Em “Assassinos da Lua das Flores”, Scorsese cutuca dívida americana
Sem suavizar quaisquer aspectos, o cineasta revira, sem remorsos, a negligência do governo estadunidense perante os povos originários
Logo nos primeiros minutos de Assassinos da Lua das Flores, que estreou hoje (19) nos cinemas brasileiros, presenciamos o assassinato de dezenas de indígenas. Apesar de indigesto, o choque inicial dita o tom do restante do filme, que, sem rodeios, escancara a ferida de um dos episódios mais vergonhosos da história dos Estados Unidos: o massacre do povo Osage.
A trama — dirigida de forma sublime por Martin Scorsese, que continua sendo uma das maiores forças criativas da sétima arte aos 80 anos de idade — é uma adaptação do livro Killers of the Flower Moon: The Osage Murders and the Birth of the FBI, lançado em 2017 pelo jornalista americano David Grann.
Trata-se de um caso verídico, quando, em 1920, os povos originários de Oklahoma sofreram com a ganância do ‘homem branco’ por conta da descoberta de petróleo em suas terras.
Naquela época, os nativos até conseguiram na justiça o direito de obter os lucros do combustível fóssil, mas acabaram sendo vítimas de um esquema homicida que os assassinou um a um, para que suas posses fossem transferidas para os americanos.
Aliás, este é o ponto de partida da história: o encontro entre Ernest Burkhart (Leonardo DiCaprio) e Mollie Burkhart (Lily Gladstone). Ao notar que a jovem indígena possui uma herança volumosa advinda dos lucros do petróleo, não demora para que Ernest se case com a moça visando o seu patrimônio — plano sugerido por seu tio, o inescrupuloso William Hale (Robert De Niro).
A partir daí, o que se segue é uma verdadeira pilha de corpos, com os parentes de Mollie sendo exterminados até que o próximo contemplado pela herança seja Ernest.
Com todos esses elementos narrativos estabelecidos em tela, Scorsese orquestra uma verdadeira aula de suspense, onde novos desdobramentos e reviravoltas inesperadas surgem a cada esquina, prendendo o espectador por mais de três horas.
Inclusive, não se assuste com a duração do longa: mesmo sendo extenso, o diretor cria uma experiência genuinamente imersiva, daquelas capazes de nos fazer esquecer que existe vida fora das salas de exibição.
Parte disso é mérito do diretor de fotografia Rodrigo Prieto (que também assina a cinematografia de O Irlandês): com um olhar visualmente cirúrgico, o artista captura o contraste entre a exuberante natureza de Oklahoma, terra dos Osage, e o desenvolvimento urbano desenfreado provocado pela chegada dos americanos à região.
O score do filme, composto por Robbie Robertson (falecido em agosto deste ano) potencializa tanto a dramaticidade dos fatos quanto a tensão que se escala conforme o roteiro avança. Cada detalhe tem o seu papel, trazendo uma aura artesanal à obra que, infelizmente, vem se tornando cada vez menos frequente no cinema mainstream.
Elenco de Assassinos da Lua das Flores é um espetáculo à parte
E falando em circuito comercial, não posso deixar de destacar o excelente desempenho do elenco — que certamente irá varrer os troféus na próxima temporada de premiações. DiCaprio, que vem experimentando um tardio (porém bem-vindo) respeito entre a crítica especializada, é o coração do projeto.
Com maneirismos peculiares, conflitos morais extremamente tangíveis e um senso de culpa que o persegue constantemente, o ator cria um universo em si mesmo, se adaptando (sem grandes esforços) a todos os intérpretes que o orbitam.
De Niro, que compartilha uma sintonia quase sobrenatural com Di Caprio, surpreende vivendo William Hale — aliás, o personagem é a síntese da hipocrisia americana, trazendo à tona o clássico indivíduo que, apesar de cometer atrocidades, acredita em sua integridade.
Vale também uma menção honrosa à Gladstone, que entrega uma performance tão confiante quanto vulnerável em sua mais que bem-vinda interpretação de Molly.
Assassinos da Lua das Flores tem presença garantida nas grandes premiações
De certo, ainda iremos presenciar Assassinos da Lua das Flores atingir o ápice de sua popularidade com a chegada da próxima temporada de premiações — em janeiro.
É quase certo que o longa irá abocanhar indicações em cerimônias como o SAG Awards, BAFTA e Oscar. Até lá, nos resta apenas dissecar cada detalhe de mais um grande acerto do atemporal Martin Scorsese.