Em um livro de cartas, autoras discorrem a formação da mulher
As escritoras Claudia Tajes e Diana Corso narram sua com dilemas que todas já viveram
O fim da infância com o início do amadurecimento é um tema universal na literatura. A ideia de construção do caráter, com suas dimensões afetivas e psicológicas, é uma experiência que gera identificação. Afinal, algumas etapas do crescimento são facilmente compartilháveis: um primeiro amor, a descoberta da sexualidade, amizades e decepções.
No mundo das letras, porém, tais experiências eram narradas sobretudo sob um domínio masculino. A chamada literatura de formação — o Bildungs-roman, do termo original em alemão — narrou por muito tempo sobre meninos que se tornam homens. Parte significativa deles forma o cânone literário com clássicos como O Apanhador no Campo de Centeio, de J. D Salinger, e Demian, de Hermann Hesse.
Mais recentemente, histórias de meninas tornando-se mulheres vêm tomando para si o justo espaço entre obras consideradas clássicas e também entre os lançamentos contemporâneos.
Da Sempre Tua (Arquipélago, 2024), das autoras Claudia Tajes e Diana Corso, cumpre uma dupla missão. Ao mesmo tempo em que atravessa o conceito de livro de formação feminino, também dá novos ares a um gênero sufocado pelas novas tecnologias: o epistolar — a boa e velha troca de cartas.
Em um tempo sem internet, lembra Corso no posfácio do livro, às mulheres burguesas era permitido manter correspondência com suas amigas — com direito a uma escrivaninha própria com compartimento chaveado para preservar a intimidade.
Tajes, autora de Louca por Homem, adaptado para a série da HBO Mulher de Fases, e Corso, escritora e psicanalista, co-autora de Fadas no Divã: Psicanálise nas Histórias Infantis, formam uma dupla destemida nessa obra.
Elas dispensam a gaveta e o cadeado e abrem sua correspondência para que seja lida por todos. Assinando como “C.” e “D.”, as amigas garantem que quase tudo que escreveram é verdade. Uma das exceções evidente é uma terceira personagem inventada, Corina. É assim que chamam a culpa, velha conhecida, tão presente ao longo da vida das mulheres. Culpa na maternidade, nos relacionamentos e também nas amizades.
Os primeiros beijos trocados rendem algumas das passagens mais divertidas, com gosto de encontro de amigas. “D., você foi dessas de se sentir obrigada a beijar um fulano só porque ele achava que lhe era devido, já que tinha gastado saliva contigo por alguns minutos em uma festa chata?”, pergunta C., antes de contar sobre o rapaz que perguntou “que que te custa [o beijo]?”. “Custava minha dignidade, mas eu era jovem demais para pensar nessa resposta, de jeito que o beijei rapidinho para me livrar e parti para outra língua. Que fase”, escreve C.
A interlocutora, por sua vez, responde. “Cedi pela educação besta que nos constitui, em que os desejos de um homem são considerados imperiosos, e os nossos, irrelevantes”, escreve D. Poucas experiências são mais femininas do que essa, infelizmente.
Da Sempre Tua também preenche outra lacuna nas estantes: narradoras com mais de 60 anos que não se limitam ao dígito da idade, mas que têm muito a dizer. São mais sábias do que muitas de nós. Ser sábio também era um adjetivo comumente aplicado aos homens. Cabe, portanto, lembrar das sábias também. Tajes e Corso são sábias que não estão prontas e definitivas, mas em constante formação. Ainda bem, como demonstram nas perguntas e respostas na entrevista mútua abaixo, proposta por CLAUDIA e aceita pela dupla.
Claudia para Diana
Por que escrever e não falar?
Porque nós jamais teríamos conseguido ser tão sinceras se fosse ao vivo. Sinto que se estivéssemos em um bar regado a champanhe, nunca teríamos chegado aos episódios provocativos, crispados, que vivemos epistolarmente. E eles deram muito pano pra manga e retalhos diversos.
Por escrito, fomos desenvolvendo a ousadia de relançar as confissões sempre um passo adiante. Cada carta te desafiava e respondias com uma nova provocação. Isso só foi possível porque não tínhamos acesso à reação imediata uma da outra. Falando, frente à menor levantada de sobrancelha, nos calaríamos, com medo da inadequação.
Nós, mulheres, tentamos ser delicadas umas com as outras. Ao contrário do que dizem as más línguas, nossas línguas são boas. Já basta que o mundo lá fora é pouco amigável. Presencialmente, falaríamos muitas coisas sensíveis, mas nossos segredos ficariam guardados.
A carta sempre foi uma forma de comunicação pra ti?
Como sou estrangeira (uruguaia), filha e neta de estrangeiros (húngaros), vivi rodeada de cartas. Mas era coisa de família. Quando minha melhor amiga se foi do Brasil, sofremos muito e trocamos e-mails por anos. Engraçado, eu tinha a fantasia de que um dia publicaríamos essa correspondência, tão interessante e profunda era. Claro que aconteceu o usual da intimidade fraterna: as cartas sumiram. No fim acabei fazendo isso contigo, sendo que nem éramos tão próximas quando começou.
Pode-se considerar o nosso um “livro de formação”, considerando que ele atravessa as nossas vidas e quem a gente se tornou?
Principalmente num sentido: nossas cartas mudaram meu estilo de escrita. Há décadas venho duelando com meu espírito de ensaísta, que eu praticava nas crônicas de revista e jornal. Isso me rendeu coisas que gosto de ter escrito, mas também adoro desafios.
Nossa correspondência bagunçou meu estilo, minha voz. Aprendi contigo novas formas de dizer em público o que jamais ousaria em outro formato de texto.
Acho que a carta é um xeque-mate na timidez. A correspondência tem esse tempo do ir e vir. No intervalo, eu ficava afogada nas fantasias sobre o que estarias pensando sobre as besteiras que escrevi. Enquanto esperava, ia preparando respostas na imaginação, que nunca eram as que escrevia na próxima carta.
É um exercício de admitir que desconhecemos os outros, mesmo aqueles que amamos. As mensagens escritas de celular lembram um pouco isso, tanto que ficamos mostrando para outras pessoas as respostas “dele” ou “dela”, para que nos ajudem a decifrar as entrelinhas.
Porém, o suspense sobre a reação do outro se mantém por pouco tempo. Nas cartas dá tempo de suar frio, ter dor de barriga. Nessas horas, em vez de me retrair, sentia vontade de ir mais fundo, para não deixar a conversa se interromper. Nossas cartas me ensinaram essa coragem.
Como te sente não tendo uma revista chamada Diana? 🙂
Olha, quando era criança, meu nome estava na moda… para cadelinhas. Então, uma revista teria sido uma referência bem mais alentadora.
Diana para Claudia
Quando admitiste que uma psicanalista é uma mulher qualquer, bem louca?
À medida em que a gente se escrevia, eu tive a certeza absoluta de que uma psicanalista não é uma mulher qualquer, é muito mais louca — no melhor sentido, o de revelar pra gente a nossa própria loucura. E nos fazer perder o medo dela.
Tu também te sentiu fazendo um striptease?
Muito! Tanto que, na revisão do livro, eu tirei várias partes em que me expus demais. O equivalente a botar o sutiã e a calçola em algumas passagens da vida.
Eu mudei algo na tua escrita?
Tu fez com que eu falasse de mim e eu nunca tinha feito isso, eu nunca falo isso — nem pra minha terapeuta. E esse despudor, com certeza, vai me ajudar muito na construção de outras personagens daqui pra frente.
Quando pequena, te sentias parte de um exército de Claudias? Te pergunto isso porque me sinto culpada de ter colocado nomes de época nas minhas filhas, as duas.
Por incrível que pareça, embora a Cardinale e a revista CLAUDIA tenham batizado todas nós, não éramos muitas por onde estudei e andei. Não sei que fim tinham levado as outras de mim. E as tuas filhas têm nomes lindos. Sossega, mulher.
Pode-se considerar o nosso um “livro de formação”, considerando que ele atravessa as nossas vidas e quem a gente se tornou?
A Paula Sperb, que assina a matéria, levantou essa lebre e também o fato de os livros de formação serem, em sua maioria, masculinos. O nosso com certeza tem essa característica e uma peculiaridade: ele também é um livro de pós-formação, com a C. e a D. amadurecendo depois que não parecia haver alguma coisa a amadurecer.
Aliás, quem tu te tornou?
Acredita que ainda não sei?
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