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Letícia Leal leva o ballet à periferia de São Paulo

Moradora da Vila Curuçá abre oportunidades na dança clássica para os moradores da periferia

Por Adriana Marruffo
28 abr 2024, 08h00
Letícia Leal leva ballet à periferia de SP
Letícia Leal, de 25 anos, se tornou um ponto focal para a dança na periferia (Izabella Rosa/Divulgação)
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Não há dúvidas de que o ballet é um dos esportes que mais encantam mães – seja pela doçura de ver crianças no palco ou pela beleza delicada da dança. Mas, para muitas famílias, o sonho não se concretiza com tanta facilidade, já que a atividade permanece elitista e fechada, sobretudo quando consideramos os preços de cada aula e os materiais necessários. Esta é uma arte que não chega com facilidade, por exemplo, às periferias de São Paulo. Hoje, porém, Letícia Leal representa um ponto focal para o acesso à dança na Vila Curuçá, distrito da Zona Leste de São Paulo.

A bailarina de 25 anos, formada pela Escola de Dança da Fundação Theatro Municipal de São Paulo, foi uma das poucas jovens que, mesmo sendo moradora da periferia, conseguiu o acesso a um ensino de qualidade na modalidade clássica. Mas, para ela, as sapatilhas de ponta e os palcos não poderiam ser restritos a uma única dançarina, e deveriam ser acessíveis. 

Para isso, fundou o Letícia Leal Núcleo de Dança (@leticialeal_ndanca), onde ensina alunos da periferia por preços acessíveis, além de oferecer bolsas para estudantes de escolas públicas, de baixa renda e beneficiários do Auxílio Brasil.

Quem é Letícia Leal?

Estudante de colégio particular, Letícia teve acesso à dança desde os três anos. “Eu gostava muito de fazer as aulas, e a professora enxergava um verdadeiro talento em mim. Desde então, eu falava para a minha mãe: ‘Mãe, eu vou ser bailarina’. E não havia quem discutisse”, brinca.

Foi então que sua professora ofereceu uma vaga em seu estúdio de dança e, desde os quatro anos, Letícia nunca viveu um dia sem praticar.

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“Apesar de ter o acesso, eu estudava em uma escola de bairro na Vila Curuçá, e o tipo de ensino para ser bailarina profissional era muito distinto do que eu tinha. É uma atividade que, na periferia, é pouco regularizada e, inclusive, bagunçada”, explica. Letícia sabia que as possibilidades de profissionalização seriam baixas se continuasse no estúdio. 

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Letícia, formada pelo Teatro Municipal, sonha em levar ensino de qualidade para as periferias (Izabella Rosa/Arquivo pessoal)

Foi somente aos 13 anos que foi aprovada na Escola de Dança da Fundação Theatro Municipal de São Paulo – após inúmeras tentativas falhas, devido aos parâmetros de avaliação da época – que possui um dos ensinos mais prestigiados no Brasil.

“Para a gente sair daqui (da periferia) e entrar no centro tem uma peneira muito agressiva, seja sobre peso, altura ou qualidade técnica, que era rasa em escolas de bairro”, reflete a bailarina. Dentro do Theatro Municipal, porém, os desafios seriam outros. 

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Cerca de 33 quilômetros separam a Vila Curuçá do Theatro Municipal, no centro da cidade: acordar, estudar, pegar o transporte público por uma hora e meia, assistir às aulas de dança, pegar o transporte público por mais uma hora e meia até chegar em casa. Foi essa a rotina que Letícia seguiu durante sete anos, tudo para ver o seu sonho concretizado.

Nos últimos anos da minha formação desenvolvi anorexia e disformia corporal, devido aos padrões que a escola cobrava das bailarinas, mas nada fazia que eu saísse de lá sem a minha formação. Para você ser profissional – sem pagar ou pagando pouco – não tem outra escola”, relembra. 

Foi no Theatro Municipal que ela descobriu uma nova paixão: o ensino. “Devido a uma lesão, eu tive que repetir o quinto ano e, como todas já sabiam que eu tinha aprendido, vinham sempre me encontrar para esclarecer dúvidas. Eu adorava ficar ensinando e as meninas até brincavam que eu explicava com maior facilidade”, diz.

Assim, após o diagnóstico da anorexia, ela entendeu que seu rumo não era o de ser uma bailarina profissional, mas sim o de ensinar outras meninas a serem profissionais e abrir espaço para bailarinos da periferia. 

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Aos 15 anos, mudou-se para um condomínio, ainda na periferia, junto com seus pais. Ali, conheceu a dona de uma Escola de Música, que buscava ampliar seus serviços para a dança e lhe ofereceu a possibilidade de lecionar algumas aulas aos sábados.

“Foi então que eu percebi que, para mim, era muito mais importante dar a aula do que receber o valor. Eu tive diversos alunos que acabei oferecendo para fazerem as aulas de graça, e eu via meninas que sempre quiseram dançar, mas jamais tinham tido condições”, conta emocionada. Depois de alguns anos, porém, ela passou a lecionar na sala de sua casa. 

“Meu pai trabalhava em uma empresa de materiais de inox e, com os retalhos, construiu uma barra e comprou um espelho – parcelado em sei lá quantas vezes. Foi lá que eu ampliei meu desejo de fazer disso uma ação social, mas, pela falta de recursos, quando eu via alunos que realmente tinham o talento, eu sabia que eu não poderia levá-los tão longe, e os mandava para outras escolas e ajudava nos processos seletivos”, explica.

Letícia ainda conta que um dos problemas do acesso à dança na periferia é que muitos professores preferem guardar os jovens talentos para si e acabam por cortar suas asas – ou, melhor dizendo, suas sapatilhas. 

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Fazendo do ballet uma ação social

Aos 20, já formada, resolveu alugar seu próprio espaço (ainda com a ajuda da mãe): “A gente não tinha dinheiro, mas demos um jeito, acabamos levando os mesmos materiais e, na época, tinha que pagar em torno de R$1200,00. Então veio a pandemia, não conseguimos nem abrir. Nos primeiros cinco meses nem me cobraram o aluguel, mas quando abriram as academias tive que começar a trabalhar”, conta.

Seus amigos, feitos no Theatro Municipal, a ajudaram a divulgar o novo empreendimento que, na época, era grande novidade no bairro: “Eu consegui o dinheiro do aluguel em um dia, cobrando apenas R$50”, brinca. 

Hoje, a academia está alocada em outra unidade – com mais espaço e recursos. “A minha ideia era que, além de garantir o acesso, era necessário ter acesso a algo bom. Eu queria trazer a formação do Theatro Municipal à periferia, e eu só consegui fazer isso ao trazer gente que acreditava nisso para a minha equipe”, conta.

Com o tempo, Letícia percebeu que nem todos precisam desse auxílio e, então, mudou o sistema: aumentou a mensalidade – ainda sendo mais barata do que a média – mas começou a abrir bolsas 100% para alunos que recebem Bolsa Família, estudam em escola pública ou apenas alguém que tenha a vontade, mas nunca teve os recursos. Hoje, 25 alunos recebem o ensino com a bolsa. 

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Hoje, Letícia Leal tem seu próprio estúdio para levar o ensino (Izabella Rosa/Arquivo pessoal)

“Se o pai de uma aluna chega em mim e me diz que ele não consegue mais custear o preço, minha alternativa jamais será tirar a aluna da escola. A gente vai negociar e vamos dar um jeito de continuar estudando. Somos uma escola muito humana, e tudo dá para conversar,  desde a perda de emprego até as dificuldades no trabalho”, conta. Além das bolsas de 100%, Letícia ainda avalia outras bolsas em valores menores para seus demais alunos. 

“As crianças da periferia, usualmente, passam por muitas dificuldades. Desde ficar em casa sozinhos porque os pais trabalham muito até não ter pais presentes, e no ballet eles têm algo estruturado: disciplina. Não é só ser profissional, mas é moldar a vida das pessoas através da dança”, conta. 

O estudo da dança não acaba apenas na mensalidade, havendo que desembolsar custos com uniforme e sapatilhas. Nesse caso, ela sempre pede para que os alunos doem todos seus materiais quando não servem mais – desde sapatilhas até collants – e oferece aos que não têm condições de custear. “O uniforme é importante, é dentro dele que elas se enxergam como bailarinas.”

“Se eu não tivesse entrado no Municipal, acho que eu não seria bailarina, e eu só consegui isso com a ajuda do meu bairro. Uma mãe que é diarista jamais vai ter essa possibilidade, assim como dificilmente vai poder ajudar a filha com o traslado até o centro. Se a gente não dá esse acesso, elas jamais vão ter a mudança de chave do que elas podem ser para além da periferia”, reflete.

“O ballet ensina muito sobre si, ele é solitário. A maior importância, para mim, é elas se tornarem pessoas diferenciadas. Na periferia, tudo ainda é emergencial”, finaliza a bailarina.

Além do ballet, a escola também oferece outras modalidades, como jazz, dança contemporânea e dança do ventre.

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