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Barreiras invisíveis impedem meninas e mulheres de acessar o aborto legal

Nos últimos meses, as discussões sobre o direito endureceram no Brasil. É preciso falar também sobre o peso que carrega quem mantém a gestação

Por Letícia Paiva Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 4 nov 2020, 15h31 - Publicado em 22 out 2020, 09h00

Nas mãos, a menina carregava um urso de pelúcia. Aos 10 anos, estava grávida de 22 semanas e quatro dias, consequência dos estupros repetidos do tio desde os 6 anos. Ela rejeitava a gestação, chorava, não queria dar à luz. O episódio aconteceu em agosto e ganhou destaque na mídia, mas mesmo após um aparente desfecho, as discussões e reações desencadeadas por ele continuam. Na época, foi solicitado pelo Ministério Público o aborto induzido para interromper a gravidez. Um juiz do Espírito Santo autorizou o procedimento sob justificativa de estupro e do risco de morte, mas o hospital em que a garota estava internada, que tem serviço de atendimento a sobreviventes de violência sexual, não aceitou fazê-lo. Alegaram que a idade gestacional ultrapassava a autorizada. Com isso, ela foi transferida para outro hospital, em Recife, que garantiu seu direito – em meio a protestos na porta, a criança precisou chegar escondida no porta-malas de um carro.

O caso se tornou campo de disputa política. Em meio às tentativas de dificultar o acesso ao procedimento por parte de manifestantes contra o aborto, o nome da menina foi divulgado nas redes sociais pela ativista Sara Winter, contrariando a garantia de sigilo em casos contra a infância e gerando pressão sobre a família. Agora, há suspeitas de que os bastidores tenham sido ainda mais escusos. A identidade da menina teria sido vazada pela equipe de Damares Alves, ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, de acordo com apuração da Folha de S.Paulo. Além disso, ela teria enviado representantes para intervir pela continuidade da gestação, influenciando a atuação de conselhos tutelares. O Ministério respondeu que prestou apoio, mas não tentou cercear o atendimento.

Ainda que a vontade da criança tenha sido atendida e o agressor tenha sido preso em seguida para responder pelo crime, a situação deixou cicatrizes na infância dela e reflexos no atendimento de saúde para estupro. Dias depois, o Ministério da Saúde publicou uma portaria atualizando protocolos de 2005 em relação ao aborto por violência sexual. O texto previa que, antes de aprovar a interrupção da gravidez, a equipe médica deveria informar a gestante sobre a possibilidade de fazer um ultrassom do feto que abortaria. Também determinava a notificação compulsória por parte dos profissionais de saúde à polícia de suspeitas de estupro e aborto legal – a lei 13 931, do ano passado, já determinava a necessidade de informar em 24 horas casos de violência contra a mulher.

Para o Ministério, essas seriam medidas que garantiriam a segurança jurídica de médicos. Entretanto, as críticas ressaltam que um ultrassom causaria mais um trauma a alguém que já é vítima, e as denúncias afastariam mulheres por medo dos agressores. Questionamentos sobre a portaria foram parar no Supremo Tribunal Federal (STF), mas um dia antes de julgamento, no fim de setembro, a pasta atualizou o texto, retirando apenas o adendo do exame de imagem e mantendo o restante. Assim, a discussão foi, provisoriamente, retirada da pauta da corte.

(Getty Images/Getty Images)

A definição sobre tais mudanças é aguardada com apreensão por profissionais de saúde. “Em vez de ser mais seguro para os médicos, pode dificultar o trabalho. Já notificamos os casos aos órgãos de saúde, mas ter que avisar a polícia pode nos coibir de fazer certos tratamentos”, diz a ginecologista e obstetra Helena Paro, coordenadora do Núcleo de Atenção Integral a Vítimas de Agressão Sexual (Nuavidas), iniciado em 2017 e que atende no Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia sobretudo pacientes de municípios da região norte do Triângulo Mineiro.

Além das implicações políticas e jurídicas, o caso do Espírito Santo tornou incontestável a dificuldade de acesso ao aborto legal no Brasil. Há milhares de outras meninas e mulheres que têm seu direito bloqueado ou não são instruídas sobre suas opções. As histórias delas não começam ou se encerram no momento em que abortam ou dão à luz, contudo pouco se torna público sobre o processo para chegar lá. Frequentemente, não se sabe ao certo quem são os abusadores; se as que levam a gestação adiante o fizeram por escolha própria; como fica a vida delas com um bebê nos braços fruto de um estupro. Os obstáculos para um aborto são, em última instância, uma representação de diversas outras fragilidades no país.

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Precisamos conhecer a lei

Desde a primeira redação do Código Penal, de 1940, o aborto não é crime no Brasil quando feito por médico para salvar a vida da gestante e em caso de estupro; em 2012, passou a valer também a interrupção quando detectado feto anencéfalo. Nos três cenários, o que mais enfrenta indagações é o que diz respeito à violência sexual, já que nos outros dois está em jogo a viabilidade do feto mesmo que a gestação prossiga. No caso da menina capixaba, a questão se torna exemplar porque ela cumpria os dois critérios iniciais e, de forma definitiva, não queria estar grávida. Mas o número de crianças sem acesso a esse direito pode ser muito significativo, ainda que o artigo 217-A do Código Penal preveja como estupro de vulnerável qualquer relação sexual com menores de 14 anos, mesmo que não seja a força ou sob ameaça.

Em todo o país, 21 172 nascidos vivos foram de garotas com 14 anos ou menos, sendo 75% delas negras, de acordo com dados mais recentes, de 2018, do DataSUS. A maior proporção é na região Norte, que não conta com serviços de aborto legal em Amapá, Roraima e Rondônia, segundo o Mapa do Aborto Legal. Os profissionais de saúde, conselheiros tutelares, oficiais de Justiça e outros que estão cuidando de casos de violência contra menores precisam saber e informar que ela têm três opções: manter a gestação e ficar com o bebê; encaminhá-lo para adoção após o nascimento; ou interromper a gestação. O consentimento oficial é exigido apenas para aborto. Mas como saber se a gestação continuou por vontade delas ou por dificuldades de acesso ao direito?

A lei brasileira não trata expressamente de um prazo limite de idade gestacional, mas o parâmetro de até 22 semanas e feto de 500 gramas – recomendado em normativa do Ministério da Saúde de 2005 – permeia o funcionamento dos serviços. “Não existindo marco legal sobre o limite, a regulamentação funciona para homogeneizar os serviços, mas há respaldo para ultrapassar o período quando couber”, diz a advogada Gabriela Rondon, do Instituto de Bioética (Anis). “Não há contraindicação médica para abortos após esse período, todos os serviços de ginecologia e obstetrícia poderiam oferecer. Ele é mais seguro do que um parto em meninas. Porém, a tradição brasileira segue a ideia de que haveria um feto viável após esse tempo”, explica Helena.

(Getty Images/Getty Images)

O risco de morte por complicações de parto são 14 vezes maiores do que por um aborto em condições seguras nos Estados Unidos, onde o direito é mais amplo, de acordo com dados de levantamentos reunidos pelo Anis. Por outro lado, alguns profissionais entendem que há a necessidade de salvaguardar a continuidade do serviço. “Se chegar um caso para nós de uma menina nova que já ultrapassou o período e não quer ter, vou comprar essa briga, mas vou pedir intervenção judicial para os meus médicos”, diz a ginecologista Ana Teresa Derraik, diretora geral do Hospital da Mulher Heloneida Studart, em São João de Meriti, na Baixada Fluminense (RJ), que mantém o serviço referência no estado de aborto legal e para complicações graves.

A limitação pesa mais sobre as meninas, que costumam acessar o sistema de saúde com gestações avançadas. Em março, CLAUDIA contou a história de uma jovem manauara de então 20 anos, mãe de uma menina de 7. Seu primeiro atendimento de saúde foi aos cinco meses de gravidez, na companhia da mãe, que, para proteger as duas, não informou que o responsável pela gestação era um familiar. A possibilidade de uma interrupção nunca foi comunicada às duas. “Quando muito jovens, elas não chegam ao nosso serviço com o pleito de aborto, mas já quase parindo. Cerca de um quarto dos partos mensais são de menores de 19 anos, com um parcela menor mas existente com menos de 14. Erramos desde o início”, diz Ana. Mesmo adolescentes mais velhas ou mulheres adultas precisam ter claros os seus direitos em relação a gestações forçadas.

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Quando há parto

Nem sempre elas pretendem abortar e têm o direito de optar por manter a gestação, o que não quer dizer que o fardo seja mais simples de carregar. Quando se tornou insustentável encobrir a barriga que despontava havia semanas, Yasmin*, 12 anos, passou a usar uma jaqueta pesada, bem maior do que sua estatura infantil, para sair de casa em um bairro na periferia de São Paulo. A recomendação fora dada pelo padrasto de 32 anos, que não queria que a gravidez provocada por ele após três anos de estupros chamasse a atenção. A mãe inventou que a garota havia engravidado em uma viagem da família à Bahia e depois disse que ela tinha usado a mesma toalha que o padrasto. A tia do padrasto, Jéssica*, suspeitou das justificativas absurdas. Mesmo achando que seria difícil ouvir uma admissão de culpa, ela resolveu confrontá-lo.

“Perguntei quem era o pai e ele, sem nenhum constrangimento, me disse: ‘Eu’. Aquilo me enojou e revoltou. Ainda consegui perguntar como tinha acontecido, se ele ia continuar o casamento com a mãe tendo engravidado a enteada. Ele falou: ‘É, até que a filha é mais ajeitada que a mãe’, sobre a criança”, conta Jéssica. Em julho, ela levou o caso a uma delegacia. A investigação chegou ao Instituto Nacional de Defesa e Promoção à Pessoa e, em seguida, à Ouvidoria das Mulheres do Conselho Nacional do Ministério Público. Após idas e vindas, o padrasto e a mãe da menina foram presos.

“Eu só pensava que, se não estivesse viva, gostaria que alguém intercedesse por minhas filhas. Não queria que todos ignorassem a realidade, como estavam fazendo”, conta. Aos 28 anos, a gerente de um empório de alimentos é mãe solo de três meninas, de 9, 4 e 1 anos. Na sua casa, na região metropolitana de São Paulo, as camas com lençol rosa são repletas de bonecas das pequenas. Yasmin foi morar com a tia quando já beirava os oito meses de gestação. “Disseram que aborto não era mais uma opção, porque a gravidez estava avançada, mas o tempo todo perguntavam se ela queria doar a criança, até depois do nascimento”, conta Jéssica.

Na noite de setembro em que começaram as contrações, ela levou a menina para o hospital; saiu para trabalhar e, quando retornou, não conseguiu entrar no quarto. “Diziam que era muito estranho a tia do abusador ficar com a criança e só me deixariam vê-la após a decisão judicial sobre a guarda dela e da bebê, que consegui”, conta. Yasmin ficou internada 15 dias no local, mesmo tendo recebido alta nos dias seguintes após o parto. Para a menina, não cuidar da criança nunca foi uma opção manifestada por ela – o padrasto a tinha convencido de que eles viviam um relacionamento. “Ela não fala sobre o que aconteceu, é muito raro, mas também não demonstra nenhuma raiva É uma menina bem infantil, tem as mesmas conversas que minha filha”, conta Jéssica.

Yasmin brincava com as primas segurando a recém-nascida no colo. Naquelas noites, sofria com os choros da bebê durante toda a madrugada e os percalços da amamentação. “Está melhorando, mas ainda dói bastante, saiu um pedaço de pele mais cedo”, conta a menina sobre o incômodo. “Quando esse tipo de crime acontece, não veem a quantidade de pessoas que são afetadas. Não se trata apenas de levar a gestação adiante ou não. Agora, a minha sobrinha vai para sempre ter uma responsabilidade que não é justa”, diz Jéssica, que teme que, quando a menina retorne às aulas, no ano que vem, a rotina seja ainda mais difícil de gerenciar.

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“Quando esse crime acontece, não veem a quantidade de pessoas que são afetadas. Não se trata apenas de levar a gestação adiante ou não”

Jéssica*

 

Nesses meses de pandemia, principalmente os de maior isolamento social, os atendimentos à saúde reprodutiva da mulher, incluindo o aborto legal, foram colocados à prova. Um levantamento realizado no começo da quarentena pela organização Artigo 19, em parceria com as mídias independentes Gênero e Número e AzMina para o projeto Mapa do Aborto Legal indicou que serviços que, até o ano passado, realizavam o procedimento não estavam mais fazendo. As pesquisadoras ligaram para os hospitais para obter as respostas como se fossem usuárias – dentre os 20 fechados, apenas dois identificaram a pandemia como motivo para não estarem atuando; outros 42 estavam ativos. Para criar o Mapa no ano passado, elas acessaram dados que não estão visíveis ao público via Lei de Acesso à Informação. Depois de uma filtragem, ligaram para cada um dos estabelecimentos. “Ficou clara a falta de informação dos próprios profissionais que atendem as chamadas, muitos não sabem os critérios para o aborto legal, dizem números de semanas que não seguem nem a normativa ou indicam a necessidade de levar documentos da violência. Também é difícil saber quais estão regulares”, diz Júlia Rocha, assessora de acesso à informação da Artigo 19.

“As mulheres têm chegado com gestações mais avançadas. Também temos sido mais procuradas, talvez pelo aumento da demanda em si ou por outros locais não estarem atendendo e termos feito campanha para que elas saibam como nos encontrar. Precisamos de cada vez mais serviços, e não o contrário, como parece estar acontecendo”, diz Helena, que mantém um grupo informal com representantes de diversos postos pelo Brasil, que passam por situação semelhante. No serviço dela, nos nove primeiros meses deste ano, a média mensal de atendimentos duplicou em relação ao ano passado. Desde agosto, foi iniciado o atendimento à distância para que mulheres possam realizar a medicação abortiva em casa com segurança (opção restrita a estágios mais iniciais). A ideia é receber autorização para atuar nacionalmente.

Sem direitos

Na medida em que esse período poderia aumentar a demanda por abortos legais, já que em diversos estados, houve aumento em números de violência doméstica, incluindo sexual, há o risco também de que mulheres desamparadas recorram a métodos mais inseguros. Soma-se o fato de que, distantes do sistema de saúde, elas ficam sem acesso a métodos contraceptivos – essa situação já colocou as mulheres em vulnerabilidade em outras epidemias, como a do Ebola, especialmente na África. A plataforma de medicamentos Consulta Remédios mantém média constante de acessos totais, mas registrou aumento de 91% nas buscas por misoprostol, usado nesses casos, entre abril e julho quando comparado ao primeiro trimestre – em setembro, as buscas quase dobraram em relação ao mesmo mês do ano passado. Não significa, necessariamente, que elas estejam conseguindo comprar.

Em junho, foi noticiado por jornais regionais a morte de uma mulher de 31 anos em Bom Jesus do Norte (ES), casada, após pagar 800 reais para uma mulher fazer um aborto usando seringa, sonda e permanganato de potássio, o que não é recomendável. “Tenho visto casos de complicações com os quais não me deparava há anos. Recebi recentemente um muito grave por causa de uso de um talo de mamona. O que é muito triste é perceber que muitas delas têm o direito por terem sido violentadas. Tratei uma menina de 13 anos com complicações de aborto inseguro. A vida delas é colocada em risco”, diz Ana Teresa.

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91% foi o aumento de buscas por misoprostol, medicamento usado para aborto, entre o primeiro e o segundo trimestre deste ano no site Consulta Remédios

 

Fazer um aborto na clandestinidade não necessariamente significa dizer que ele é inseguro, se seguir as normas abertas da Organização Mundial de Saúde (OMS), de preferência acompanhado por uma pessoa experiente, sem uso de instrumentos invasivos ou pontiagudos, ingerindo doses do misoprostol conforme indicado pelo órgão mundial. A Pesquisa Nacional do Aborto (PNA) de 2016 mostra que 250 mil mulheres são hospitalizadas após um aborto, cerca de 50% do total – entretanto, a OMS diz que entre 2% e 5% necessitam de intervenção posterior quando usam medicamentos corretos.

A linha de redução de danos é usada por muitos projetos e organizações voltados a informar as mulheres. É o caso da Safe2Choose, que mantém diferentes plataformas para profissionais e mulheres, como o site com instruções sobre uso de pílulas abortivas. O Brasil é o segundo país que mais acessa, atrás apenas da Índia. Elas não fornecem as pílulas diretamente, mas mantêm uma lista para identificar fornecedores não confiáveis, e têm parceria com o projeto Milhas pela Vida das Mulheres, que visa conectar mulheres a serviços seguros. “Geralmente, elas escrevem se justificando, dizendo que são responsáveis, que um método falhou ou que são mães. Mas queremos que entendam que não precisam se explicar e recomendamos que elas busquem outras mulheres, que podem ter conhecimento e que irão ajudá-las”, afirma uma colaboradora.

(Getty Images/Getty Images)

As redes femininas informais, na internet e fora dela, são o principal canal para as mulheres que buscam interrupções não autorizadas em lei. “A única forma que eu tenho de confortar é acompanhar, explicar o que cada etapa significa, apoiar para aguentar até terminar o procedimento. Faço quase um papel de mãe”, conta uma jovem que faz parte de um desses grupos e ajuda a conseguir o medicamento abortivo. Começou essa atuação após, no sistema de saúde, ter sido maltratada por um médico ao sofrer um aborto espontâneo, que ele acreditava ter sido provocado. Recebeu o apoio de uma enfermeira e quis exercer esse papel. Toda semana, por volta de três mulheres entram em contato com ela para isso. Frequentemente, passa noites acordada aguardando o fim de um abortamento. Sabe que poderia ser denunciada a qualquer momento – o Código Penal prevê pena de um a quatro anos para quem ajuda a abortar e de um a três para a mulher que consente.

“Muito pouco se fala sobre autonomia sexual da mulher e historicamente há uma enorme violência simbólica, mesmo quando se trata de um caso espontâneo. Elas são confrontadas e agredidas por quem está próximo”, diz a historiadora Marcela Boni, professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, que estuda o tema a partir de relatos de mulheres em diferentes momentos sociais.

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Embora a PNA indique que, aos 40 anos, uma em cada cinco mulheres já fez um aborto, esse é um tema que não se fala, é mantido em segredo por quem viveu. Apenas três amigas e o ex-companheiro de Juliana*, 23 anos, sabem que, há três anos, ela provocou um aborto. Aos 18 anos, ela, que mora na região metropolitana de São Paulo, trocou o anticoncepcional que tomava por orientação médica desde os 12 anos; o médico disse que ela deveria emendar cartelas nos três primeiros meses, mas não falou nada sobre o período de transição. Após quatro meses, se descobriu grávida. “Estava com uma amiga, choramos em frente ao posto de saúde. Pesquisamos o que poderia ser feito e parecia arriscado abortar. Eu não tinha escolha além de aceitar”, conta ela, que nunca quisera ser mãe. Teve a filha, hoje com 4 anos.

“A gestação foi muito difícil, porque eu rejeitava e, ao mesmo tempo, me culpava. Eu estava estudando inglês, planejava um intercâmbio e tive que conseguir um emprego em tempo integral”, lembra ela. O período de desamparo não cessou no parto – uma enfermeira, um dia após ela dar à luz, disse: “Até o ano que vem, mãezinha” – nem quando a filha nasceu, período em que a rotina se limitava a trocas de fraldas e amamentação. Quando a menina tinha sete meses, se descobriu novamente grávida, após poucas semanas.

“Eu, como mulher preta e periférica, não tinha opções. Por isso, não digo que foi uma decisão certa ou errada, porque não escolhi”

Juliana*

 

“Não conseguia acreditar, porque fazia tudo conforme mandava, não faltava um dia da cartela”. Junto com a amiga que a acompanhou na descoberta da primeira gravidez, encontrou quem vendesse o remédio. Os 200 reais que pagou impactaram diretamente seu orçamento de um salário mínimo. “Eu me sentia uma criminosa, mas fui buscar. Demorei uma semana para conseguir tomar. Passei o dia todo sozinha com uma bebê, porque meu namorado foi trabalhar. Fiquei com muito medo, fazendo força, assustada. À noite, comecei a sentir dor, fui ao banheiro e achei que tivesse acontecido, então chorei muito. Na manhã seguinte, acordei com dores e só então realmente abortei. Eu me tranquei no banheiro e só consegui chorar”. Por muito tempo, o sentimento era misto de alívio com culpa. Hoje, entende que era o que conseguia fazer.

Durante a pandemia, uma colega a procurou, porque precisaria passar pela mesma situação. “Eu queria que tivessem conversado comigo, que eu, como mulher preta e periférica, não tinha opções. Por isso, não digo que foi uma decisão certa ou errada”, diz a jovem, que, desde o ano passado, está matriculada na faculdade, e agora quer se dedicar a formar a filha. Na clandestinidade ou com o direito assegurado, as mulheres que abortam têm despejado sobre si a culpa, o medo e a rejeição. Quando assumem o peso de ter um filho, a situação não é mais fácil. No caso do aborto, não se trata de escolher.

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