vendas. A feira é para a galera comprar direto”, explica.
O impacto foi tão grande que mudou os hábitos de consumo. “A partir do momento em que o público começou a entender que era melhor comprar de forma direta, nossas vendas caíram. Como restaurante, sofremos muito com o próprio conceito que a gente bancava.” Para ela, porém, era um sinal de missão cumprida.
“Ficamos boa parte da história como a única referência de quem queria aprender sobre vinho natural”
Lis Cereja, proprietária da Enoteca Saint VinSaint

Mas seu projeto de vida não se limita à bebida, é também uma resposta à contradição que Lis percebia entre as teorias da nutrição e a prática da cozinha.
A jovem empresária trouxe para seu restaurante pratos tecnicamente refinados e, ao mesmo tempo, baseados em ingredientes limpos, de origem conhecida, respeitando o tempo da natureza e o trabalho dos pequenos produtores. A Enoteca é guiada pelo conceito de ciclo fechado.
Desde 2015, Lis vive em uma propriedade na Granja Viana, de onde vêm metade dos insumos do restaurante: hortaliças, flores, leite de cabra e ovos. Todo o lixo da casa é separado e reaproveitado. Parte vira sabão e produtos de limpeza; outra parte alimenta os animais; o restante vira adubo. Esse sistema permite que o cardápio mude de acordo com o que a terra oferece, e a sazonalidade é levada a sério.

O resultado é um menu que se transforma conforme o clima, o humor das plantas e as floradas espontâneas. “A cabra sente, a rúcula sente, as flores sentem”, relata com animação. Aliás, a Enoteca é, ainda hoje, um dos poucos restaurantes na América Latina a adotar um modelo de ciclo fechado.
A carta de vinhos também é sazonal. Já chegou a ter 500 rótulos, mas hoje é atualizada mensalmente, em diálogo com o calendário, o clima e os produtores parceiros — muitos ainda fora do circuito comercial.

Quando um produtor precisa vender mais, sua presença aumenta na carta. A curadoria também leva em conta festas, sensações e harmonizações com os pratos do mês. “Às vezes, as maiores joias estão com uma galera que não consegue investir em marketing, ou que não consegue vir para São Paulo para fazer eventos”, comenta sobre seus fornecedores escolhidos a dedo.
Cada prato do cardápio é resultado de pesquisa. Um mil-folhas de mandioca pubada com béarnaise de tucupi envolve duas fermentações indígenas feitas do zero, dentro da cozinha. Os pães e pizzas são feitos com espelta, grão ancestral de difícil manuseio, mas mais leve e nutritivo que o trigo moderno.

Já as manteigas, servidas com as fatias de pães de entradinha, mudam a cada solstício. “Quando a gente pensa no termo restaurante, o termo é restauração. Você tem que restaurar a pessoa de alguma maneira. Com arte, com comida, com informação, com medicina. Com vinho.”
CRÉDITOS DA REPORTAGEM
Texto: Marina Marques
Fotos: Bruno Geraldi
Edição de Arte: Catarina Moura
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