Vera Holtz: “Eu brinco. Gosto de alimentar a minha criança interior”
Em cartaz com a peça "Ficções", a atriz investiga a formação da humanidade — e se mostra cada vez mais completa em sua existência particular
Encontro marcado no Teatro Faap, em São Paulo, para ajeitar os detalhes do que você, leitora, vê nestas páginas. Cheguei antes do horário combinado, entrei, sentei e aguardei o sinal. Vera Holtz cruza o palco, estende as mãos para o alto e ensaia o texto. A luz focada em seu rosto, suas mãos, a voz firme, e eu pequena na cadeira. “Ela é um monumento”, pensei comigo. Talvez você já tenha essa sensação por conta das fotos magníficas que ela compartilha mês ou outro na sua conta no Instagram com ares de performance artística — e quem disse que não é? —, mas nada se compara ao estado de presença que ela demonstra ali, no seu habitat natural. E uso desta palavra como analogia ao conteúdo de sua nova peça em cartaz, Ficções, com texto e direção de Rodrigo Portella, inspirada no livro (nada fácil) Sapiens: uma Breve História da Humanidade, de Yuval Noah Harari.
Apesar do tema denso e da postura que estamos acostumados a ver na sua reservada “vida pública”, ela transforma tudo em festa: não só. A risada vem, mas o choro aparece também. Vera nos carrega pelo submundo da existência homo sapiens com frases maravilhosamente trágicas (e cômicas), num pêndulo de tempo-espaço que ora te joga um abraço, ora te joga do abismo.
Existencialista demais? Talvez, mas eu gosto de quem me faz pensar — e Vera faz muito. Penso (veja!) que seja coisa de gente cabeçuda, ou simplesmente de leoninas que adoram um desafio. Quase gêmeas de aniversário, compartilhamos também o apreço pela novidade. “Eu não gosto de coisa fácil. Quando fui fazer a peça Ópera Joyce, do Alcides Nogueira, sobre James e Nora Joyce, eu li o texto e falei: ‘Não entendi nada, Alcides, vamos fazer!’”, se diverte.
Com Ficções, a mesma coisa: o frescor de um texto científico-filosófico e a contemporaneidade da direção de Rodrigo, com interlocução dramatúrgica de Bianca Ramoneda, Milla Fernandez e Miwa Yanagizawa, foram o suficiente para ela aceitar o papel de 20 personagens dos mais variados tipos. Mulher, ovelha, trigo, fóssil se desdobram na frente dos seus olhos, em um palco totalmente aberto, sem cortinas para esconder nada, nem a troca de figurino, nem o ponto que a auxilia, caso necessário, durante o monólogo dinâmico de mais de uma hora. “Sou metade DNA, metade minhas escolhas.” Inspira, segura o ar, solta.
“Como nós tivemos uma trajetória [de preparação] muito curta, fui me apropriando do texto em blocos. À medida que me aproximava e me distanciava da leitura, pude entender suas camadas. É um jogo de emoções que a tragicomédia te dá, e a peça só se completa com a entrada do público.” A conexão com a plateia ressoa no âmago dos mais atentos, inclusive pela música original, criada e performada por Federico Puppi.
Porém, não é só a gente que fica derretendo em elaborações mentais. “O texto me atravessa o tempo inteiro, tenho vários insights fazendo, ensaiando. Tem horas, no palco, que as cenas começam a formar novos sentidos, ali, ao vivo”, compartilha. “Quando ela termina e vejo alguém chorando, sinto uma conexão, como se fosse a continuação da peça. É uma verticalidade de percepção o tempo todo. Você tem que gostar do que faz, estar aberta.”
E ela mostra que é do time das apaixonadas pelo ofício. O estalo veio nos anos 1970, depois de ter se formado em artes plásticas e desenho — antes, já tinha passado pela música e pela rádio, na cidade onde nasceu, em Tatuí, interior de São Paulo. “Um amigo me convidou para um curso de expressão corporal e fiquei encantada. Decidi me inscrever na Escola de Arte Dramática da USP: passei no vestibular e vim para São Paulo”, conta.
Pouco depois, mudou-se para o Rio de Janeiro e conseguiu alguns trabalhos de desenhista até que, em 1979, estreou em Rasga Coração, de Oduvaldo Vianna Filho. De lá até os anos 1990, Vera optou por experienciar toda a parte técnica, do figurino à montagem de cenários, da luz ao departamento de pintura. “Meu mundo era a caixa preta.” Com confiança e experiência, estreou em papéis importantes dali a frente, sob direção de grandes nomes, incluindo Luís Antônio Martinez de Corrêa e Mauro Rasi.
Hoje, aos 70 anos, ela já coleciona 50 peças, 40 novelas, 30 filmes e inúmeros prêmios. Dessa epifania do acaso que a levou até o teatro, ela celebra a sensação de união. “As pessoas precisam entender que [o teatro] é um processo criativo coletivo, cada um assume o seu protagonismo. Nós, por exemplo, nos apresentamos toda noite, no final, um a um, com nome e função. Assim, formamos esse cooperativo que é o Sapiens [espécie].”
Em Ficções, a ideia de tempo é colocada em xeque. Nas falas, na música, mas também nos silêncios. Como é trabalhar nesses pêndulos?
Às vezes não é a palavra que comunica, às vezes é a música, às vezes o cenário. Você pensar nessas camadas tira a necessidade de deixar a força cênica apenas na palavra. E isso é bem do teatro contemporâneo, poder usar todo um espectro de suportes de criação e deixar esses espaços se comunicarem, tocarem as pessoas. Cada um tem seu lugar para criar e se comunicar.
E essa peça é um estímulo mesmo, né? Estimula não só o raciocínio, mas outras percepções também: a presença do público, a música, os silêncios. Você vai para outro lugar. Sempre digo que quanto mais estímulo tiver um espetáculo, melhor. Nem todo mundo vai entender a lógica da dramaturgia, da literatura dramática. Não é fácil compreender teatro, mas ele pode te abrir para o que você quiser.
O que você sente que mudou na profissão de quando começou para agora?
As narrativas estão mais capilarizadas hoje, você não conta só uma história, você tem documentários cênicos, espaços para criar que vão além do palco italiano — pode ser numa galeria, na rua, numa barca. É uma explosão de sensibilidades, de talentos, de pessoas que olham o teatro de outra forma. Eu percebo o novo e acho ele fantástico.
Além da atuação de teatro, você também constrói uma linguagem de arte performática no Instagram. Por que você começou (e continuou)?
É uma satisfação para mim. Eu que estudei artes visuais não conseguia me enxergar como uma pintora, e a performance não era uma realidade na época. Então, quando chego nesse mar das artes plásticas, eu deságuo. Consigo me comunicar sem falar, porque não é confortável, tenho dificuldade.
Para mim, foi um alívio, uma expansão. Não posso responder por tudo na vida, e nem me proponho a isso, mas eu posso jogar uma foto que a minha vivência elaborou [a respeito de algo] e a gente traçar um diálogo a partir disso. É uma conversa corpo a corpo. Tem gente que não entende e me questiona, mas não precisamos entender com a cabeça, podemos sentir, olhar, escutar, cheirar, lamber, tocar. A foto está aí para isso. Abra os seus canais e sinta.
Um aprendizado e tanto sobre a vida. Como foi esse processo de amadurecimento, enquanto mulher, ser humano?
A sensação que eu tive é que a gente nasce com um quebra-cabeça de percepção do mundo. Agora, sinto que estou conseguindo montá-lo. A foto que vocês fizeram do caleidoscópio é bastante significativa: todas aquelas ideias retorcidas, multiplicadas, pensamentos ainda não elaborados, ficções, narrativas que vamos criando pela vida, isso tudo foi se ajustando e se interpondo, trazendo uma imagem mais nítida com o envelhecer. E eu nasci em uma família muito grande, sempre convivi com pessoas mais velhas, então esse processo é normal. Minhas tias, que eram meus grandes amores, viveram até os 95, 96 anos, algumas super ativas, outras mais cansadas. Acho bonito poder chegar perto delas. É normal para mim esse caminhar.
Pensa em voltar para a TV?
Adorei fazer televisão, tenho muitos amigos dessa época. Era outra estrutura de equipe, uma indústria mesmo, com pessoas voltadas para aquela urgência que é colocar os episódios no ar toda semana. Por isso, a dinâmica é totalmente diferente. Eu tive vontade de fazer teatro agora, depois da pandemia, porque sinto que fiquei em casa, em São Paulo, muito próxima da família.
É como se eu tivesse saído do trem-bala: parei em alguma estação, desci, olhei em volta e o ele foi embora. “Opa, então vou aproveitar para sentir esse caminhar”, como é o “aqui e agora”, o tempo, a repetição, o faz, depois faz de novo… Comecei a jogar outro jogo. Quer dizer, não um desconhecido, porque eu fiz muito teatro na minha vida. Mas o que eu gosto é conviver com as pessoas voltadas para esse espetáculo, todo dia do mesmo jeitinho, e cada vez melhor tecnicamente. É uma família. E tenho bastante espaço para ir para Tatuí passar uns dias, fazer um curso ou o que eu quiser, já que estamos em cartaz só às sextas, sábados e domingos.
E como você preenche esse tempo livre?
Eu descanso bastante atualmente, mas gosto muito de brincar de casinha, arrumando as coisas, vendo fotos de viagens que fiz, organizando as caixas da Índia, da Coreia, da China. Não é tão organizado assim, mas tenho essas coisas, e quero ficar arrumando elas. Também mexo nas obras de arte que tenho, monto guarda-roupa, desmonto, arrumo objetos… Tenho materiais para pintar em tecido, fico brincando com as minhas coisas de artes plásticas, desenho, faço mandala. Eu brinco. Gosto de alimentar a minha criança interior quando estou em casa.
Tem desejos em relação à cultura do país?
Acredito que esse pode ser um renascimento. As pessoas continuaram criando durante o isolamento social, se adaptando ao que tinha disponível. E não estamos conseguindo produzir porque as verbas foram obstruídas. Com a entrada da Margareth [Menezes, ministra da Cultura], vejo que, independentemente do caos brasileiro, a gente vai se levantar e seguir. A arte é maior que tudo isso.
Assistente de fotografia: Joe Santos; Produção de moda: Isabella Ramos; Camareira: Rosely Berça; Assistente de produção: Andréa Silva; Agradecimentos: Teatro Faap