Pronta para o que der e vier, os 80 anos de Anastácia, a rainha do forró
A Rainha do Forró faz 80 anos hoje (30) e continua ativa, com novo álbum e muitos planos
Ela nasceu Lucinete Ferreira, no Recife, há 80 anos. Nós a conhecemos como Anastácia. Mais ainda, ela é Anastácia, a Rainha do Forró. Cantando profissionalmente há pelo menos 65 anos, Anastácia já compôs mais de mil canções gravadas por artistas como Gal Costa, Gilberto Gil, Nana Caymmi e Luiz Gonzaga, entre outros. Tem uma indicação ao Grammy. Com seu principal parceiro musical, Dominguinhos, escreveu mais de 250 músicas, algumas delas uns dos maiores sucessos da música popular brasileira, como “Eu Só Quero Um Xodó”, “Eu Tenho Sede”, entre outros. Aliás, a letra de “Eu Só Quero Um Xodó” nasceu na boca do fogão, quando Anastácia preparava o almoço. “Eu larguei o peixe lá, fechei o fogão, fiz as duas estrofes’, ela conta.
O marco de 80 anos iria passar em branco se não fosse a neta cobrar da avó algo especial. Surgiu então um o projeto de um novo álbum, mas a quarentena adiou os planos do lançamento. Pelo menos 5 faixas já estão disponíveis. “Anastácia 80 – Lado A”, reúne apenas músicas inéditas, interpretadas em dueto com estrelas como Roberta Miranda, Amelinha, Chico César, Mestrinho, Jorge de Altinho e Mariana Aydar. Entre os destaques do álbum, estão a canção “O sertão está chorando”, interpretado por Amelinha e uma canção inédita de Dominguinhos e Anastácia: “Venceu a solidão”, interpretada por Mariana Aydar e Mestrinho. Mais à frente, novas canções vão contar com as vozes de Alceu Valença, Lenine, Flávio José, entre outros. Um dos presentes para Anastácia é que parte do seu acervo agora está disponível nas plataformas digitais, desde o sucesso “Vamos Xamegá”, de 1972.
De casa, em São Paulo, onde está isolada, Anastácia conversou com CLAUDIA por telefone e fez um balanço de uma vida de 8 décadas, muitos sucessos e vários causos. Ouvi-la, é uma delícia, as risadas são contagiantes e a música não pára.
CLAUDIA: Como é comemorar a nova idade em pleno isolamento?
Anastácia: Cortando o bolo de 80, graças a Deus. Só é complicado porque a gente de 80 vai de ordem decrescente, a gente vai perguntando será que no próximo ano vou estar aqui?, mas eu estou preparada para o que der e vier.
CLAUDIA: A quarentena está difícil?
Anastácia: Como todo mundo, estou louca para sair. A gente vai se acostumando. É como um remédio ruim que tem que tomar porque vai te fazer bem. Estamos aqui, rezando muito e pedindo à Deus que dê logo um parecer nessa história. A gente não pode ir contra a lei do universo.
CLAUDIA: Chegar ao marco de 80 anos, como é olhar para trás e relembrar tudo que passou até aqui?
Anastácia: Sou geminiana, eu lembro de tudo. Dos seis anos de idade para cá, eu lembro de tudo. Cinco na verdade, quando perdi meu pai, lembro do enterro. Lembro de tudo que aconteceu. Eu tive sorte, Deus me deu o dom de cantar. Eu acredito que a gente não faz o destino da gente, veio pronto. Eu nunca tive desespero por nada, se alguma coisa não desse certo eu já estava pronta para partir para outra coisa. Foi uma luta, mas foi uma luta prazeirosa. Aproveitei todas as oportunidades. Estou chegando aos 80 feliz da vida. Lúcida, com voz, trabalho, faço meus shows, tenho saúde. Tudo que eu passei na vida valeu a pena. Estou pronta para o restinho que vem ainda. (risos)
CLAUDIA: Como a música entrou na sua vida?
Anastácia: Nasci com vontade de cantar. Quando eu tinha 6 anos eu aprendia todas as músicas que ouvia no rádio. Sou de 1940, então era Emilinha Borba, Marlene, Luiz Galhardo, Luiz Gonzaga.. eu aprendia todas aquelas músicas. Como se não bastasse, tinha um lugar onde as mulheres se juntavam para lavar roupa e eu chegava lá, na maior, abria a boca e começava a cantar. Parecia uma louca, não preocupava se alguém não gostasse (risos) eu cantava: Que será, da minha vida sem o teu amor (cantando). Fui cantando tanto que ali virou meu palco, ganhei um fã-clube. Quando eu não ia, as mulheres vinham e batiam na porta de casa e perguntavam, “Dona Marina, cadê a menina para vir cantar para a gente lá, que hoje está tão triste”? (risos)
CLAUDIA: E quando cantar ficou sério para você, uma profissão?
Anastácia: Havia um concurso de calouros na fábrica em que a minha mãe trabalhava e alguém me falou que tinha uma menina que ganhava toda semana e me perguntou ‘porque tu não vai lá?’. Eu fui correndo lá, ganhei da menina, ninguém ganhou mais de mim e eu fui contratada pela orquestra.
CLAUDIA: Com quantos anos?
Anastácia: 13 anos. Com 13 anos comecei a ganhar um dinheirinho porque antes eu cantava por prazer, não era um trabalho. Ganhava cachê para cantar nas matinês e apresentações. Aí um sanfoneiro, Zé Afonso, me chamou para cantar com ele nos SESCs. Só forró. Aí em uma das apresentações me chamaram para um teste na rádio, passei e fui contratada, em 1954. Até 1960 eu fiquei, eram programas de rádio porque não tinha televisão na época. Quando a televisão chegou, mudou toda programação e no que mudou fiquei desempregada. Só trabalhava como atriz porque também fazia nas novelas da rádio. Mas achei que era pouco e queria cantar. Foi quando decidi vir para São Paulo.
CLAUDIA: E como foi chegar em São Paulo, acompanhada por sua mãe e irmãos?
Anastácia: No dia que cheguei, deixei minha família no hotel e ia encontrar minha irmã que já morava aqui, para levar todos para casa dela. Quando estava esperando o bonde passar, ouvi alguém chamar meu nome. E fiquei surpresa, ‘quem me conhece aqui, meu Deus?’ e era um cantor da rádio que tinha vindo para São Paulo e eu nem sabia. Ele me deu o telefone de uma agência de artistas, mas eu precisava de dinheiro e fui trabalhar na VASP enquanto fazia testes e aguardava. Aí, fui fazendo shows e eu arrasava porque não tinha muita gente cantando forró. Fiz um teste, passei e fui contratada para fazer um disco de forró, isso em 1961, e estourei no nordeste e passei a ser conhecida. Ganhei aí o título de Rainha do Forró. Foi de boca em boca e acabou que eu ganhei uma coroa de lata (risos). Não vou dizer que foi fácil, mas aproveitei todas as oportunidades que me deram.
CLAUDIA: Como você começou a compor?
Anastácia: Eu tinha 14 para 15 anos e arrumei um namorado. Era um cabra bonitinho, moreninho. Aí, estava toda empolgada e marquei um encontro com ele na porta do cinema às 3 horas da tarde. Quando cheguei lá, olhei de longe e o avistei, ele estava conversando com uma moça lá do meu bairro, muita danada. Ele estava lá, pegava na bochecha dela, no cabelo dela e eu olhei e pensei: ‘ah, ele marca comigo e já está fazendo lero-lero com outra?’ então eu passei direto. No que eu passei direto, ele mandou a moça embora e veio atrás de mim. Ele falou que ela era só uma amiga, mas eu disse que tinha um compromisso de trabalho e saí. Aí descobri duas coisas: que eu era ciumenta e que ele não servia para mim. (risos) Tinha outro rapaz que me procurava, que queria me namorar sério e quando eu saí dessa desilusão eu decidi que ia namorá-lo porque parecia que ele tinha consideração comigo, afinal há seis meses me mandava recado e eu ignorava. E comecei a fazer uma música, pensei na letra e na melodia junto, mas nunca tinha feito antes. Quando cheguei na rádio, tinha uma cantora maravilhosa de música romântica e muito minha amiga, contei para ela a história e que até tinha feito uma música. Cantei para ela. O maestro Gomes Pereira, que era renomado no Recife, estava passando e ouviu. Me levou para o piano e pediu: ‘cante de novo, Lucinete’. Cantei e ela ficou encantada e decidiu que ia usar a canção. O maestro fez um arranjo de cordas e ela cantou. Eu ficava para as minhas colegas: ‘fui eu que fiz’. Achava engraçado.
CLAUDIA: E depois?
Anastácia: Apenas quando estava gravando meu primeiro LP, perguntei ao produtor: ‘posso cantar uma música minha?’. Deixaram e gravei. Em seguida, o Noite Ilustrada era contratado da mesma firma que eu e uma noite chegou com um violão e mostrei para ele um samba que eu tinha composto. Ele gostou e gravou. Aí fiquei pensando que se ele gostou é que estou fazendo algo que preste. Tomei gosto e comecei a fazer. Fiz um bolero para Waldick Soriano, samba para o Jair Rodrigues… moral da história: depois que tomei gosto, e fiz amizades, eu oferecia as minhas músicas.
CLAUDIA: E qualquer gênero?
Anastácia: Sempre fiz de tudo. Como fui crooner eu tinha uma ligação muito forte com a música romântica. Angela Maria gravou música minha, Claudia Barroso, Walkdick, José Augusto..
CLAUDIA: Você tem uma preferida?
Anastácia: Rapaz, tem uma que o Waldick gravou que se chama ‘Terminou’, que era muito boa. Angela Maria gravou “Amor que não presta e não serve para mim”, que escrevi em um desabafo. Eram músicas que eu achava que falavam com o coração. As pessoas gostavam e gravavam até que chegou a fase que comecei a compor com o Dominguinhos.
CLAUDIA: Como foi?
Anastácia: Ele nunca tinha escrito música nenhuma, ele fazia melodia, mas de letra eu fui a primeira parceira. Até porque tivemos um relacionamento de 12 anos. A gente dormia junto, acordava junto, passava o dia junto e fazia música o tempo todo. A gente fez um trabalho muito bom?
CLAUDIA: Como nasceu “Eu só quero um Xodó?”
Anastácia: É uma música que me deixou muito feliz, que me deu muita alegria e foi o seguinte. Quando passava São João era como Escola de Samba, passou o carnaval pensam no ano seguinte. Passava São João e o produtor já pedia uma canção para o próximo ano. Encomendavam um monte. Em uma dessas ligações, Dominguinhos estava sentado (a gente morava em um apartamento pequeno na Marquês de Itu, perto do centro de São Paulo), e eu estava fritando um peixe para o almoço e ele tocando. Aí de repente, ele tocando e veio a letra de xodó na minha cabeça. Eu larguei o peixe lá, fechei o fogão, fiz as duas estrofes – que são pequenininhas – e falei ‘Dominguinhos, volte e toque de novo essa aqui [cantarola a melodia de Eu Só Quero Um Xodó]’ e ele lembrou. Eu cantei e encaixou a letra com a melodia. Mandamos para o produtor e avisei a ele para olhar com carinho para a marchinha. Maria Inês gravou, em 1971. Em 1972, Dominguinhos estava tocando com Gilberto Gil e Gal Costa, estava com frio e para esquentar os dedos tocou em xote. Aí o Gil pegou o violão e ele observou que todo mundo ficou ligado. Gil perguntou de quem era a música, e Dominguinhos explicou ‘é minha e de Anastácia, Maria Inês gravou’. E Gil decidiu, ‘rapaz, vou gravar essa música!’ e foi uma benção. Foi uma música que era para o nordeste, era arrasta-pé que virou xote e o Gil gravou como reggae. Até hoje ela me ajuda a pagar os carnezinhos atrasados (risos)
CLAUDIA: E não tem mesmo nenhuma preferida?
Anastácia: Não, é muito difícil. Mas tem uma que a Nana Caymmi gravou, Contrato de Separação que é muito especial porque era um momento em que eu precisava muito de colo. Tenho Sede também, que fiz com Dominguinhos, que fala de natureza e que são palavras que na minha cabeça falam do universo, nada de coisa material
CLAUDIA: Como foi álbum atual?
Anastácia: Não ia fazer. Carol, minha neta me cobrou se eu ia passar batido. Todo ano faço festa, então decidi fazer uma efsta e chamar meus amigos, mas ela me falou ‘esse ano vamos fazer outra coisa, vamos fazer um CD 80’. Eu fiquei meio assim ‘você que sabe’. Liguei para o Zeca Baleiro que topou produzir e já que era uma festa, convidamos pessoas para participar. Quando estava na fase que estava ficando bom veio a pandemia e tivemos que parar quando tínhamos apenas 5 músicas. Baleiro sugeriu lançar como EP e depois quando passar essa loucura, a gente lança completo
CLAUDIA: Você disse que queria gravar com Amelinha há anos, como foi a parceria?
Anastácia: Foi uma história engraçada. Um amigo meu jornalista se separou e estava falando da ex-mulher e disse, ‘o sertão está chorando de saudade dela’. O consolei, mas achei a frase tão bonita e anotei na segunda pessoa, ‘o sertão está chorando de saudade de você”, como se fosse ele falando para ela. Liguei para o Zeca [Baleiro] e mandei a letra. Ele fez a melodia e achei linda. Falei, ‘ouço a Amelinha cantando isso comigo’. A convidamos e ela aceitou. A música ficou O sertão está
x–chorando.
CLAUDIA: E festa no sábado? Vai ser via zoom?
Anastácia: Nada, tem muita gente aqui. [risos] Somos 11 pessoas porque são dois pavimentos e moro com minha filha, meu neto e meu sobrinho. Estamos todos presos, mas não vamos deixar de festejar! [risos]