“A Dor”, de Marguerite Duras, é um intenso livro sobre memória
Publicação reúne textos sobre a experiência da autora durante a Segunda Guerra Mundial
É impossível sair ilesa das mãos de Marguerite Duras. Na sequência de publicações de suas obras no Brasil, temos a sorte de ter por aqui o livro A Dor (Bazar do Tempo, R$ 64). Apesar de soar pouco comum associar a fortuna do destino com algo que nos adoece física, emocional e mentalmente, é, sim, um privilégio poder ter contato com a reunião dos seis textos que a escritora francesa tece sobre a experiência durante a Segunda Guerra Mundial.
Misturando gêneros literários, como autoficção, memória e testemunho, Duras nos arrebata (conceito de Jacques Lacan para tratar de sua escrita) com trechos sensoriais e quase cinematográficos do horror dessa experiência – e todas as consequências disso. “A dor é uma das coisas mais importantes da minha vida. A palavra ‘escrita’ não seria apropriada. Me encontrei em frente a páginas regularmente preenchidas por uma pequena letra extraordinariamente regular e calma. Me encontrei face a uma desordem fenomenal do pensamento e do sentimento a qual eu não ouso abordar e diante da qual a literatura me envergonha.”
O primeiro texto, que dá nome ao livro, é o mais famoso e, por certo, visceral, porque remonta a ansiedade da própria autora na espera pelo então marido, capturado pelos policiais nazistas na ocupação da França e levado aos campos de concentração na Alemanha. Ao longo de 57 páginas, nos tornamos cúmplices de um testemunho honesto, que começa sem respiros e termina com um breve afago. Ela rememora todo o processo da ânsia de querer fazer alguma coisa para garantir a vida de seu companheiro, mesmo longe, sem notícias, num contexto tão extremo quanto o da guerra.
Escassez, falta, morte, abandono, devastação, vazio, silêncio. Tudo isso escrito da forma única que é a literatura de Marguerite Duras, que ainda traz para a mesa o papel da mulher numa época de extremos. Ela balança entre o incansável e o precipício sabendo que essa oscilação nos causará vertigem — e segue sem respiro, porque não há tempo. “Ele desapareceu, a fome está em seu lugar. O vazio, então, está em seu lugar. Ele dá ao abismo, preenche o que fora esvaziado, as entranhas descarnadas”, conta sobre a cena que presencia ao revê-lo em casa novamente, com dificuldades de comer.
Tal vazio também volta a se fazer presente no último e inédito texto, “O Horror de um Tal Amor”, traduzido por Laura Mascaro, autora também do posfácio. Nele, um poderoso relato pessoal da perda do seu primeiro filho faz ressoar no corpo sentimentos jamais imaginados. “A pele do meu ventre colava nas minhas costas de tanto que eu estava vazia”, escreve. Daqueles para sentir no peito. bazardotempo.com.br