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Cineasta faz documentário após sofrer violência em date de aplicativo

Marccela Moreno transformou sua experiência e de outras mulheres em filme e contratou uma equipe inteira feminina para fazê-lo

Por Marccela Moreno
23 out 2020, 11h30

“Em 2015, os papos sobre consentimento estavam começando a rolar com mais intensidade no Brasil, mas ainda era um conceito bastante abstrato. Aos 25 anos, solteira e morando sozinha em uma cidade que não era minha, tentava navegar a vida adulta e minha própria sexualidade.

Apesar das amarras que a sociedade patriarcal nos impõe e toda essa mitologia de puta e santa, me sentia bastante no comando da minha vida sexual, sempre tentando temperar os impulsos com o cuidado.

Ainda assim, não havia passado ilesa. Já contava episódios de encontro com os perigos da masculinidade tóxica, como a vez em que, na oitava série, o garoto de 14 anos por quem eu era apaixonada tentou me convencer a transar em troca de namorar comigo – pois ele ‘era homem e tinha suas necessidades’. Ou a vez que um rapaz, com quem saía no verão de 2014, achou que seria de bom tom tirar a camisinha no meio do ato sexual.

No entanto, todas essas reflexões se tornariam mais amadurecidas em mim depois do episódio de 2015. Dei match com um rapaz (vamos chamá-lo de B.) e o papo era legal: tínhamos interesses políticos, artísticos e hobbies em comum.

Saímos uma vez, foi um date razoável – bem abaixo das minhas expectativas – que me deixou com certo desconforto: estava usando um vestido costas nuas e ele tentava sempre descer a mão por dentro dele, de modo que, mesmo no calor atroz do verão carioca, vesti um casaco para fazer barreira.

Apesar disso, aceitei quando ele me convidou, no dia seguinte, para jantar na casa dele. Talvez estivesse cansada de encontros casuais que não iam para frente, talvez achasse que tinha de insistir um pouco mais para as coisas encaixarem.

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Cheguei na casa dele e lembro da sensação até hoje. Era um lugar frio. Ele disse que tinha a guarda compartilhada dos filhos pequenos, mas não havia ali nenhuma foto, marca de vida familiar ou da presença de crianças.

Comemos e bebemos vinho, e começamos a ver um filme; um encontro bem íntimo. Parecia que nos conhecíamos há um tempo. Começamos a nos beijar, aquela pegação, pausa no filme.

Não queria transar com ele e sabia disso. Eu sentia isso. Eu lhe disse isso. Pedi que fôssemos com calma. Fomos para o quarto e uma coisa me era clara, inclusive por experiência própria: deitar na cama com um homem não significa transar com ele.

(Foto/Reprodução)

Começamos a tirar a roupa e eu tentava ficar com vontade, mas, ao mesmo tempo, tentava sair daquela situação. Até que falei com todas as letras: ‘Não vai rolar nada hoje, não estou a fim, ainda estou um pouco menstruada e não me sinto confortável’. Ele continuou me beijando e fui me sentindo cada vez mais imobilizada, de dentro para fora.

Ele colocou a camisinha e eu disse não mais uma vez. Ele passou a mão entre minhas pernas e me disse: ‘Você está molhada, olha como você quer sim’. Eu nunca vou me esquecer disso. Estava calma porque parte de mim tinha certeza de que ele iria entender o que eu estava dizendo. Expliquei que era uma resposta fisiológica e não queria dizer que eu estava consentindo. ‘Não vem ser tão didática pra cima de mim, Marccela’, foi o que saiu de sua boca enquanto ele me penetrava.

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Sem saber como escapar, empurrei, mas no geral fiquei lá, imóvel, esperando que ele terminasse o que tinha começado. Foi como se eu estivesse me assistindo do lado de fora de meu corpo.

Eventualmente, ele brochou; exausta e com medo de ir embora de madrugada e sofrer mais uma violência – talvez ainda pior do que a que tinha acontecido e eu ainda nem conseguia dimensionar –, acabei dormindo lá do lado dele.

Parte de mim talvez pensasse que isso era um efeito colateral de ser uma mulher solteira e sexualmente ativa. De manhã, ele tentou mais uma vez, mas escapei dizendo que tinha aula. Passei o dia estranha, não parecia com mais um dia seguinte de um sexo pouco satisfatório e vazio. Era outro sentimento. Saí com amigas na noite seguinte.

Ao vê-lo no bar, me escondi atrás de uma árvore até que ele fosse embora. Minha espinha gelou. Minhas amigas não entenderam quando disse que tinha passado a noite com ele e agora o evitava como uma praga; afinal, ‘ele é tão gatinho’.

B. mandou mensagens e insistiu para nos encontrarmos. Eu evitava responder. Até que emendou em uma mensagem genérica: ‘Desculpa qualquer coisa, é que você me deixou explodindo de tesão’. Senti repulsa.

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Após uma semana, contei como tinha sido minha noite com B. em um grupo feminista na internet e o veredicto foi inequívoco: eu havia sido estuprada. Essa palavra me apunhalou por dentro e abriu uma torneira de lágrimas. Chorei de vergonha e de culpa, pensando como eu iria contar para minha mãe.

No dia seguinte, contei para meus amigos mais próximos – curioso como foi bem mais fácil falar disso com mulheres desconhecidas. Uma das minhas melhores amigas disse que não era justo eu guardar isso sozinha e que outra parte dessa equação precisava ser confrontada. Essas palavras me empoderaram.

Escrevi uma mensagem e disse como me senti violentada – ainda era difícil me dizer estuprada. Ele me ligou e assim se iniciou uma das conversas mais desconfortáveis da minha vida. Ele se defendeu e tentou me fazer de louca.

‘Eu brochei quando vi que você não queria, não consigo transar sem a outra pessoa estar a fim’, disse, antes de me culpar indagando por que não fui embora, não o empurrei, não gritei. Por fim, quase derrotado, me perguntou o que poderia fazer para que sua filha nunca passasse por algo assim.

Todas para quem contei essa história me respondiam com um quase onipresente: ‘Eu também passei por isso’. Chamava a atenção esse silêncio que permanece mesmo entre amigas. Naquele ano, comecei a cursar projeto de documentário na faculdade de cinema e não existia outro tema que quisesse trabalhar senão esses estupros insidiosos, que de tão comuns se tornam calados.

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O nome veio logo, O Mais Barulhento Silêncio. Depois, vieram dois dos pilares fundamentais do filme. Primeiro, a imagem de uma mulher na cama e uma câmera de cima para baixo que refletia a ótica do estuprador – não para perpetuar a opressão e a violência do ato, mas como um chamado para consciência de que todos nós, enquanto sociedade, somos responsáveis pela manutenção da cultura do estupro.

Depois, foi a certeza de que queria uma equipe exclusivamente feminina, tanto como forma de criar um ambiente seguro quanto para marcar a posição de que mulheres pertencem atrás das câmeras também, uma vez que o cinema é uma indústria machista e que sua fabricação de imagens e narrativas contribuiu através da história para perpetuar a opressão feminina.

Não tenho palavras para agradecer à equipe e às atrizes que foram as procuradoras audiovisuais dessas corajosas mulheres que compartilharam suas histórias. Usar atrizes foi a única forma que tínhamos de proteger outras mulheres contra represálias e isso permitiu uma abordagem artística mais estilizada e sensível; de certa forma, universal.

O processo de fazer esse filme foi uma jornada de cura e reparação para todas envolvidas nele. Os ensaios eram espaços sagrados de partilha de experiências em sua maioria dolorosas. Em um deles, uma das atrizes se deu conta de que um sexo ruim fora, na verdade, um estupro. Tínhamos ali a prova matemática da estatística que diz uma em cada quatro mulheres será estuprada até o fim da vida.

Nossa intenção sempre foi que o filme se transformasse em uma obra que confortasse, ainda que doesse. Que despertasse para reflexão tanto quanto emocionasse. Acredito que conseguimos. Ao final de um ano de trabalho, já na edição, me dei conta de que era a minha resposta para a pergunta de B. sobre sua filha.

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(Foto/Reprodução)

O filme foi dedicado a ela e a todas as meninas e mulheres, conhecidas e desconhecidas. Falemos. Eduquemos os meninos de forma a nos ver como seres humanos dotados de desejo, vontade, negação e dignidade. Assim como eles, não abaixo deles.

Eduquemos nossas meninas para serem altivas, seguras de suas faculdades intelectuais, personalidades, vontades e valor. É amargo pensar que cinco anos depois ainda precisamos ter as mesmas conversas, tentando romper os mesmos silêncios. Mas agora pelo menos com mais vozes que se somam conscientes e atentas.”

Assista ao filme completo:

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