Maioria em festival internacional, mulheres levam diversidade à animação
Para CLAUDIA, participantes da 11ª edição do festival Animage falam de seus encontros com a animação e desafios profissionais
Antes de você se acomodar para assistir uma produção audiovisual, aquele projeto percorreu diversas mentes e mãos. No caso da animação, processo que dá movimento a uma longa sequência de imagens, o percurso ganha uma cadência ainda mais minuciosa e particular.
Tudo é pensado para que a ideia inicial do filme seja entregue para o público com fidelidade e respeito por ambos. É de olho nesse tipo de cuidado que o Animage – Festival Internacional de Animação de Pernambuco faz sua curadoria da exibição e premiação de filmes.
Até o dia 17 de outubro, as portas físicas e virtuais do evento, que acontece no tradicional Teatro do Parque, em Pernambuco, e no site, estarão abertas para o público. Curtas, longas, oficinas, entrevistas e masterclasses estão na programação totalmente gratuita.
“A cada ano percebemos a importância que o festival tem para o público, para os animadores e para toda a cadeia produtiva da animação. A importância de realizar o evento num momento como esse ganha outro significado, principalmente pela possibilidade de retomar as atividades de forma presencial no Teatro do Parque ”, aponta Antonio Gutierrez, idealizador do festival.
Além das exibições, a 11ª edição do Animage recebe uma mostra competitiva com filmes de 96 diretores, sendo que neste ano a maioria é feminina. Para CLAUDIA, Kalor Pacheco, Julia Vellutini, Chia Beloto e Camila Kater falam do encontro que tiveram com a animação dentro do audiovisual e das produções que apresentam no evento.
Kalor Pacheco
A escrita criativa foi a ponte para a pernambucana Kalor Pacheco chegar até a animação. A artista visual, jornalista, diretora e roteirista é a curadora da “Mostra Africana” e responsável por fazer com que um público cada vez maior se veja no festival.
“Por conta do Prouni, tive acesso ao ensino superior, fato que sempre foi negado à periferia. Como sou ligeira, passei a exercer essas tantas atividades diferentes para sobreviver às adversidades, o que é comum a uma profissional preta que mora longe do eixo Rio-São Paulo.
“A diáspora me afastou dos meus ancestrais sequestrados e escravizados. Mas, como curadora, tenho o privilégio de me reconectar a essa produção de múltiplas regiões do continente africano e levar isso aos meus”, aponta Kalor.
Para a diretora, o atravessamento social foi um desafio superado nesse projeto. “Fazer uma curadoria internacional tendo uma educação de idiomas estrangeiros em uma escola pública precária não é fácil. Mas não poderia achar que não era algo pra mim. Encontrei formas pessoais para driblar a barreira idiomática, assim como desenvolvo meu trabalho como roteirista”, diz Kalor.
Em sua visão, o festival também joga luz nos cantos que costumam ficar distantes dos holofotes. “Dentro do próprio estado há diversas realidades distintas, por isso é importante ter o festival aqui em Pernambuco, mas contemplando também Caragibe, minha cidade, por exemplo. Por meio das pessoas, podemos trazer eixos diferentes não só para o festival, mas para a animação como um todo”, celebra.
Julia Vellutini
Os primeiros passos na animação começaram ainda na infância, entre as tantas mudanças que a família da Julia Vellutini encarava. “O contato com o fantástico e o mitológico era a única coisa que não se alterava. Sentia que tinha ali um ponto de segurança”, revela a diretora, que estudou cinema e acabou chegando na animação após uma oficina de bonecos.
A falta de oportunidade na área deixou seu caminho profissional aberto para as mais diversas possibilidades. “Me encantei pelo manuseio de bonecos até que cheguei na animação 2D e nunca mais parei”, explica a paulistana.
A diretora, animadora e roteirista faz parte do festival com o seu curta Mitos Indígenas em Travessia, projeto que nasceu do desejo do fazer coletivo, como explica Julia. “Cada etnia tem a sua própria cultura. Quando você se aproxima daquelas vivências, nasce uma relação de intimidade. Juntamos o nosso conhecimento técnico da animação com a sabedoria dessas comunidades.”
A equipe fez uma imersão na vida dos povos das etnias Kuikuro (Aldeia Afukuri, Terra Índígena Parque do Xingu, Mato Grosso); Javaé (Aldeia São João, Terra Indígena Parque do Araguaia, Ilha do Bananal, Tocantins) e Kadiwéu (Aldeia São João, Terra Indígena Kadiwéu, Mato Grosso do Sul).
A responsabilidade de encaixar as narrativas absorvidas foi aprovada pelos espectadores da aldeia na apresentação do curta.
“Esse momento me deixou apreensiva, mas foi muito legal ver desde as crianças aos anciãos reconhecendo as histórias da própria cultura em um telão enorme na comunidade”, lembra da experiência, que foi interrompida com a pandemia, mas que deve retornar assim que possível.
Assista ao trailer de Mitos Indígenas em Travessia:
Chia Beloto
Estuando cinema em Barcelona, Chia Beloto foi apresentado ao Flash, programa ideal para os desenhos. Esse foi o primeiro contato da profissional, que atua como diretora, diretora de arte, ilustradora e oficineira, com a animação.
Em 2009, em Olinda, conheceu um curso voltado para a área. “Nessa oportunidade, encontrei minha grande parceira de trabalho, a Marila. Começamos a produzir dentro e fora da universidade. A partir disso, nasceu o selo de animação Produções Ordinária”, lembra Chia, que passou a animar projetos de música e audiovisual na cidade.
“Encontramos profissionais qualificado a cada esquina aqui. Olinda é um grande polo de cinema de animação”, aponta ela, que participa do festival por meio do curta Um Peixe pra Dois, além de assinar todos os filmes da mostra voltada para o público infantil.
Segundo a diretora, o projeto foi feito em tempo o curta. “Ele estava na nossa cabeça há muitos anos, mas tínhamos cinco semanas para fazer. Começamos a produção em dois meses e animamos em um mês e meio”, conta Chia, que recebeu um convite irrecusável do roteirista Rafael Spínola para transformar a técnica de Um Peixe pra Dois em um curta voltado para o público infantil.
O jogo de cintura para adaptar o projeto ganhou uma bossa extra graças a outro trabalho destinado às crianças, a série Foi Assim, Foi Assado. “Já sabíamos o que poderia ou não entrar. Além disso, sou mãe então é natural identificar as necessidades de um curta infantil”, explica.
Para ela, a cota do fundo cultural, criado pela Lei Rouanet, é um suporte fundamental para animadores, principalmente mulheres. “Antes de vir pra Pernambuco, eu não tinha essa consciência da luta de gênero. Aprendi muito com as mulheres daqui, que são muito fortes. Inclusive, Nara Aragão, que é presidente da Associação Brasileira de Animação, é de Olinda e ocupa um papel histórico no cenário da animação contemporânea”, ressalta a diretora.
Camila Kater
Existir enquanto mulher não é uma tarefa fácil. As fases da vida são acompanhadas de julgamentos limitantes, assim como as interseccionalidades que nos moldam. Camila Kater chegou a essa constatação em uma conversa com a irmã mais nova, a Bruna, sobre feminismo.
“Ela me alertou sobre isso. Infelizmente, nossas vivências podem ser comparadas com o preparo de uma carne, algo que arranca nossa humanidade”, diz a diretora do curta Carne, eleito o segundo melhor curta-metragem de 2019 pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (ABRACCINE).
Para criar o roteiro, a equipe sentou para ouvir histórias de mulheres atravessadas por questões, como menstruação, obesidade, negritude e menopausa.
“No primeiro momento, seria uma animação 2D em preto e branco, mas depois das entrevistas mudamos para stop motion. A ideia surgiu quando uma entrevistada contou sobre sua experiência como uma criança gorda. Tudo girava em torno do prato, por isso a animação dela tem esse elemento como base”, explica Camila.
Independentes, os outros cinco episódios são animados por mais mulheres: Giovana Affonso, Flavia Godoy, Cassandra Reis e Leila Monsegur. “Nós tivemos liberdade para escolher o estilo de animação de acordo com cada história”, valoriza a diretora.
Minha formação passa por projetos como o Ciência Sem Fronteiras e outros de incentivo público no geral. Esse fomento é essencial
Camila Kater
Mas nem sempre foi assim. Camila já sofreu assédio moral em experiências profissionais anteriores, sempre com equipes majoritariamente masculina. “Em Carne, construímos um acolhimento feminino especial e inédito nas nossas carreiras”, salienta a profissional.
Dando início à sua primeira especialização acadêmica de animação, na Bélgica, hoje ela sonha em construir um futuro com mais oportunidades. “Ainda é um universo muito heteronormativo. Vemos mudanças temáticas, mas que não se refletem nas equipes”, alerta Camila, que dá seus primeiros passos na animação com solidez.
“No carne, foi legal porque éramos estreantes, mas isso não significa que somos menos capazes. A gente só precisa da oportunidade para criar e mostrar”, garante.
Assista ao trailer de Carne: