Janice Mascarenhas: De volta para o futuro
Janice Mascarenhas usa inteligência artificial para recriar narrativas visuais sobre a diáspora africana, desenvolvendo penteados e esculturas em cabelos
Multiartista, Janice Mascarenhas sempre conviveu com o pulso de criar. Filha de uma mãe cabeleireira, ela atua como diretora criativa, escultora e pesquisadora da diáspora africana no Brasil desde o começo da sua carreira, entrelaçando as áreas e experimentando em diversos suportes. “É [tudo] isso que eu conto através dos cabelos”, afirma a fluminense que cresceu em São Gonçalo, no Rio de Janeiro.
Engana-se quem pensa que seus penteados e criações só podem ser vistos fisicamente. Há alguns anos, Janice imergiu na arte digital, especificamente na inteligência artificial (IA) e nos cenários que podem ser elaborados por meio do recurso. O interesse cresceu quando ela morou em Berlim, em 2018. Rodeada por uma cidade cheia de inovações tecnológicas, Janice uniu a gana de aprender sobre o tema com sua arte e pesquisas. Escreveu, então, um projeto que angariou o prêmio Dazed100, uma colaboração da revista britânica Dazed com a marca Converse, e pôs-se a executá-lo. Nomeado de Anatomia da Diáspora, trata-se de uma coleção de vários produtos: um curta-metragem, 38 obras de arte entre esculturas, fotos e sons, e mais de 100 obras digitais feitas colaborativamente por 16 artistas de regiões diferentes do mundo, tudo com coordenação de Janice.
O curta usa as tranças como linha narrativa e conta como esses penteados foram (e ainda são) tecnologias e estratégias ancestrais [veja nas imagens da página anterior]. A inspiração veio do seu próprio trabalho como trancista. “Eu conhecia muitas histórias fazendo cabelo. Às vezes, estava dentro da casa de um diretor de cinema ou professor universitário, de repente, em Berlim com uma cantora… Comecei a encontrar similaridades nas memórias e pensei que isso daria um filme”, relembra.
O uso da IA no curta estava previsto desde sua concepção, afirma Janice, como uma possibilidade de criar a partir do que a multiartista já conhecia. “Fui trazendo a IA pra elucidar as histórias que eu ouvia e construir essas imagens. Não sou dona de todas as informações de todos os povos e queria unificar, sem me apropriar da narrativa deles.” Além disso, ela encontrou no ambiente digital formas de manter suas inspirações. “Quando recebi esse prêmio, eu fiquei longe de casa, do que me era inspirador, e isso me trouxe a necessidade de usar mais a internet. A IA foi uma muleta para recriar o meu mundo”, conta.
É por conta do interesse de Janice pelas tecnologias ancestrais que os penteados aparecem tanto em Anatomia da Diáspora. “Na Jamaica, me contaram que usavam os dreads para germinar as sementes; em Cuba, as tranças nagôs foram usadas para esconder sementes na época da escravização, como forma de adquirir alimento. Trago as referências visuais dessas histórias.”
Houve também a escolha de usar a linguagem dos sinais “para mostrar que isso não foi contado só por meio de um livro ou boca a boca, mas, sim, por vários formatos de manter a história africana viva”, completa ela, que dirigiu também o ensaio com a atriz Clara Moneke para divulgar o filme — acesse pelo anatomiadadiaspora.com.
A arte e a inteligência artificial
Referência e pesquisa de imagem são coisas que Janice defende como essenciais para qualquer artista, e que podem ser encontradas no ambiente digital. “Eu posso ter ideias vendo um passarinho, um peixe, mas também posso ter ideias dentro do meu algoritmo”, diz ela, ao citar como exemplo uma imagem criada com IA a partir de um desenho seu. “Eu sinto que desenhei aquela história: transformei em um 3D dentro do IA, e ainda consigo fazer uma foto do vídeo.”
O uso da inteligência artificial também para elaborar imagens é pauta de debate. Alguns defendem que, por serem utilizados bancos de imagens, estaria ocorrendo plágio ou uma competição desleal. Outros, como é o caso de Janice, acreditam que “dentro do mercado da arte, em 2023, nada mais se cria. Tudo é cópia ou referência”, argumenta ela.
Para Janice, falta uma compreensão do que realmente é a IA e como ela pode estar a nosso favor. “Existem dois tipos: o treinamento de máquina e as super IAs, que são os robôs, mas essa última ainda não existe. Ela não evoluiu, é uma pesquisa. Então, o que as pessoas temem é algo que nem existe”, defende, ao dizer que é preciso mostrar as múltiplas formas de usar a ferramenta. No seu caso, feito para criação de imagens, é sempre necessário uma pessoa programadora para manipular o equipamento e o recurso.
Fato é que, embora a inteligência artificial já seja utilizada no cotidiano de muitas pessoas (seja para redigir textos, como é o recente ChatGPT, para executar comandos por voz com Siri ou Alexa, ou para elaborar imagens como as do Papa Francisco usando uma jaqueta puffer), o avanço da tecnologia levanta discussões. Entre elas a influência ou manipulação dos algoritmos, o impacto desse tipo de recurso na sociedade e como ele pode melhorar ou piorar um planeta que enfrenta a crise climática, a desigualdade socioeconômica e o autoritarismo crescente.
Para Janice Mascarenhas, o futuro da arte, seja ela digital ou física, deve ser o mais acessível e menos burocrático possível. E onde fica a IA nisso? No meio, como mais um instrumento — e não o contrário. “Espero que isso facilite o artista”, finaliza ela.