Documentário revela cenário cruel do casamento infantil no Brasil
"Apenas Meninas", na HBO Max, é dirigido por Bianca Lenti e acompanha meninas que assumiram o papel de esposa e de mãe muito cedo
O Brasil é o quarto país do mundo onde mais acontecem casamentos infantojuvenis, ou seja, com pessoas abaixo dos 18 anos. Apesar do ato ser considerado crime pelo Código Civil, os arranjos são feitos sem oficialização e viram alternativa para meninas fugirem de situações extremamente vulneráveis e de abandono.
O documentário Apenas Meninas, dirigido por Bianca Lenti e exibido na HBO Max, mostra o cenário triste que não acontece apenas nos rincões do Brasil, mas nas grandes cidades – uma das personagens do documentário vive a 15 quilômetros de Brasília, onde se concentra o poder político nacional. Acompanhando garotas que se casaram na adolescência e já são mães, Bianca questiona a estrutura cíclica que impede o fim do casamento infantojuvenil.
“Em outros países, há questões culturais e religiosas que levam ao casamento infantil, mas aqui é uma questão social. Para essas meninas, o casamento é uma fuga da vulnerabilidade financeira, emocional. Elas não se sentem protegidas pela família e buscam acolhimento”, conta a diretora a CLAUDIA.
Uma das mulheres retratadas no documentário, Agnes saiu de casa porque sua mãe, solo, não conseguia sustentar os quatro filhos. O companheiro da mãe, um namorado recente, lançava olhares estranhos e foi a gota d’água para Agnes sair de casa. Ela tentou ainda morar com a avó, mas já tinha muita gente na casa. Foi morar com o namorado, Pedro, e logo engravidou.
Ruama não era bem-vinda na casa do pai e não era querida pela madrasta. Havia sido abandonada pela mãe e não tinha planos ou sonhos que a tirassem dali. Encontrou em Vitor, o vizinho da frente, uma saída. Grávida, deixou a escola, porque era longe para ir a pé. Passou a morar com Vitor e a sogra, além dos irmãos. Em casa, ela cuida dos cunhados – ainda bebês – e da casa.
Adriana limpava a casa dos pais, cuidava dos irmãos e ainda apanhava. A cobrança extrema acabava em violência e ela chegou a ir para a escola com o olho roxo. Aos 12, saiu de casa para trabalhar e casou.
“A sociedade já empurra a mulher para exercer o cuidado. À mulher cabem as atividades do lar. Aos homens, o sustento. O homem fica mais fora de casa, ele fica sozinho. Aos poucos, eles começam a beber e a jogar. A ilusão vai se esfacelando”, conta Bianca.
Muitas vezes, o casamento é incentivado pelos pais porque representa saídas melhores do que o destino de outros, como a violência, as drogas, o crime, o tráfico, a fome. “Elas não conseguem entender tudo que estão sendo usurpadas, dos seus direitos como sujeitos. Essas meninas precisam sonhar, ter possibilidade de fazer escolhas que não sejam os trabalhos domésticos, os filhos. Só que isso só muda a longo prazo, com educação”, defende Bianca.
Existe vida depois do casamento infantojuvenil, completa a diretora. “Quando você tem a chance de estudar, descobre outros universos. Se você tem repertório, cria outra saída. E também precisamos de políticas públicas que acolham essas meninas, que deem creches para que as crianças tenham onde ficar enquanto elas estudam. Isso seria benéfico até mesmo em termos econômicos, já que estamos perdendo a força de trabalho que essas meninas representariam”, diz.
A ausência de olhar político e da sociedade também é fator decisivo na permanência dessas uniões. “A mulher periférica e negra ocupa o lugar mais rasteiro na nossa pirâmide social. O Estado, a sociedade, ninguém olha para a vulnerabilidade dessas meninas. Ninguém se importa com os sonhos delas. O que essas meninas realmente querem é serem vistas e ouvidas. No casamento, na maternidade, elas se reafirmam como sujeitos, reafirmam suas existências”, fala Bianca, destacando que muitas entram em depressão e tentam o suicídio e que outras são mortas em situações de violência.
Em todas as falas das meninas entrevistadas, elas reafirmam o desejo de dar aos filhos experiências e vivências melhores do que as suas. E muitas perdoam as mães, apesar do abandono, da fome, da violência e da exposição a situações de abuso. “O que entendemos é que não há culpados, apenas vítimas. As mães não desejam isso, mas não conseguem dar nada melhor. Elas também são vítimas, arrimo de famílias grandes”, fala Bianca.
Apesar do cenário complexo, Bianca percebe mudanças geracionais. Ela acredita que o discurso feminista chega, aos poucos, nessas mulheres: “Elas conversam, fazem trocas. Uma delas até fala: ‘Meu marido é machista, acha que mulher tem que ficar no fogão’. Isso é ter noção dos direitos delas”.
Agnes, socióloga formada e separada do pai de sua filha, também acredita em mudança. “Eu acho que precisamos de uma grande transformação social. A minha vida é toda perpassada por violências e por condições de nenhuma dignidade e proteção social. E a da minha filha talvez seja também, só porque ela é mulher.”