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“Só anos depois entendi que sofri estupro conjugal”, revela atriz

Em carta, Julia Konrad compartilha lembranças de uma relação abusiva que viveu. Com o relato, ela quer ajudar outras mulheres a se proteger

Por Julia Konrad
Atualizado em 3 ago 2020, 12h26 - Publicado em 30 jun 2020, 10h00

“Nos conhecemos em uma festa. Lembro de tê-lo visto chegar pela janela do apartamento de primeiro andar. Nossos olhares se cruzaram naquele instante, e minutos depois estávamos frente a frente no parapeito daquela janela, formalmente apresentados por um amigo em comum. Conversamos a noite inteira, e eu constantemente me perguntava se aquele homem era real, com sua voz doce, seu jeito caloroso, olhar acolhedor. Ele me contou que estava na cidade por alguns dias, a trabalho. Voltaria pra casa na segunda-feira. Horas depois, me despedia com a certeza de que faria de tudo para vê-lo outra vez. Antes de ir embora, peguei o telefone dele e mandei mensagem assim que cheguei em casa. Não tinha tempo a perder.

Nos vimos no dia seguinte e o primeiro beijo aconteceu no pôr do sol, na praia. Doce, delicado. Perfeito. Parecia um filme, parecia o destino, parecia tanta coisa ao mesmo tempo… não demorou muito para que ele voltasse, novamente a trabalho, e eu, certa de estar começando a grande história de amor que sempre acreditei estar destinada a viver, o convidei para ficar comigo durante aqueles dias.

É muito louca essa narrativa que criamos para nós mesmas. Lá estava eu, numa cidade nova, recém solteira, vivendo descobertas em todos os sentidos, mas nunca me sentindo completa. Parecia faltar alguém que validasse aquilo tudo. Nós mulheres aprendemos cedo que nosso valor só é real, só é tangível, sob o olhar de um homem. Sob o olhar do príncipe encantado, de quem eu acreditava ser merecedora. Como se toda minha vida, todas as minhas batalhas e vitórias tivessem sido apenas para merecer um homem desses. E ele se encaixava nessa descrição perfeitamente. Cuidadosamente.

Na noite que ele chegou, fiz o jantar e bebemos vinho. Completamente hipnotizada por aquele olhar, acreditava em tudo que saia daquela boca. Suas histórias de trabalho, onde ele era injustiçado constantemente, apesar de sua ética impecável, sua enorme habilidade. Seu coração partido, machucado, sofrido, o trauma de um relacionamento anterior. A vontade de formar uma família. De viajar o mundo. E de dividir tudo aquilo comigo. Algo dentro de mim se incomodava com aquela rapidez toda, mas calei meu instinto. Era rápido porque tudo isso já estava escrito, éramos almas gêmeas, nenhuma outra explicação para tudo aquilo que eu estava sentindo era possível. Escondi todas as bandeiras vermelhas. Estava completamente embriagada, e naquele estupor, nos beijamos apaixonadamente na minha sala.

De repente, algo mudou. Vi uma mudança no olhar enquanto ele me levava pro quarto. Lembro de ter sido surpreendida pela força. Fui jogada na cama. Tentei beijá-lo para acalmar um pouco aquela afobação toda, mas de nada adiantou. Segundos depois minha roupa já tinha sido arrancada, ele tirava as calças com uma velocidade absurda, e antes que pudesse pensar em reagir, fui penetrada.

Tudo acabou tão rápido como tinha começado. Não tive sequer tempo de pedir que ele usasse camisinha. Lembro de falar pra ele, imediatamente após o ato, que não transava sem proteção, mesmo usando pílula, já que uma gravidez não planejada não seria minha única preocupação. Ele percebeu meu desconforto e garantiu que sempre se cuidava, mas que não tinha conseguido pensar direito, tinha se deixado levar por um arroubo de paixão. Me abraçou, me beijou, a doçura retornava e me envolvia mais uma vez. Decidi ignorar a dor que sentia entre minhas pernas. Já iria passar. E ele era perfeito, não era? Foi só um desencaixe. As próximas vezes seriam melhores… nos conheceríamos mais. Eu poderia dizer o que gosto. Poderia ensinar algumas coisas. Não se descarta um homem desses assim tão fácil… certo?

Errado.
Esse foi o primeiro de vários estupros que sofreria durante anos de relacionamento.

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A sociedade patriarcal nos ensina a normalizá-los, chamá-los de outros nomes, pois dessa forma fica mais difícil de identificar. Um desses nomes é ‘dever’. O ‘dever da mulher’, algo que era constantemente jogado na minha cara sempre que manifestava minha negativa ao sexo. E eu acreditava e cedia, em meio às constantes ameaças de que me deixaria. Eu, já isolada da minha família, afastada dos meus amigos, com dívidas de empréstimos para pagar nossas contas sempre feitos no meu nome, aprendi a ceder. Se eu não cumprisse meu dever de mulher, ele me deixaria. Eu cumpriria meu dever de mulher, por medo. Medo de ficar sozinha. E depois da tempestade, do dever cumprido, vinha reconquista. O pedido de desculpas, a explicação dos traumas do relacionamento passado. Presentes, surpresas, declarações públicas de amor.

Consentimento é um território nebuloso, especialmente quando se trata de um casal. Se eu deixei, é porque eu queria, certo? Foi consentido, apesar do sangramento que virou rotina pós-sexo. Aprendi a lidar com a dor ao urinar. O problema era meu, afinal, eu era frígida, teria algum bloqueio mal resolvido, insinuava ele. A única vez que tentei conversar sobre como eu gostava de transar, fui humilhada, enquanto ele gritava que eu não sabia o que era sexo com um homem de verdade. Chorei calada enquanto escutava cada ofensa. Era meu dever satisfazer aquele homem. Mesmo não querendo. Mesmo sentindo repulsa do toque. Mascarava a situação quando meu corpo, estremecido, reagia se afastando dele. Eu disfarçava, dizendo que eram só cócegas. Tinha medo do que ele faria se eu falasse a verdade. Acabei acreditando na narrativa de que o problema era meu, de que o problema era eu. Criei táticas para tudo aquilo acabar o mais rápido possível – se eu ficasse de quatro e fingisse um orgasmo, ele gozava logo. E então poderia cuidar do meu corpo e mente dilacerados, e ganhar algumas semanas de sossego. Durante anos, fui estuprada sem saber, cumprindo meu ‘dever de mulher’.

Consentimento é quando o desejo é mútuo. Quando o cuidado é mútuo. Quando existe livre espontânea vontade. Só fui entender anos depois do término desse relacionamento que essa coação psicológica que sofria para ceder meu corpo a esse homem se chama estupro conjugal, e é um dos principais tipos de violência doméstica sofrida por mulheres, que muitas vezes são incapazes de reconhecer a violação. E, assim como eu sofria, centenas de milhares de mulheres sofrem caladas, vítimas desse crime ainda tão normalizado na nossa sociedade.

Meu despertar tem sido um processo longo e doloroso. Entender que fui vítima de estupro desde o primeiro encontro com esse homem não foi fácil. Sempre me achei uma mulher forte, esclarecida. Não cabia na minha cabeça a noção de que logo eu, tão ativa na causa feminista, tão estudiosa, não tivesse sido capaz de reconhecer o estupro pelo que ele é. Mas existe uma razão pra isso. Nós como sociedade não falamos sobre estupro, a não ser o violento, cometido por psicopatas, com corpos usados e jogados em matagais. Nós, como sociedade, não entendemos o que é estupro. Que ele acontece diariamente dentro de casa. Que o estuprador a maioria das vezes é o seu namorado, marido, parceiro. Que a vítima pode até acreditar ter consentido a sua própria violação. Que ela não sabe que está sendo violada, e acredita que está apenas cumprindo o seu ‘dever’.

E é por esse motivo que eu decidi expor o que aconteceu comigo. Para que outras vítimas possam se reconhecer, falar, buscar ajuda, da forma que seja. Nesse momento de isolamento social, temos visto um aumento alarmante no número de casos de violência doméstica, mas ainda existe uma imensa subnotificação. Quando você está dentro de um relacionamento abusivo, é praticamente impossível identificar os abusos, quanto mais pedir ajuda, principalmente nos casos de violência psicológica, verbal, e patrimonial, das quais também fui vítima durante meu relacionamento com esse homem. Essas formas de abuso não deixam marcas físicas. Mas é de extrema importância que essas mulheres consigam identificar a forma que estão sendo violentadas, e que consigam pedir ajuda. E mais ainda, é fundamental que denúncias sejam feitas.

Recentemente, uma ex-parceira desse mesmo homem entrou em contato comigo. A mulher que o tinha “traumatizado”. Ela tinha visto um post no Instagram onde eu mencionava ter sofrido um relacionamento abusivo, sem dar muitos detalhes. Ela teve certeza sobre quem eu estava falando. Escutei seu relato em silêncio por telefone, que ficou ensopado do tanto que chorei. E com mais dor ainda, descobri que os vários crimes que haviam sido cometidos contra ela já haviam prescrito.

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A elaboração psicológica do trauma das agressões sofridas por mulheres muitas vezes demoram anos. Eu somente despertei recentemente. Muito tempo se passou. Mas acredito que se eu houvesse lido um relato parecido com o meu na época das agressões, se eu tivesse como me enxergar na história de outra mulher e me identificar como vítima de violência doméstica, a minha história seria outra. E é isso que me move hoje, tentar ajudar outras mulheres como eu, falando sobre estupro, e denunciando a cultura do estupro em toda e qualquer oportunidade possível. Nós mulheres somos condicionadas a nos calar. A consentir. A sofrer violências e abaixar a cabeça, com medo do julgamento e da retaliação por ter a coragem de se posicionar, a audácia de denunciar. E isso precisa mudar, agora.

Por isso, finalizo meu relato com um apelo: fale sobre violência sexual, violência física, violência psicológica, violência moral. Fale sobre estupro. Acolha mulheres que têm a coragem de expor sua experiência. Crie espaços seguros para que vítimas possam se abrir. Denuncie qualquer tipo de abuso, denuncie qualquer grau de abuso. Registre tudo, colha provas. Não espere. Busque uma rede de apoio. Não posso descrever em palavras o alívio imenso que é ser acolhida, e validada, por outras mulheres, principalmente as que têm histórias parecidas. Enquanto eu vivia essa relação, presa em um apartamento com esse homem, afastada da minha família, minhas amigas, sem rede de apoio alguma, era impossível abrir os olhos, escapar da narrativa imposta por ele. Hoje, olhando pra trás, é impossível não enxergar o que estava escancarado. Não podemos nos isolar jamais. Precisamos estar vigilantes, não só por nós mesmas, mas por todas as mulheres em nossa volta. Precisamos que todas lutem pelos seu direitos violados. Por você e por todas as mulheres vítimas de violência doméstica, não deixe passar. Fale sobre violência contra a mulher. Fale sobre estupro. Esse é o nosso verdadeiro dever.”

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