Obsessão por ser feliz está nos tornando ansiosas e depressivas
Tamanha opressão começa com a ideia de que a infelicidade se deve ao pouco esforço pessoal
Reflexões sobre felicidade são antigas na história da humanidade. Estão até na obra de grandes filósofos gregos, como Platão e Aristóteles. Aliás, o conceito aristotélico de eudaimonia – condição de bem-estar originada no desenvolvimento pleno das potencialidades de cada um a serviço do bem comum – é ainda hoje estudado e central nas pesquisas sobre o que nos faz felizes. Vamos voltar a ele mais adiante. O que é recente é essa ideia intrusiva de que precisamos buscar a felicidade a todo instante – tem muito a ver com o processo produtivo de rendimento máximo surgido após a Revolução Industrial e cada vez mais intensificado pelo capitalismo.
De tão onipresente, tornou-se ela mesma causa de infelicidade. “Hoje, existe o conceito de uma felicidade permanente que depende exclusivamente de nós mesmos. Se ela acontece, era o esperado. Quando ela não vem, vira causa de culpa, inadequação. Faz as pessoas questionarem onde erraram”, explica o psicanalista Christian Dunker, professor da Universidade de São Paulo. A psicóloga e mestre zen-budista monja Kokai concorda. “Se você é infeliz, fracassou. Se não teve sucesso nos negócios, fracassou. Toda a culpa é do indivíduo. Isso é massacrante”, diz.
Foi exatamente essa sensação que levou a bancária gaúcha Bruna Teixeira, 31 anos, para a terapia. “Projetava coisas demais para o futuro e deixava o hoje de lado”, relata. “É complicado mudar essa lógica porque é muito difícil não criar expectativas”, completa. Bruna conta que chegou a se sentir em dívida até mesmo com a terapeuta e se desculpou porque não estava cumprindo as tarefas planejadas durante as sessões da terapia cognitivo-comportamental (TCC). Diante das redes sociais, o sentimento de insatisfação é amplificado. “No Instagram, essas influenciadoras digitais têm corpos maravilhosos e querem vender tratamentos estéticos. Falam de exercícios com personal e dieta com nutricionista. Elas postam fotos de seus relacionamentos perfeitos. É o que mais me deixa ansiosa, sabe?”, desabafa.
O impacto das redes sociais na saúde mental já virou uma preocupação nos consultórios. Pesquisadores da Royal Society para a Saúde Pública da Grã-Bretanha entrevistaram cerca de 1,5 mil jovens com idade entre 14 e 24 anos sobre 14 pontos relativos ao bem-estar. Em seguida, as plataformas foram ranqueadas em termos de efeitos positivos e negativos. Resultado: o Instagram, que deixa Bruna ansiosa, foi a rede social com pior impacto na saúde mental dos participantes. Outra pesquisa, feita com cerca de 1 milhão de pessoas pelo Moment, aplicativo que monitora como são utilizados os smartphones, também relacionou o uso exagerado do Instagram a problemas como distúrbios do sono, ansiedade, depressão, solidão e distorção da imagem corporal. Na enquete realizada, 63% dos que passavam mais de uma hora por dia nessa rede social relataram se sentir infelizes.
Ponto de vista
Não é à toa que isso ocorre. Segundo Dunker, a felicidade depende da forma como interpretamos e julgamos a felicidade alheia. “Se seu parâmetro é Auschwitz, estar vivendo fora de um campo de concentração e em um mundo que condena o nazismo é motivo de felicidade”, diz o psicanalista. Mas, se seu parâmetro é a vida dos famosos, você está em apuros. Embora se comparar faça parte do modo como construímos a nossa felicidade, há nisso um componente potencialmente destrutivo, o que Dunker chama de felicidade prêt-à-porter (pronto para vestir, em francês). Isto é, uma felicidade fast-fashion ou fast-food.
Ela é particular, pequena, construída à base da infelicidade alheia, com a satisfação advinda da subjugação ou derrota do outro. Segundo o psicanalista, é essa (in)felicidade que tomou conta do Brasil com a polarização política iniciada nas eleições presidenciais e que vem dinamitando muitas relações de afeto desde então. “É o que produziu esse clima generalizado de insatisfação que sentimos”, diz.
Esse prazer egoísta é maléfico porque é o oposto de um dos tipos de felicidade, a eudaimônica, de que falamos no início do texto. Dois mil e quinhentos anos após Aristóteles definir o conceito, a corrente da psicologia positiva reafirmou sua pertinência. Desenvolver as próprias habilidades não para o próprio bem, mas para o bem-estar geral (seja da sua família, dos seus amigos, seja da sociedade), é ainda hoje uma das fontes de felicidade. Por causa disso, a Organização Mundial da Saúde (OMS) passou a definir saúde como um indicador biopsicossocial. Ser saudável não é apenas a ausência de doenças físicas; está ligado ao bem-estar psíquico e a viver em uma sociedade mais justa. A felicidade entrou na tríade da saúde.
Quem está contigo
Um estudo clássico publicado em 1938 pela Universidade de Harvard e ainda hoje muito citado revelou que os bons relacionamentos, mais do que fama ou dinheiro, foram os responsáveis por manter as pessoas felizes ao longo da vida. Os laços fortes ajudam a lidar melhor com as tragédias e a atrasar o declínio físico e mental trazido pela velhice. Até mesmo Freud, um cético da felicidade permanente, listou “trabalhar com os outros” entre as oito técnicas que trazem prazer descritas em sua obra O Mal-Estar na Civilização. “Somos animais gregários, viemos ao mundo para nos relacionar”, diz a psicóloga Renata Livramento, presidente do Instituto Brasileiro de Psicologia Positiva, em Belo Horizonte.
Querer ser feliz o tempo todo é impossível para o cérebro. Não existe felicidade para quem nunca sentiu tristeza
Claudia Feitosa-Santana, neurocientista
A ideia de que a felicidade está na travessia, e não no destino, pode ser um bom antídoto contra a opressão de ser feliz. Não há felicidade absoluta e permanente. Há momentos felizes, instantes, que podem ser fugidios, mas não por isso menos relevantes. “Querer ser feliz o tempo todo é impossível para o cérebro. Nosso mundo é feito de contrastes e somos máquinas de detectar diferenças. Não existe felicidade para quem nunca sentiu tristeza. Não temos como valorizar o amor se nunca vivenciamos o desamor”, diz a neurocientista Claudia Feitosa-
-Santana, pesquisadora da Fundação Dom Cabral e professora na Casa do Saber, em São Paulo.
Processo em construção
Quem passou por um sofrimento profundo sabe que a felicidade não está pronta, mas sempre em construção. A jornalista gaúcha Nereida Vergara sofreu um baque sete dias antes de completar 50 anos. “Dos 26 aos 49 anos, vivi um grande amor. Um amor que as pessoas admiravam, que era inspirador e que me deu dois filhos maravilhosos. Foram anos de felicidade em que as horas difíceis eram sublimadas. Dizíamos ‘eu te amo’ todos os dias. Parecíamos invencíveis”, conta ela. Tudo ruiu quando soube da traição do marido com uma mulher mais jovem. “De criatura alegre, passei a ser um fantasma raivoso e amargo, me despersonalizei a ponto de não reconhecer minha imagem no espelho.”
Nereida pediu o divórcio, passou pelo divã e encarou a dureza de ter um interlocutor que apontava os seus erros, e não os da outra pessoa. Depois, reviu sua relação com o trabalho, que havia deixado em segundo plano por causa do casamento, e começou em um novo emprego. “Acho que reeditei minha história e a coloquei em um cenário real”, diz ela, que deixou de lado a fantasia do amor eterno. “Minha alegria tem sido acordar todos os dias, molhar minhas plantas, alimentar meus gatos, saber que minhas crianças estão seguras, fazer meu trabalho com honestidade e à noite voltar pra casa, que tem a porta aberta para quem quiser me visitar.”
De certa forma, Nereida conseguiu cultivar os cinco componentes para alcançar o bem-estar proposto por Martin Seligman, fundador da psicologia positiva e principal teórico da área. São eles: 1) ter emoções positivas, o que significa canalizar a energia para algo bom, mesmo que os sentimentos sejam raiva e tristeza – não se esqueça de que eles podem ser fonte de aprendizado e autoconhecimento; 2) engajar-se num trabalho ou tarefa de que você goste; 3) fortalecer laços com família e amigos; 4) encontrar algo pelo qual valha a pena viver; 5) ter um propósito que ofereça desafios constantes.
Para alcançar isso, é preciso ter foco. Em um consagrado artigo de 2010, os psicólogos Daniel Gilbert e Matthew Killingsworth, da Universidade de Harvard, concluíram que uma mente dispersa é uma mente infeliz. Embora a capacidade do nosso cérebro de divagar e prever o futuro seja uma conquista cognitiva evolutiva fundamental, que no passado nos ajudou a antecipar a chegada de um predador ou a armazenar comida para um inverno rigoroso, hoje ela pode ter uma repercussão negativa. Isso porque passamos boa parte do nosso tempo – 46% do dia, segundo o estudo – pensando no passado, no futuro, imersas em ideias. Isto é, viajamos acordadas quase metade do dia e, com frequência, lidamos com o mundo sem estar necessariamente conscientes. Como antídoto, a dupla de psicólogos recomenda treinar a atenção plena no presente, tal qual sugere o budismo.
Mas não vá buscando encontrar a felicidade na meditação. “Hoje em dia, descobriram a meditação com o objetivo de aumentar a produtividade. É o uso da meditação para lustrar o ego”, critica a monja Kokai. “Na meditação zen, a busca não é para engrandecer ainda mais nosso ego, mas para deixá-lo mais generoso”, diz. Segundo Kokai, o budismo até mesmo evita a palavra felicidade. Prefere contentamento, que contempla melhor a transitoriedade do que significa sentir-se bem.
“Como vou ser feliz em uma era em que a civilização tem tantos impasses e retrocessos? Como podemos ser felizes com tantas desigualdades e injustiças sociais? Mas é possível calibrar um olhar de contentamento diante da vida com respostas que nunca estão prontas”, diz. Dunker também acredita que precisamos cultivar uma cultura da generosidade e expandir nosso ideal de felicidade para além do nosso umbigo. “Vai chegar um momento em que ser feliz ou não deixará de ser uma questão relevante. Vamos nos preocupar em termos um propósito ou em aprender a amar”, conclui.