Saída da Globo, filha adolescente e amor: Camila Pitanga só quer ser fiel a si mesma
Para CLAUDIA, a atriz fala sobre mudanças na carreira, maternidade, críticas aos seus relacionamentos e o poder da intelectualidade negra no audiovisual
Ao aceitar suas falhas e valorizar suas potências, a atriz desenvolveu uma relação íntima consigo mesma, pautada na leveza e no amor
Uma voz entusiasmada tomou conta do estúdio quando a porta se abriu. Os contratempos meteorológicos que mudaram o horário do voo do Rio de Janeiro para São Paulo e, consequentemente, toda a programação das fotos para essa entrevista, não abalaram nem um pouco a animação de Camila Pitanga, 44 anos. “Fui testada, vacinada com as duas doses, estou de máscara. Vamos nos abraçar? Sinto tanta falta disso”, disse a atriz com um sorriso no olhar.
Embora a reação carregasse naturalidade, Camila confessou que expor sua essência descontraída exige uma combinação de fatores. “Só me sinto livre e brincalhona em um território de cumplicidade. Caso contrário, posso ser um bichinho assustado”, lembra ela que, com a maturidade, fez da insegurança um direito.
“Nem tudo está ao meu alcance. Essa coisa de compreender que não temos controle e de se entregar para a vida é um exercício de sabedoria”, garante a atriz.
Em outubro, ela entendeu na prática como funciona respeitar essa barreira do que foge à sua alçada. Quando compartilhou que estava namorando o professor de filosofia Patrick Pessoa, após o fim do relacionamento com a artesã Beatriz Coelho, se tornou alvo de haters.
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Camila olhou para a sua própria existência para se afastar desses julgamentos. “Não é um panfleto ou lição de moral. É só o meu modo de viver, de amar e de existir”, conta ela, que diz viver o ápice do seu processo de autoconhecimento.
Os mergulhos dos últimos meses também foram múltiplos e profundos na carreira. Este mês, seu ciclo de quase 30 anos na Rede Globo ganhou um ponto final para que a artista pudesse experimentar o universo do streaming com a HBO Max.
“Tomei a decisão de sair da minha zona de conforto para assumir uma nova responsabilidade. Sei que não será simples, mas acredito na minha força criativa”, diz ela, que ainda aparecerá como a lobista Olga na segunda temporada de Aruanas, na Globoplay, a partir de 25 de novembro.
Camila também se prepara para o lançamento de Malês, longa em que atua. Com direção do seu pai, Antônio Pitanga, o filme mostra o histórico levante, em 1835, de negros muçulmanos que foram escravizados na Bahia.
Mesmo perdendo a batalha por melhores condições de vida, os nagôs – como também eram conhecidos – mostraram a importância da fusão de diferentes culturas e religiões e o protagonismo negro na luta por sua liberdade.
Disposta a dividir suas transformações internas e permitir que, ao transbordar, elas levem a ideias disruptivas, Camila mostra os passos que a fizeram uma das principais referências de cidadã nos dias de hoje.
Como lidou com a sua expansividade durante o isolamento?
Eu morava num apartamento, então criei uma espécie de ilha com algumas vizinhas: uma ajudava a outra, fazia comida. Depois, tive o privilégio de ir para um lugar de acolhimento na natureza.
Lá, entrei num frenesi de fazer tudo o que tinha vontade, como cursos e a peça online Matriarquia em Processo, fruto do meu encontro com a dramaturga Dione Carlos, a diretora Cris Moura e a roteirista Lucia Gayotto. O ânimo pela vida e pelo trabalho me segurou.
Sua filha, Antônia, já está com 13 anos. Como foi esse período com ela?
Construímos uma maturidade na nossa parceria e individualmente. Deu tempo de adoecer, entristecer, se salvar e ter cumplicidade. Vivemos a eternidade das incertezas, mas também a eternidade da afirmação da vida. Isso foi conversado entre nós duas, mesmo com vários altos e baixos.
Agora, temos os desafios da adolescência. Brinco que até os 9 anos dela, eu era uma patinadora de gelo ousada. Agora, já sinto o piso meio molhado. Ela vem socializando mais e descobrindo a própria autonomia, por isso, acordos precisam ser feitos.
A sua maternidade sempre ficou protegida dos holofotes. Como essa escolha aconteceu e quais impactos disso enxerga na Antônia?
Aconteceu naturalmente. É o meu jeito de ser. Meu pai sempre teve esse cuidado de entender o que era pra minha idade. Se ela escolher ter uma profissão com certa visibilidade, trilhará caminhos dela, mas que vão dialogar com os meus, porque ela nunca vai deixar de ser filha de uma atriz conhecida.
Ela tem muito brilho e a voz que eu queria ter, mas também tem um pensamento analítico sobre as coisas do mundo. Não me cabe desenhar seus passos, quero que ela seja inteira em algo que faça sentido e que tenha a liberdade de mudar de rota quando quiser.
“Eu me acolho quando estou frágil e insegura, mas também louvo minha versão que pensa, ama, se comunica, trabalha”
A maturidade ajudou você a se permitir mais?
Estou com 44 anos e nunca me senti tão inteira, conectada com o meu ser, meu desejo, minhas pegadas. Gosto muito da minha caminhada, mas admiro ainda mais o meu tempo presente. Trilho uma trajetória de maturidade e envelhecimento com saúde, amor próprio e aceitação de fissuras e medos.
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Hoje, encaro meus passos em falso com leveza e compreensão mais amorosa do que antes; eu era uma general comigo mesma. Eu me acolho quando estou frágil e insegura, mas também louvo a minha versão que pensa, ama, se comunica, trabalha. Essa sou eu! Gosto da pluralidade. Sou uma mulher negra em movimento e tudo o que vivi até agora me dá orgulho. Nada se abandona, tudo fica como suspiro, cicatriz ou reflexão para mudança.
Como lida com julgamentos de seus relacionamentos? Acha que a liberdade, no geral, está sob ameaça?
Agora, mais do que nunca, fomos convocados a não abrir mão da liberdade, seja a minha, seja a de quem me cerca, seja a de quem pensa diferente de mim. Quando pessoas acham que têm autoridade para serem preconceituosas sem pudor, a gente não pode recuar. Não dá para abrir espaço para o obscurantismo e o julgamento dos outros.
Nada como ter a idade que tenho para entender que a minha vida ou quem eu amo não tem a ver com o outro. Não se trata de um panfleto ou lição de moral para ninguém. É só o meu modo de viver, de amar e de existir. Se respeitarmos uns aos outros, teremos uma vida mais interessante, colorida e plural.
Você é embaixadora da ONU Mulheres e atua em movimentos de diversas causas sociais. Esse fazer político foi aflorado de que forma na sua vida?
Minha motivação para fazer política é ser filha de Antônio Pitanga e Vera Manhães, ser filha de coração de Benedita da Silva, neta de Maria da Natividade, mulher preta e lavadeira. Vem da minha raiz a noção de não se contentar com o que resolve a minha vida. Não adianta eu ficar bem com a minha família, o meu conforto e trabalho se dou dois passos e tem pessoas vivendo as maiores desigualdades.
Quero fazer parte da construção de um país democrático, antirracista, que oferece para as mulheres, principalmente as negras, oportunidades de existência no mesmo lugar das outras pessoas. É necessário correr atrás de quem inspira e também lutar para agregar outros olhares, porque não quero andar com quem só pensa igual a mim. Meu pai é assim, não faz diferença entre as pessoas e pratica o desejo pela escuta.
Junto com seu irmão, você está no elenco de Malês. Qual lição esse levante histórico deixou para você?
Uma coisa que me inspirou na história dos malês – e vejo isso no meu pai também –, é a importância de comungar, mesmo nas diferenças, em prol da luta pela igualdade. Eles entenderam que não iam dar conta sozinhos daquela insurgência, por isso se uniram a pessoas de outras religiões. É a comunhão da força da negritude.
Isso tem uma dimensão política inspiradora. Precisamos aparar nossas arestas e modular discursos para acolher pessoas de campos diferentes. No filme, o contexto é o regime da escravidão, mas há muita coisa daquela época ainda presente. Pretos estão morrendo e ainda são vistos com indiferença, mas, ao mesmo tempo, temos uma potência e compreensão da força maior do que naquela época.
Quais frutos vamos colher, como sociedade, com esse protagonismo de nós, negros, e indígenas contando suas próprias histórias, que são diversas e plurais?
As cotas fortalecem essa emergência da intelectualidade não branca. Elas abrem campos de pensamentos e, quando isso acontece, as nossas existências são ampliadas. Quando entendemos que podemos pensar de outras formas e nos afirmarmos como autoridade, criamos uma cultura antirracista mais aberta. Ocupar espaços de saber e criação na literatura, no cinema, no teatro, dissolve essa ideia assentada de sociedade do racismo.
A intelectualidade negra sempre existiu, mas agora temos um volume em cargos que não eram ocupados por nós. Não tem como voltar atrás. A ascensão de mulheres negras no campo do saber não é para alijar, mas desestabilizar algo que é perverso, mata e exclui.
Nessa edição de CLAUDIA, temos um manifesto da felicidade, que nasceu a partir da frase da intelectual Juliana Borges: “Uma mulher negra feliz é um ato revolucionário”. O que é felicidade para você e qual é a sua arma nessa revolução?
Evoé Juliana! Faço de suas palavras as minhas. A felicidade, para mim, é o conforto do abraço e do colo dos meus pais. Minha mãe, mesmo com toda dificuldade que teve, sempre foi muito amorosa comigo. Acredito que a felicidade não é estável, mas esses instantes. Muita gente não tem olhos para vê-los, porque não aceita a incompletude. É importante entender que não vamos dar conta de viver algo para sempre no mesmo lugar. A graça da vida é aceitar esse movimento.