Ícone de fechar alerta de notificações
Avatar do usuário logado
Usuário

Usuário

email@usuario.com.br
Black das Blacks: Claudia com preço absurdo

“O corpo negro pode carregar o universal”, diz diretora Alice Diop

Premiada no Festival de Veneza em 2022 com "Saint Omer", a diretora francesa conversa com a CLAUDIA sobre o filme e a linguagem do cinema

Por Paula Jacob
15 jul 2023, 12h21
"Saint Omer", filme de Alice Diop
Roteiro é baseado em uma história real, que aconteceu na França em 2015. (Cabíria Festival/Divulgação)
Continua após publicidade

Mulher, negra, senegalesa, imigrante, mãe. Laurence Coly (Guslagie Malanda) está em julgamento na corte francesa, acusada de matar a sua filha de 15 meses, por deixá-la em uma praia para afogar, sem ajuda de ninguém. Rama (Kayije Kagame), autora best-seller, é enviada para cobrir tais eventos jurídicos na promessa de seus editores de encontrar inspiração para o próximo livro. O que acontece, porém, é uma confusão identitária, costurada a partir de vivências muito similares dessas duas mulheres que guardam experiências próximas. Assim é Saint Omer, primeiro filme de ficção da cineasta documentarista Alice Diop. 

Intrigada com a história real, da qual ela própria participou como ouvinte, em 2015, Alice brinca com os elementos do cinema para descentralizar as “regras” e criar uma outra forma de documentar a ficção, ficcionalizar a realidade. Com um elenco afiado e uma trama instigante, Saint Omer é daqueles filmes que fazem faltar o ar no peito do espectador. Premiado com o Leão de Prata (Prêmio do Júri) e o Leão do Futuro (Melhor Filme de Estreia), no Festival de Veneza (2022), e o César de Melhor Primeiro Filme (2023), o longa-metragem encerra a programação gratuita do Cabíria Festival, no dia 21/07, às 20h30, na Cinemateca Brasileira, em São Paulo – a retirada dos ingressos acontece uma hora antes da sessão.

Batemos um papo exclusivo com a diretora sobre a narrativa e os encontros com o cinema brasileiro. Confira a seguir:

Este é seu primeiro filme de ficção, com um tema que poderia ser transformado em um documentário. Por que você optou por esse formato? Quais foram os desafios e as diferenças que você sentiu ao fazer esse filme?

Foi uma ficção… Nunca fiz diferença entre os dois. Entrei para o cinema documental, e foi através dele que conheci o cinema de ficção. Mas aprendi os dois ao mesmo tempo, da mesma forma. Eu assistia a filmes que me nutriam, que me ensinavam algo sobre mim, sobre o mundo, sobre a sociedade particular na qual eu vivia, a de outros lugares, de outras pessoas. E a linguagem de todos esses filmes me permitiram construir a minha própria linguagem, onde eu queria estar e, ao mesmo tempo, o documentário foi a forma mais apropriada para os filmes que eu devia fazer.

Continua após a publicidade

Em Saint Omer, a ficção se impôs pois o julgamento tinha acontecido, eu tinha tido aquela experiência e precisava vivê-la pois eu mesma estive presente para entender o que me movia, de fato, por que eu queria fazer esse filme e por que ele era necessário. E ele só podia ser uma ficção. Se eu tivesse podido filmar em forma de documentário, ele teria sido menos forte, pois eu ficaria restrita pelo real e pela literalidade da notícia local. Estava claro, para mim, que não era a notícia local que me interessava, não era a história de uma mulher que mata o filho em condições dramáticas, que é uma das entradas do filme. Não era isso, não era o crime. Era o que essa mulher, seu crime, seu gesto diziam sobre a maternidade, sobre ser uma mulher negra num país como a França. Se eu tivesse filmado só a crônica do julgamento, ficaria fora da dimensão transcendental e quase mitológica que a ficção permite trabalhar.

Guslagie Malanga entrega uma performance brilhante. (Cabíria Festival/Divulgação)

Apesar de ser uma ficção, você usa técnicas que misturam gêneros cinematográficos. Essa foi uma intenção desde a pré-produção? Como foram as conversas e trocas com o diretor de fotografia?

A minha profissão de documentarista me ajudou simplesmente pelo fato de que o filme é quase inteiramente documentário no sentido em que os diálogos do tribunal são tirados da ata do processo. Então, a matéria-prima do roteiro do filme é praticamente documental. É um filme muito documentado. E devo dizer que os atores também, a direção de atores, a encenação, tudo isso têm muitas marcas de um documentário.

Continua após a publicidade

Os longos planos-sequência, o fato de ter sido filmado no local onde o julgamento aconteceu, com figurantes que não eram profissionais, eram moradores da cidade convidados a conviver como se fosse verdade. Há realmente um trabalho de porosidade entre o real e a ficção que foi feito em todos os aspectos do filme: no roteiro, na encenação, na direção de elenco e até na escolha dos atores. Eu escolhi pessoas pelo que elas eram. Não propus que atores desempenhassem um papel. É isso. Em tudo isso havia a questão documental. Até a contaminação dos dois gêneros. Isso é algo central em todo o meu trabalho e continuo isso em Saint Omer.

Destaque também para a atriz Kayije Kagame e sua sensibilidade para o papel de Rama. (Cabíria Festival/Divulgação)

No Brasil, temos situações sociais, políticas e econômicas que se assemelham ao sexismo, ao racismo e ao colonialismo que você traz no roteiro do filme. Como você vê essa conexão com o Brasil (ou outros países que também foram colonizados) e o que espera que o filme traga para as discussões aqui?

Tenho a impressão de que a questão racial no Brasil também é uma questão central, e dar acesso à voz dessa mulher negra que foi tornada invisível, reservar tempo para ouví-la, para dar vida a ela, olhar para ela, escutá-la, tentar entrar dentro dela, atravessar seus abismos, acho que é algo muito universal.

Continua após a publicidade

É um filme que imaginei sendo universal, que poderia tocar muitas mulheres e muitos homens, sem ser necessário serem negros para estar em diálogo com essa mulher. O corpo negro pode carregar o universal. E, para mim, isso é algo fundamentalmente político. Mas o que a história dessa mulher negra pode evocar no Brasil são vocês que devem relatar, depois que o filme tiver passado, depois que ele tiver suscitado conversas. Vou ficar feliz em ouvir. Mas eu acho, imagino, que sim, ele deve suscitar algo, devo evocar algo a vocês.

A cineasta francesa Alice Diop no Festival de Veneza 2022
Alice Diop com seus “leões”, após a cerimônia de premiação do Festival de Veneza, em setembro de 2022. (Stephane Cardinale/Getty Images)

Muita coisa mudou no cinema contemporâneo, mas as questões de acesso, financiamento e representação ainda precisam ser melhoradas. O que você acha que poderia acontecer para que isso melhore em todas as esferas? Que ações (políticas ou privadas) ainda precisam ser realizadas?

Acho que é um processo muito lento e que mal começou, mas é preciso abrir o cinema ao relato do que é invisibilizado. O cinema só é interessante quando abre a porta para as margens. É isso que renova os relatos, que renova as abordagens, que renova a sua função, isto é, a de uma ferramenta que questiona a sociedade. Se o cinema não se abre a essa voz, ele morre da sua própria repetição, do seu próprio gaguejo, da sua própria cegueira.

O que me interessa no cinema são os filmes que aguardo, que ainda não assisti, são os corpos de pessoas e coisas que nos permitem reformular algo. É isso. Há tantos relatos. Eu falava da história colonial, mas a história colonial sempre foi contada do ponto de vista branco, e revisitar, reformular a história colonial a partir dos antigos colonizados é algo que amplia a perspectiva e a visão do mundo. E o cinema tem um papel nisso.

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

SUPER BLACK FRIDAY

Digital Completo

Moda, beleza, autoconhecimento, mais de 11 mil receitas testadas e aprovadas, previsões diárias, semanais e mensais de astrologia!
De: R$ 16,90/mês Apenas R$ 1,99/mês
SUPER BLACK FRIDAY

Revista em Casa + Digital Completo

Receba Claudia impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*
De: R$ 26,90/mês
A partir de R$ 9,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$23,88, equivalente a R$1,99/mês.