Aline Bispo: novos reflexos da arte política no Brasil
Das cores da bandeira aos símbolos espirituais, a artista busca os valores da ancestralidade para trazer reflexões e colorir caminhos rumo ao equilíbrio
Espadas-de-são-jorge, frutas, crianças com a camiseta da seleção, orixás. As referências à farta cultura brasileira assumem faces tão diversas nas obras de Aline Bispo quanto é possível imaginar. Ao observar mais atentamente suas pinturas, ilustrações, gravuras, fotos, estampas de roupa, grafites em empenas e performances (os seus talentos são múltiplos), é possível enxergar um forte elemento em comum: a vontade de promover reflexões e transformar atravessamentos em em arte. Nascida em São Paulo, ela questionou o papel que o mundo parecia reservar para ela desde muito cedo.
“Morava no Campo Limpo quando não existia nem a Linha Amarela do Metrô. Até o trabalho e onde estudava, eram trajetos bem complicados. Havia Etec perto da minha casa, mas os cursos que eu queria fazer, voltados para a criatividade, eram nas unidades de outros bairros, mais elitistas”, lembra a artista hoje representada pela Galeria Luis Maluf. “Não tinha ônibus para a Cidade Universitária, por exemplo. Esse é um jeito de mostrar que aquele lugar era distante. Se você mora ali e precisa, se vira. A rua é política em todos os aspectos.”
Pois é nas ruas da cidade que algumas das criações de Aline podem ser apreciadas, do Minhocão à fachada do CEU Campo Limpo. Na arte da capa do livro Torto Arado (Todavia), romance de Itamar Vieira Junior ambientado no interior da Bahia que venceu o prêmio Jabuti 2020 e ficou entre os livros mais vendidos por aqui no ano passado, muitas pessoas conheceram seus traços pela primeira vez. Ilustrando a coluna de Djamila Ribeiro no jornal Folha de S.Paulo toda semana, comemora a possibilidade de multiplicação das oportunidades de contato com o público. “Cursei artes visuais e fui bolsista. Preciso devolver isso para a sociedade”, diz Aline.
Tal vontade nasce de um entendimento profundo da função da arte num contexto maior. Uma frase de Nina Simone num documentário ficou gravada em sua memória. “O dever de um artista é o de refletir os tempos. Eu acho que é verdade para pintores, escultores, poetas, músicos… É escolha deles, mas eu escolho refletir os tempos e as situações em que me encontro. Para mim, é o meu dever. E nesse tempo crucial em nossas vidas, quando tudo é tão desesperador, quando todo dia é uma questão de sobrevivência, eu acho que é impossível você não se envolver”, declarou a cantora, compositora e ativista.
Sempre pensativa, Aline não sente a necessidade de ser imparcial — “ninguém é”, afirma —, nem tem respostas prontas para os dilemas que enfrentamos. No lugar, oferece perguntas. Na última edição da SP-Arte, por exemplo, apresentou peças que entrelaçavam lembranças e expectativas. “De criança, tenho a imagem das pessoas pintando a calçada de verde e amarelo, as unhas. É uma memória afetiva, de sair na rua e ter a bandeira do Brasil. Mas e hoje, o que essa bandeira significa? De quem é essa estética? Somos um país que passou por um processo político de embranquecimento, mas, ao mesmo tempo, há uma capacidade de burlar isso, modificar, dar uma abrasileirada em tudo. Então, a bandeira é o que a gente quer que seja”, dispara.
Sinto que temos caminhado há muitos anos para um desequilíbrio, não só no sentido de direita e esquerda, mas de ser um país tão grande, que produz tanta coisa, e tem gente passando fome
Para suscitar debates, a artista mexe também nas nossas raízes. “Quais são os povos que construíram esse lugar? Penso nos indígenas, nas pessoas que foram escravizadas, na minha família nordestina, no meu pai pedreiro, no quanto é necessária uma retomada. O que está acontecendo com a gente é muito triste. Esse país tem tanto a oferecer, é criativo em todos os lugares”, pontua. Com rostos sempre indefinidos, nos quais é possível que cada observador também se enxergue, Aline retomou a linguagem das fotos 3X4 dos presidentes.
Na obra Anônimo (2022), que estampa o centro da capa desta edição de CLAUDIA, trouxe a figura de uma mulher negra. “Pensei nesse lugar de retomada. Quem tem que presidir esse país? Quem vai chegar lá, quem não vai chegar? Pensei em vários anônimos e anônimas que estão fazendo a coisa acontecer e têm mais relevância do que muitos políticos.”
É no terreiro de umbanda, cercada pelas forças da natureza, bambuzais e locais divinos, onde Aline recebeu a nossa equipe para uma sessão de fotos, que a artista tem buscado reconhecer seu próprio lugar nessa teia. “Olho para a minha espiritualidade e para a minha ancestralidade, tudo que me compõe”, conta ela. “Nas religiões de matriz africana e de influência ameríndia, há o olhar de que o espiritual precisa ser levado para a vida prática. Esse é um valor que vem com a questão do respeito.”
Atenta às forças, aos mistérios e aos encantamentos que a rodeiam, Aline procura honrar o feminino: “É o lugar do cuidado, do acolhimento, pensando não só na figura da mulher, mas também do homem, que pode trabalhar seu lado feminino. Nós carregamos o nosso pai e a nossa mãe, temos que estar em equilíbrio de nossas energias. Não é sobre cada natureza se soprepor, mas sobre ficar equilibrado. Esse é o lugar da fartura e da festividade.”
O desdobramento, na prática, dessa linda cosmovisão vai ganhar forma na retomada de um projeto de educação com visitas guiadas a centros artísticos. “Muitas pessoas têm medo, não sabem que existe museu de graça. Quero levar essa pessoa para um lugar onde ela possa acessar. Fui achando minhas brechas mas quero abrir caminhos para que outros possam percorrer.” Sagrada arte política.