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“Sou muito mais do que uma bailarina, sou ativista e formadora de opinião”

Ingrid Silva divide a própria vivência como incentivo para artistas negros vencerem os preconceitos que ainda existem dentro do balé

Por Ana Claudia Paixão
Atualizado em 20 out 2022, 13h32 - Publicado em 24 jul 2020, 17h59

Ingrid Silva deu seus primeiros passos na dança ainda menina na zona norte do Rio de Janeiro. Sonhava com a medicina, mas quando entrou para o Projeto Dançando Para Não Dançar, nasceu uma estrela. Aos 19 anos, sem falar inglês, se mudou para os Estados Unidos. Hoje é uma das estrelas na Dance Theatre of Harlem Company, fundada pelo ativista e coreógrafo Arthur Mitchell.

Nos últimos anos, Ingrid também tem se destacado por seu ativismo contra o racismo no universo da dança. Não tem sido fácil, mas ela mantém o foco. As pequenas vitórias são comemoradas, e faz questão de fazer mais. Por isso, mesmo em plena quarentena, lançou com dois amigos uma plataforma – Blacks in Ballet (@blacksinballet) – para criar um ambiente inclusivo para outros bailarinos.

De casa, em Nova York, ela conversou com CLAUDIA sobre sonhos e dificuldades. Ela é, sem dúvida, uma mulher inspiradora

 Em 2018,  quando você conversou com CLAUDIA, você disse que “Não é porque não existam bailarinos negros, é porque as companhias custam a se abrir para a diversidade”. Dois anos depois, o cenário mudou?

É um dilema, porque avançou, mas ao mesmo tempo, não. Posso dar o exemplo das sapatilhas. [Em 2019, pela primeira vez em sua vida, Ingrid não precisou pintar pessoalmente as sapatilhas rosas para ter opção na sua cor de pele] Eu demorei um ano e pouco conversando com a marca que eu uso, para que a customizassem para mim. Eles foram bem resistentes porque disseram que não tinha mercado para isso, mas eu sou consumidora há mais de 12 anos. Uso a mesma sapatilha porque não é como sapato, quando você acha uma [marca] boa é essa mesmo para o resto da vida. Para mim foi muito louco ter passado por essa negociação toda porque na minha cabeça a gente já tinha evoluído. Eles deram esse primeiro passo, customizaram a sapatilha, o que foi incrível, mas só para mim. Ou seja, o resto do mundo não tem acesso! E isso é problema porque tem mercado, tem bailarinos com procura, mas eles acreditam que não tem essa diversidade.

E nas companhias de balé?
Vejo muitas companhias nos Estados Unidos majoritariamente brancas, com um pouco mais de inclusão e programas em termos de diversidade, mas, quando se trata de contratar esses bailarinos, é um e quase nenhum deles. Só para dizerem que tem diversidade.

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O exemplo de Misty Copeland no American Ballet Theatre não ajudou? 
A Misty não foi a primeira a ser a principal no ABT, existiu uma outra antes dela, mas foi antes das redes sociais e mal lembramos seu nome. Ela não dançou muito tempo. Mas depois da Misty, em 2015, não teve mais ninguém. Apenas mais um bailarino negro foi recém-promovido a solista e tem seis bailarinos negros em uma companhia de quase 50 profissionais. Misty Copeland é hoje a única principal, e, mesmo dançando todos os papéis, tem pouco espaço. No New York City Ballet não tem ninguém, apenas uma bailarina no corpo de baile.  Isso em Nova York. No Miami City Ballet, na Flórida, não há nenhuma menina negra em destaque e olha que a companhia é cheia de brasileiros.

O que impede o balé de evoluir?
Eu gosto muito do balé, da arte, mas está morrendo. Muita gente quer entrar, quer conhecer mais sobre a dança, mas perde o interesse muito rapidamente. Ele ainda é regido por pessoas mais velhas que estão presas naquele século passado, nunca saíram dali e a gente não consegue ir para a frente. A nova geração entra, questiona o que está acontecendo, cansa e vai fazer outro estilo de dança.

No seu caso, a dança entrou na sua vida “por acaso”?
O balé foi super genuíno e bem orgânico para mim. Eu queria ser um monte de coisa e minha mãe viu que abriu uma vaga no balé e nos levou, eu e meu irmão, Bruno. Fizemos o teste, passamos e ficamos. Eu sempre falo nossos caminhos foram se entrelaçando e eu me apaixonei pela arte.

E as dificuldades?
No Brasil muitos professores diziam “coloca esse bumbum para dentro” ou “eu não acho que o corpo negro é um corpo para balé”. Se as minhas professoras tivessem se comportado assim comigo talvez eu estivesse no balé contemporâneo, que é o que acontece com a maior parte dos dançarinos. Pelo contrário, eu tive uma professora que me perguntou se eu não via a dança como uma profissão. E eu pensei, “como assim?” e passei a amar os desafios da dança. Mas só pude crescer quando saí do Brasil. O Brasil não estava preparado para mim e para o que eu queria.

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(Angela Zaremba/Divulgação)

A pandemia atingiu mais fortemente a parte artística, que ainda tem o desafio de encontrar alternativas para reunir pessoas em um ambiente onde estarão próximas. Como foi a quarentena para você?
A minha vida nunca parou em termos da dança, montei um mini-estúdio em casa e dei aulas, fiz aulas, mas infelizmente acho que vai afetar muito o nosso lado artístico, criativo e físico. Porque eu danço aqui em casa em um 4X4, que é um tapete. Em um estúdio eu estaria me movimentando muito mais, Você sempre pede para o bailarino para dançar grande, usar o espaço e nesse momento não estou usando espaço nenhum, sabe? É muito frustrante. Estávamos super ativos e fomos para uma coisa mais enclausurada, não tem sido fácil, em termos do meu trabalho em si.

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Quando conversamos com a Isabella Boylston, que tem dado aulas da cozinha dela, brincamos justamente da falta de espaço e de como, tradicionalmente, as aulas de balé terminam com grandes saltos, algo desafiador em um apartamento…
Sim, por isso acho que a gente vai ter um retardo muito grande, mesmo quem esteja malhando e comendo folha o dia inteiro. Em termos de salto, por exemplo, eu faço a aula completa e quando a professora manda pular eu coloco tênis porque o chão de casa não é o mesmo do estúdio e tenho medo de lesões. Não deixo de fazer os meus exercícios, mas o grande salto (risos)? Grande salto não existe, não sei como vai acontecer nos próximos meses e anos. Não tenho uma resposta

E do lado pessoal?
Moro nesse apartamento há 10 anos e é a primeira vez que estou mesmo em casa, com meu marido e com a Frida (a cachorrinha de estimação dos dois). Estou com mais tempo para mim, para escolher os projetos que quero fazer. As escolas de dança em Nova York não vão abrir tão cedo, talvez em outubro. Até lá é muito tempo.

Alguma mudança que tenha surgido por causa da quarentena?
Menina, essa parede era verde! Pintamos de azul recentemente. Falei chega, cansei do verde. (risos)

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Ingrid Silva e a parede azul de seu apartamento que pintou durante a quarentena (Zoom/Reprodução)

E como é acompanhar as notícias do Brasil aí de longe?
Estou bem preocupada. Não temos uma liderança que ajuda. Se não tem um bom exemplo de cima, não é bom. As pessoas não têm sido bem guiadas para se proteger, algumas pensam em conspiração e só vão acreditar mesmo quando perderem um ente querido.

Você perdeu alguém para a Covid-19?
Alguns amigos meus tiveram a doença e estão bem, mas outros faleceram, todos jovens. Um amigo meu e do meu irmão faleceu com apenas 28 anos, estava super saudável, mas infelizmente…

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Voltando para a dança, o papel das redes sociais tem dado um outro olhar e exposição para os artistas. Como tem sido para  você?
Meu Instagram nasceu da necessidade de mostrar o que era o balé quando eu viajava. Antes usava muito o Facebook, mas queria mantê-lo mais para a minha família. O Insta ficou aberto para que acompanhassem o meu trabalho e foi crescendo. As pessoas esperam um capítulo diferente da sua vida, mas a minha é como eu sou, sou uma pessoa simples e respondo pessoalmente um por um. É muito legal ter esse convívio com o público. Por causa das redes, as pessoas começaram a me descobrir, mas já estou na luta há 24 anos, então passei a usar as redes a meu favor.

Como especificamente?
Sou muito mais do que uma bailarina, sou uma ativista, sou formadora de opinião e é importante usar a nossa voz e nossas plataformas da melhor maneira possível. Por isso, criei com dois amigos a plataforma Blacks in Ballet (@blacksinballet) que veio da necessidade que sempre tive de descobrir onde estão os bailarinos negros no mundo. Era como se fosse um mito e não é! Somos muitos, em vários lugares, mas nem todos com a mesma visibilidade. A plataforma cresce a cada dia e estamos ganhando cada vez mais apoio. Quando as pessoas se perguntarem onde estão, é só ver ali que vão estar todos de vários lugares e companhias diferentes. Me sinto grata de ter criado uma plataforma como essa, porque quando eu comecei, não tinha.

Como foi para você, no início de sua carreira, para encontrar um modelo que a inspirasse?
As pessoas me perguntam, mas eu não tinha ninguém que se parecesse comigo. Ana Botafogo me conhece desde os 18 anos de idade, é madrinha do Projeto Dançando Para Não Dançar, onde comecei. Ela foi a minha inspiração, mas em termos de uma pessoa real, nunca existiu uma que eu pudesse seguir. Hoje em dia, através do meu trabalho e dessa plataforma, a gente consegue trazer um leque de variedades e inspirações para as futuras gerações. Temos um grupo de whatsapp com mais de 40 bailarinos negros ao redor do mundo. Criamos a plataforma no dia 20 de março e sonho no futuro dar bolsa de estudos, criar um evento, uma gala, fazer workshops. Um espaço inclusivo e diverso, mas onde também sintam que fazem parte desse mundo.

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(Angela Zaremba/Divulgação)

Como você se descobriu no ativismo?
Começou com a minha identidade visual e venho mudando cada vez mais. Quando pequena, tinha o cabelo encaracolado, mas como a minha mãe mandava na minha vida, nunca tive a oportunidade de ter o meu cabelo natural. Quando cheguei em Nova York, falei com uma amiga, “nem sei cuidar, nem sei por onde ir, como começar e o que fazer” e comecei a ver que nesse momento, há uns seis anos, as redes sociais começaram a dar esse impulso. Várias pessoas passaram pela transição capilar. Depois que passei pela minha, fiz o corte e meu cabelo começou a crescer totalmente diferente, com uma outra pegada. Foi aí que redescobri a minha identidade e negritude. Sinceramente, quando estava no Brasil nem sabia o que era isso. Não por viver em uma bolha, mas porque não tinha muita representatividade à minha volta. Sempre existiu racismo, eu sabia o que era, mas me protegia disso e não tinha achado a minha própria voz. Como explicar para as pessoas que eu não me sinto confortável se essa ou aquela situação acontecer? Depois que tive a mudança visual, deu um click na minha vida que eu vi que era o momento de falar, me posicionar. Comecei falando das coisas de dança, sobre a meia, sobre a sapatilha, sobre as marcas dizerem que tem diversidade e não fazerem nada, entre vários outros assuntos. Mas digo que, se conseguir alguma coisa com a minha carreira – ainda me considero em ascensão, todo dia aprendo algo novo e cresço com o meu trabalho – usarei a minha voz da melhor maneira possível para promover mais diversidade e que não usaria esse momento apenas para mim.

E tem encontrado pessoas abertas às mudanças?
Muitas pessoas querem realmente aprender e entender, evoluir mas também tem quem não queira mudar. Não sou a ativista que vai te fazer mudar de ideia. Vou dar a minha opinião e se você achar que é interessante, leve com você. Eu tento não me cobrar tanto em como fazer essa mudança. A minha existência no mundo do balé clássico já é um ativismo, por isso tento trazer esse diálogo para fora dos palcos. Um dos meus sonhos é ter um mundo totalmente diverso em um único palco, incluindo todos os corpos. Todo mundo consegue dançar a melhor maneira possível. A dança é muito criativa para ser tão limitada. E acaba se tornando cansativa.

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(Angela Zaremba/Divulgação)

 

Todas as mulheres podem (e devem) assumir postura antirracista

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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