“O corpo negro pode carregar o universal”, diz diretora Alice Diop
Premiada no Festival de Veneza em 2022 com "Saint Omer", a diretora francesa conversa com a CLAUDIA sobre o filme e a linguagem do cinema
Mulher, negra, senegalesa, imigrante, mãe. Laurence Coly (Guslagie Malanda) está em julgamento na corte francesa, acusada de matar a sua filha de 15 meses, por deixá-la em uma praia para afogar, sem ajuda de ninguém. Rama (Kayije Kagame), autora best-seller, é enviada para cobrir tais eventos jurídicos na promessa de seus editores de encontrar inspiração para o próximo livro. O que acontece, porém, é uma confusão identitária, costurada a partir de vivências muito similares dessas duas mulheres que guardam experiências próximas. Assim é Saint Omer, primeiro filme de ficção da cineasta documentarista Alice Diop.
Intrigada com a história real, da qual ela própria participou como ouvinte, em 2015, Alice brinca com os elementos do cinema para descentralizar as “regras” e criar uma outra forma de documentar a ficção, ficcionalizar a realidade. Com um elenco afiado e uma trama instigante, Saint Omer é daqueles filmes que fazem faltar o ar no peito do espectador. Premiado com o Leão de Prata (Prêmio do Júri) e o Leão do Futuro (Melhor Filme de Estreia), no Festival de Veneza (2022), e o César de Melhor Primeiro Filme (2023), o longa-metragem encerra a programação gratuita do Cabíria Festival, no dia 21/07, às 20h30, na Cinemateca Brasileira, em São Paulo – a retirada dos ingressos acontece uma hora antes da sessão.
Batemos um papo exclusivo com a diretora sobre a narrativa e os encontros com o cinema brasileiro. Confira a seguir:
Este é seu primeiro filme de ficção, com um tema que poderia ser transformado em um documentário. Por que você optou por esse formato? Quais foram os desafios e as diferenças que você sentiu ao fazer esse filme?
Foi uma ficção… Nunca fiz diferença entre os dois. Entrei para o cinema documental, e foi através dele que conheci o cinema de ficção. Mas aprendi os dois ao mesmo tempo, da mesma forma. Eu assistia a filmes que me nutriam, que me ensinavam algo sobre mim, sobre o mundo, sobre a sociedade particular na qual eu vivia, a de outros lugares, de outras pessoas. E a linguagem de todos esses filmes me permitiram construir a minha própria linguagem, onde eu queria estar e, ao mesmo tempo, o documentário foi a forma mais apropriada para os filmes que eu devia fazer.
Em Saint Omer, a ficção se impôs pois o julgamento tinha acontecido, eu tinha tido aquela experiência e precisava vivê-la pois eu mesma estive presente para entender o que me movia, de fato, por que eu queria fazer esse filme e por que ele era necessário. E ele só podia ser uma ficção. Se eu tivesse podido filmar em forma de documentário, ele teria sido menos forte, pois eu ficaria restrita pelo real e pela literalidade da notícia local. Estava claro, para mim, que não era a notícia local que me interessava, não era a história de uma mulher que mata o filho em condições dramáticas, que é uma das entradas do filme. Não era isso, não era o crime. Era o que essa mulher, seu crime, seu gesto diziam sobre a maternidade, sobre ser uma mulher negra num país como a França. Se eu tivesse filmado só a crônica do julgamento, ficaria fora da dimensão transcendental e quase mitológica que a ficção permite trabalhar.
Apesar de ser uma ficção, você usa técnicas que misturam gêneros cinematográficos. Essa foi uma intenção desde a pré-produção? Como foram as conversas e trocas com o diretor de fotografia?
A minha profissão de documentarista me ajudou simplesmente pelo fato de que o filme é quase inteiramente documentário no sentido em que os diálogos do tribunal são tirados da ata do processo. Então, a matéria-prima do roteiro do filme é praticamente documental. É um filme muito documentado. E devo dizer que os atores também, a direção de atores, a encenação, tudo isso têm muitas marcas de um documentário.
Os longos planos-sequência, o fato de ter sido filmado no local onde o julgamento aconteceu, com figurantes que não eram profissionais, eram moradores da cidade convidados a conviver como se fosse verdade. Há realmente um trabalho de porosidade entre o real e a ficção que foi feito em todos os aspectos do filme: no roteiro, na encenação, na direção de elenco e até na escolha dos atores. Eu escolhi pessoas pelo que elas eram. Não propus que atores desempenhassem um papel. É isso. Em tudo isso havia a questão documental. Até a contaminação dos dois gêneros. Isso é algo central em todo o meu trabalho e continuo isso em Saint Omer.
No Brasil, temos situações sociais, políticas e econômicas que se assemelham ao sexismo, ao racismo e ao colonialismo que você traz no roteiro do filme. Como você vê essa conexão com o Brasil (ou outros países que também foram colonizados) e o que espera que o filme traga para as discussões aqui?
Tenho a impressão de que a questão racial no Brasil também é uma questão central, e dar acesso à voz dessa mulher negra que foi tornada invisível, reservar tempo para ouví-la, para dar vida a ela, olhar para ela, escutá-la, tentar entrar dentro dela, atravessar seus abismos, acho que é algo muito universal.
É um filme que imaginei sendo universal, que poderia tocar muitas mulheres e muitos homens, sem ser necessário serem negros para estar em diálogo com essa mulher. O corpo negro pode carregar o universal. E, para mim, isso é algo fundamentalmente político. Mas o que a história dessa mulher negra pode evocar no Brasil são vocês que devem relatar, depois que o filme tiver passado, depois que ele tiver suscitado conversas. Vou ficar feliz em ouvir. Mas eu acho, imagino, que sim, ele deve suscitar algo, devo evocar algo a vocês.
Muita coisa mudou no cinema contemporâneo, mas as questões de acesso, financiamento e representação ainda precisam ser melhoradas. O que você acha que poderia acontecer para que isso melhore em todas as esferas? Que ações (políticas ou privadas) ainda precisam ser realizadas?
Acho que é um processo muito lento e que mal começou, mas é preciso abrir o cinema ao relato do que é invisibilizado. O cinema só é interessante quando abre a porta para as margens. É isso que renova os relatos, que renova as abordagens, que renova a sua função, isto é, a de uma ferramenta que questiona a sociedade. Se o cinema não se abre a essa voz, ele morre da sua própria repetição, do seu próprio gaguejo, da sua própria cegueira.
O que me interessa no cinema são os filmes que aguardo, que ainda não assisti, são os corpos de pessoas e coisas que nos permitem reformular algo. É isso. Há tantos relatos. Eu falava da história colonial, mas a história colonial sempre foi contada do ponto de vista branco, e revisitar, reformular a história colonial a partir dos antigos colonizados é algo que amplia a perspectiva e a visão do mundo. E o cinema tem um papel nisso.