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Elza Soares: “Se você não for generosa com você mesma, ninguém vai ser”

Aos 90 anos, Elza Soares é uma potência criativa e musical. Mas seu maior talento talvez seja a generosidade com que olha para a vida

Por Isabella D'Ercole Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
14 ago 2020, 10h00
 (Julia Lego/CLAUDIA)
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O sol entra pelas janelas e preenche todo o cômodo do apartamento de frente para o mar em Copacabana, no Rio de Janeiro, enquanto o jazz intenso de Chet Baker embala mais um dia da quarentena de Elza Soares – a diva completou 90 anos durante o isolamento. “Ele vai direto na alma. Escuto sem parar”, diz ela, referindo-se ao músico americano. A conversa com CLAUDIA por telefone, que rolou enquanto Elza pintava as unhas, teve que ser adiada duas vezes. É que, há semanas, a cena tranquila descrita anteriormente é interrompida diariamente pelo barulho frenético da obra que acontece no apartamento de cima e para só às 17 horas. “É um inferno! Isso me atrapalha, me machuca. É um ruído terrível, mas não tem nada que eu possa fazer”, conta Elza, resignada.

Apesar dos entraves, os meses em casa foram produtivos para a cantora, que não deixou de malhar e fazer fisioterapia – há alguns anos ela enfrenta dificuldades de mobilidade após uma queda durante uma apresentação e um acidente de carro. “Não gosto de tirar férias, não preciso. Sinto falta do palco”, explica. Para matar a saudade dos fãs e alimentar a força criativa, ela lançou, em abril, uma versão de Carinhoso, composta por Pixinguinha, com letra de João de Barro; em junho, regravou Juízo Final, de Elcio Soares e Nelson Cavaquinho; e em julho estreou Negão Negra, com Flávio Renegado. Esta última, que foi chamada de manifesto antirracista, acrescenta ao ritmo do rap batidas eletrônicas e brada em um trecho: “Nunca foi fácil e nunca será para o povo preto do preconceito se libertar”. A música chega em meio aos debates mundiais sobre o tema e à luta contra o preconceito. “O racismo continua vivo, cada vez mais forte. Não mudou nada desde que eu era jovem. As pessoas têm que ir pra rua, gritar. Elas precisam se conscientizar. Enquanto eu puder falar sobre tudo isso, vou continuar, mas gostaria que outros também não perdessem essa oportunidade”, afirma Elza. “Sonho com um país igual, onde não exista distinção de cor ou raça, com um futuro em que todo mundo coma e durma igual, tenha paz. E que quem não tem vergonha na cara crie bastante.”

O ativismo nas músicas da carioca, nascida Elza Gomes da Conceição, não é de agora. Segundo a artista, que compõe com menos frequência, ela procura canções com mensagens que expressem seus pensamentos e valores, que tenham a ver com o que ela quer transmitir no momento. “Aí vem a parte fácil, que é interpretar. É só colocar sentimento”, diz, humildemente, Elza, que já foi escolhida a cantora brasileira do milênio pela rádio inglesa BBC. Nascida na comunidade Moça Bonita, ganhou do marido o sobrenome, com o qual se consagrou. Elza se casou aos 12 anos, forçada pelo pai. Aos 13, virou mãe. Apesar de cantar desde cedo, sua primeira incursão pública foi um ato desesperado. Elza já tinha perdido um filho para a fome e o outro estava doente. Às escondidas, foi ao programa Calouros em Desfile, apresentado por Ary Barroso, na Rádio Tupi, para tentar conquistar o prêmio e conseguir alimentar a criança. Como não tinha roupas bonitas, pegou uma emprestada da mãe, cujo peso era o dobro dos seus 32 quilos, e ajustou com alfinetes. O visual foi motivo de piada assim que Elza subiu ao palco. “De que planeta você veio, minha filha?”, perguntou Ary. A resposta de Elza rendeu-lhe o respeito do apresentador e da plateia e deu nome ao álbum lançado em 2019: Planeta Fome. “De lá pra cá, sempre levo comigo um alfinete”, escreveu ela certa vez ao contar a história. Apesar de ter ganho o prêmio, Elza só prosseguiu na carreira musical depois de ficar viúva, aos 21 anos. “Foram muitos os momentos de renascimento. Não consigo nem escolher o mais difícil, mas com certeza perder filhos é uma marca eterna. Acho que tenho uma proteção divina muito grande que não me permitiu sucumbir”, reflete a cantora, que perdeu quatro dos sete filhos e ainda teve uma bebê de 1 ano sequestrada. Ela só reencontraria a filha 30 anos mais tarde.

“Eu não olho para trás, é muita coisa. Tenho medo de virar e ficar cega. É como estar em uma estrada em que você vai abrindo caminho e só vendo o que vem à frente”

Mesmo aclamada pelo público e pela crítica, Elza não viu a vida ficar mais fácil. Ela foi, muitas vezes, alvo de escrutínio público, especialmente por seu relacionamento com o jogador de futebol Garrincha. Na época, a culpavam pelo fim do casamento dele. Os dois ficaram juntos por 16 anos e tiveram um menino, morto aos 9 anos em um acidente de carro. Depois disso, a artista morou fora do Brasil por anos. O relacionamento com Garrincha foi complicado. O jogador, que morreu de cirrose, conviveu com o alcoolismo por muito tempo. Conduzia bêbado o carro quando se envolveu em um acidente que mataria a mãe de Elza. “Eu não olho para trás, é muita coisa. Tenho medo de virar e ficar cega. É como estar em uma estrada em que você vai abrindo caminho e só vendo o que vem à frente”, responde a cantora quando pergunto como superou tantos desafios. “Esperança para mim é a última que morre. Eu acredito que o melhor está por vir, my love. É só querer e crer.” Ela conta que, nas noites de sono, sempre sonha que está correndo, ganhando, nunca perdendo.

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Apesar do otimismo, Elza não se considera inabalável. Em sua biografia, Elza (LeYa), escrita por Zeca Camargo, revela que prefere passar pelos momentos difíceis sozinha. Ela credita a força para se reerguer a São Jorge, de quem é devota. Na casa dela, logo na porta, fica uma imagem do santo, para quem ela reza todos os dias várias vezes. “Peço misericórdia para o mundo e, principalmente, para nós, mulheres. Rezo para que sejamos dignificadas como deveríamos”, conta, acrescentando ter ficado horrorizada com o aumento da violência doméstica durante o isolamento. “As mulheres precisam denunciar, ter coragem e agir. Liga para o 180 e bota a boca no trombone, grita, por favor, mulher”, pede. “Eu brigo muito pelas mulheres. Falo em shows, me envolvo com a negritude. A mulher negra está sempre atuando, correndo e eu acompanho esses movimentos porque me identifico, claro. É fundamental que nós, mulheres, acreditemos mais em nós mesmas, saibamos que temos uma força muito grande e não tenhamos medo de fracassar. Não podemos facilitar para quem não quer nosso crescimento. Digo que devemos sempre ter um pé à frente para buscar o melhor”, afirma ela, que virou símbolo de resistência no enredo da escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel, chamado Elza Deusa Soares e apresentado no Carnaval carioca deste ano.

Ainda sem previsão para sair de casa, a cantora, que tem mais de 30 álbuns, participa de lives e programas de televisão, transmitidos diretamente do seu sofá. Mantém seu espírito positivo para o final da pandemia, mas não faz planos. “Não sei se sair de máscara é minha ideia de liberdade, mas quero continuar produzindo, criando, cantando mesmo que seja do meu apartamento.” Forte e incisiva, Elza nunca desistiu e não vai ser desta vez que vai se aposentar. “O meu caminho é de esperança, luz. Eu descobri isso depois de muito apanhar e bater, com a maturidade”, fala com sua inconfundível voz rouca. “Mas, principalmente, aprendi com a vida que, se você não for generosa com você mesma, ninguém vai ser”, entrega.

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(Julia Lego/CLAUDIA)

Concepção visual Lorena Baroni Bósio e Palmiro Domingues • Produção executiva Pedro Loureiro • Produção pessoal Vanessa Soares • Beauty Wesley Pachu • Tratamento de imagens Alt Retouch • Roupas, acervo de Elza; joias, Swarovski

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