CITY Grrrl: um mergulho na personalidade brilhante de Luísa Matsushita
Em duas décadas, Luísa Matsushita, a LoveFoxxx do CSS, deu uma volta ao mundo — interna e externamente. Hoje, busca o equilíbrio para honrar a si mesma
Quando Luísa Matsushita, a irreverente LoveFoxxx, se juntou às meninas do CSS (Cansei de Ser Sexy), em setembro de 2003, não podia imaginar a proporção que o alcance do conjunto tomaria. “Não estávamos nem aí para a venda de discos, nem sabíamos o que era isso. Queríamos apenas que as pessoas conhecessem as nossas músicas”, diz Luísa. Esse desprendimento era um movimento inédito na indústria fonográfica nacional.
Sem espaço na grande mídia — e, pasmem, nenhum lançamento oficial de disco, apenas faixas isoladas disponibilizadas na extinta Trama Virtual, uma espécie de SoundCloud da época —, o Cansei de Ser Sexy fazia a divulgação de seu trabalho inteiramente pela internet. Em pouco tempo, porém, conseguiu furar a bolha.
“No começo de 2004, fizemos o nosso primeiro show em Belo Horizonte, em um local que cabia, no máximo, 400 pessoas. Quando chegamos lá, vimos uma fila de um quarteirão, cheia de gente querendo entrar para nos ver. Não tínhamos nada lançado pela gravadora! Nosso primeiro disco saiu apenas em 2005! Foi aí que percebi a comoção que havíamos criado”, lembra LoveFoxx.
Desde lá (e de seu grande hit Alala), o quarteto rodou o mundo. Tocou em festivais como os ingleses Glastonbury e Reading, e o japonês Fuji Rock, e se tornou uma das bandas brasileiras de maior sucesso internacional.
Duas décadas depois, em 2024, o público ainda clama pela presença do Cansei no line-up de qualquer evento dedicado à música alternativa — não à toa, elas foram um dos destaques da segunda edição do Primavera Sound, em dezembro de 2023, em São Paulo.
“Nós quatro sempre nos unimos pelo nosso humor, por termos uma energia boba. Gostamos de dar risada, e para entrar nessa vibração, é necessário criar um ambiente seguro e amoroso. Arrisco dizer que é isso que nos mantém em evidência até hoje.”
A volta aos palcos de Luísa Matsushita
O Primavera Sound foi um momento importante na carreira recente do grupo — foi a primeira vez que o conjunto se apresentou em quatro anos. Luísa ficou extremamente feliz com o resultado. Para ela, foi um dos melhores shows da história da banda.
“Nós nos preparamos por meses. As três outras meninas moram em Los Angeles, então fazíamos videochamadas em grupo. Foi tudo muito artesanal”, diz. Os backdrops (vídeos reproduzidos nos telões durante o setlist), muito elogiados pelo público, foram criados inteiramente por Lovefoxxx, sua amiga Sofia, e o enteado de 14 anos — algo que combinou perfeitamente com a clássica energia DIY das integrantes.
“Baixei a versão gratuita do CapCut [editor de vídeos online, muito usado para posts no TikTok] e colocamos a mão na massa. A criatividade é tudo o que temos”, afirma, orgulhosa.
Toda essa aura despretensiosa, porém, não eliminou a pressão de se apresentar para milhares de pessoas. “Eu fiz terapia na sexta-feira e o show era no sábado. Lembro que disse para a minha psicóloga: ‘A única pessoa a quem quero corresponder as expectativas sou eu mesma. Se eu fizer por mim, estarei fazendo simultaneamente por todes’.”
Para a cantora, essa é uma nova régua que ela vem usando para analisar o seu trabalho: “Não dá para agradar todo mundo, pois não conhecemos todo mundo. Senti bastante ansiedade, aquela de dar uma coceirinha na mão, mas tudo o que dá frio na barriga vale a pena ser feito”.
Alguns compassos de pausa
Inúmeros fatores contribuíram para que, após o lançamento de Planta (2013), Luísa resolvesse desacelerar. Entre eles, o ritmo insano da vida na estrada: “Demos a volta ao mundo várias vezes. Existia muito cansaço envolvido. Não quero passar uma ideia de champagne problems [expressão em inglês que descreve dificuldades de privilegiados], mas esse é um desafio muito específico que poucos têm o privilégio de passar”, explica.
Mais intenso do que o desgaste físico, porém, era o esgotamento emocional. Uma das causas foi a postura da mídia brasileira, tradicionalmente misógina — ainda mais nas décadas passadas.
“Eu estava muito machucada. Lá para os anos 2000, havia muitos jornalistas homens, de meia-idade, que falavam sobre a gente de uma forma machista, horrorosa e violenta. Isso deixou uma marca em mim. Hoje, a cena mudou muito, ainda bem. Mas naqueles tempos foi traumatizante”, diz.
LoveFoxxx reflete que, de certa forma, seu isolamento nos últimos anos — que envolveu a venda de seu apartamento em São Paulo, a participação em uma residência artística na Amazônia e um interesse intenso na construção sustentável — foi uma resposta a tudo isso.
“Eu pensei: ‘Quero ficar sozinha’. Eu só tinha 19 anos quando comecei a aparecer nas notícias. Precisei processar esse período, sair das redes, dar unfollow em todo mundo e ficar isolada no meio do mato.”
Adubo humano
A residência artística na Amazônia foi a primeira das tentativas de se afastar da vida corrida e urbana que levava. “Quando dei uma pausa da banda, quis viver um estilo de vida radicalmente diferente. Fiquei na Amazônia dois meses pintando, e depois fiz uma exposição em Manaus. Também trabalhei em voluntariados construindo casas e escolas, multiplicando sementes em comunidades agrícolas”, lembra. Foi nessa época também que LoveFoxxx ouviu falar de ayahuasca.
A integrante do CSS conta que tomou o chá diversas vezes entre 2014 e 2017, e que em um dos rituais teve um insight poderoso: “Coloquei prótese de silicone em 2011, e enquanto eu consagrava a ayahuasca, comecei a sentir uma coisa estranha dentro de mim. Foi por causa disso que retirei minha prótese”, lembra.
Em seguida, veio a ideia de construir a sua própria casa do zero, um “barraco”, como a artista chama, de 12m2 em Garopaba, litoral de Santa Catarina. Tudo nessa empreitada foi sustentável.
“Foi a experiência mais valiosa que eu tive. Eu achava lindo fazer adubo humano, transformar o seu próprio cocô em adubo e plantar com ele”, diz em meio à risadas.
“Foi cansativo, porém bonito. Era tudo tão minúsculo que, para ficar contente, eu tinha que tornar o local belo. A primeira coisa que levei para o terreno, que não tinha nem cerca, foi uma disco ball. A luz refletia, era belíssimo”, relembra com carinho.
Para sempre uma City Grrrl
Passada essa fase, porém, Luísa precisou aceitar que a imersão na natureza, embora revolucionária em seu processo de autoconhecimento, devia chegar ao fim: “Eu acreditava que, se eu construísse a minha casa, vivesse no meio do mato, perto do mar, eu seria feliz. Mas eu acabei descobrindo que não sou essa pessoa”.
LoveFoxxx afirma que “deu uma volta e retornou para onde sempre esteve”. Dessa vez, porém, transformada pela experiência – e em um lugar emocional e espiritual completamente diferente.
“Quando a gente mesma muda, tudo muda. Mas eu continuo sendo uma ‘City Grrrl’ [em referência ao hit do CSS de mesmo nome]. Gosto da cidade. Onde eu morava não tinha uma gay, uma amiga viada pra ficar fervendo. Eu estava lá sozinha, no meio dos héteros, em vez de estar na comunidade, com as minhas amizades, no meio de onde a energia flui.”
De volta ao agito urbano, a cantora, aos 39 anos, tem planos concretos para 2024: “Eu quero pintar muito, ter saúde, fazer exercícios…” Nessa hora, Luísa faz uma pausa. Silenciosamente, vai às lágrimas. E então conclui, emocionada: “Quero ficar forte, nutrir relações, ter bons pensamentos. Se eu estou me exercitando, me alimentando bem, a minha cabeça está boa. É apenas isso que eu quero.”