A vida acontecendo tanto
Vamos caminhando pelo tempo enquanto habitamos corpos que não nos pertencem
Na minha coluna anterior para a revista CLAUDIA, contei um pouco da peregrinação que tenho vivido com o meu corpo nos últimos anos — em especial, nos últimos meses. Como numa dança errante, um pouco bonita, um pouco atrapalhada, estamos tentando nos entender. Eu, que em geral prefiro viver esses momentos de forma mais íntima, senti que era importante escrever sobre isso e compartilhar minha condição nebulosa e desafiadora com minha família, pessoas amigas e colegas de trabalho. Afinal, o que estou vivendo afeta as minhas leituras, a minha pesquisa acadêmica, os textos que escrevo e todas as outras atividades que fazem parte da minha vida pessoal e profissional: assistir e dar aulas, traduzir livros, seguir uma agenda de compromissos, de encontros, de momentos de lazer.
Acho que tenho feito o melhor que alcanço diante dessas limitações, sendo generosa comigo. Tento encontrar conforto nessas palavras, mas a verdade é que, num mundo desenhado para que a gente sempre se sinta insuficiente, tanto mais as mulheres, sinto que o esforço de que agora sou capaz ainda não é o bastante. Ainda: sei que estou longe de me dedicar aos meus afazeres diários, mesmo aos mais comezinhos, da forma que gostaria. Quantas cobranças são de fato externas e quantas não são introjetadas, quando atuamos como nossos piores carrascos? Não tenho a resposta, mas sei que estou em algum lugar nesse caminho.
Também é verdade que, nesse caminho, tenho encontrado mais conforto do que confronto. Como contei antes, essa fase tem me cercado de carinho e cuidado, de gestos de gentileza impensável. Então, não seria justo reclamar genericamente do ritmo acelerado do nosso tempo, que nos cobra em excesso: temos que ser mais preparadas, mais eficientes. Temos que ser e fazer muitas outras coisas, mas se esse estado me trouxe perdas importantes, também tenho me comovido com delicadezas e compreensões surpreendentes. Se colocar tudo numa balança com justiça, o que tem pesado bem mais é o afeto recebido e pelo qual me sinto afortunada — palavra pomposa, mas a mais sincera que me ocorre.
De todo modo, não quero escrever esse texto para falar apenas de algo que estou vivendo, da minha experiência pessoal com hospitais, exames, consultas, tratamentos e limitações. Se escolhi retomar esse tema é para tentar pensar em algo que compartilhamos e que, em momentos como esse, emerge como uma verdade incontestável: habitamos corpos que, em larga medida, não nos pertencem. Podemos ter alguma margem e autonomia, cuidar da alimentação, praticar atividades físicas, fazer o que está ao nosso alcance para garantir noites melhores de sono e seguir as recomendações médicas que recebemos. A lista de afazeres para a manutenção de um corpo sadio é bem extensa e dispendiosa.
No entanto, nada disso oferece garantia alguma. Não controlamos inteiramente nossos corpos, menos ainda nossos destinos vividos por eles. Podemos e devemos ter certo grau de agência e de implicação, de responsabilização, mas nossos corpos carregam partes obscuras, que às vezes enganam até mesmo máquinas sofisticadas, criadas para monitorá-los, para decifrá-los, para traduzi-los para uma linguagem que possamos ser minimamente capazes de entendê-los. Máquinas criadas para nos apresentar a eles: o que dizem meus olhos aos aparatos dos oftalmologistas que a mim contam tão mal? O que diz meu cérebro aos exames neurológicos, que de mim mesma esconde sem compaixão? O que diz o líquido cefalorraqueano, que acompanha esse adjetivo feio e pesado, sobre toda sorte de doenças que podem estar se instalando sorrateiramente em nós e nas pessoas que amamos?
Pensando numa dimensão meramente física e bioquímica aqui, o nosso corpo é um campo infinito e misterioso, um longo filme permeado de enigmas, ao qual assistimos a vida toda, um pouco como protagonistas, um pouco como observadores.
Como psicanalista, não consigo deixar de lado a dimensão psíquica que também integra nossos corpos, essa talvez um mistério ainda mais complexo. E, de novo, podemos fazer análise por anos, podemos nos implicar com integridade nesse processo e, ainda assim, como disse Sigmund Freud, não somos donos da nossa própria casa. Ou o “eu” não é proprietário exclusivo de sua morada. Há o inconsciente com quem dividimos o espaço, e que nos atravessa de diversas formas, embora o acessemos com dificuldade, sempre de modo fugidio, precário, inesperado.
Sabemos que a divisão entre esses corpos, o físico-bioquímico e o psíquico, é uma divisão meramente artificial, que talvez mais atrapalhe do que ajude, numa compreensão mínima que seja, de como é que toda essa engrenagem engenhosa funciona. Tudo se mistura: um sentimento que nos atravessa também é um código, como de uma programação, inscrito em quem somos nós, e que gera consequências concretas, materiais. Vendo de outro ângulo, o inverso também é verdade: o adoecimento do corpo traz consigo diversos afetos, e não apenas porque há um reconhecimento de nossa vulnerabilidade, de nossa precariedade. Escrevo a palavra “apenas” e dou um sorriso em seguida. Isso seria mais do que o bastante.
Algumas pessoas se perguntam o que viria antes, afinal: o ovo ou a galinha? É o corpo que vai mal e compromete o nosso estado psíquico, ou vice-versa? Muitas vezes, acho difícil encontrar uma resposta satisfatória para essa pergunta. O jeito é cuidar de ambas as partes, tentando integrá-las.
Mas me pego pensando em outras questões, que talvez sejam mais interessantes. Conforme a vida adulta avança, uma parte de nós, a que teve a sorte de ter uma infância relativamente saudável, que até então havia enfrentado adversidades administráveis ou viveu grandes desafios protegida pela família, pela ingenuidade e a bravura própria das crianças, em sua sensível consciência, mas também de seu incontornável desconhecimento do mundo por vir…
Pois bem, eu dizia, antes de divagar, que conforme a vida adulta se anuncia, ainda na adolescência, começamos a lidar com um corpo em constante “desmarginação”. Tomo a palavra emprestada da autora italiana Elena Ferrante, que a utiliza em sua tetralogia napolitana — “smarginatura” no original —, para pensar nesse estado de constante movimento e transformação de corpo e psique, embora nem sempre estejam em bons termos.
Desde que nascemos, bebês mais ou menos frágeis e indefesos, vamos nos transformando mês a mês de forma vertiginosa. Se observados de perto, poderíamos dizer que vamos nos transformando dia a dia, talvez em intervalos ainda menores. Mas é algo que, em geral, acontece como com as plantas: de repente, folhas pequeninas crescem frondosas, flores inexistentes apontam em botões, que se abrem escandalosamente. Como se em algum momento, elas dessem um salto que não acompanhamos, ao menos não em processo. E aí, de susto, nos damos conta, às vezes com alegria, muitas vezes com espanto, que a vida vai acontecendo no escuro.
Quanta coisa invisível se passa até que se torne visível para nós. Quanta coisa invisível acontece ainda que a gente acredite que está observando com presença, até mesmo com diligência, e que assim não estaríamos perdendo nada tão importante.
Na infância, a cada aniversário, nossos traços e características mudam: a altura, a textura dos cabelos e das peles que nos envolvem, algumas vezes até mesmo a cor dos olhos. Quanto à adolescência, nem me atrevo a começar: são tantos hormônios e estímulos internos e externos, uma intensidade de transformação assombrosa, que merece toda compaixão. Embora por vezes não seja fácil para quem está acompanhando. Mas uma hora, digamos que se tudo correr bem, chegamos à vida adulta. E aí temos a impressão de que, enfim, estamos formados. De que, enfim, sabemos um pouco melhor quem somos nós.
No entanto, as transformações ainda podem acontecer — e acontecem. De acordo com o momento, pode ser que o nosso peso oscile, ou que mudemos o corte de cabelo, que façamos alguma intervenção em nossos rostos e corpos, que seja no jeito de nos vestir, de nos apresentar ao mundo. Que sejam apenas coisas corriqueiras. Mas, ainda assim, há uma ilusão de estabilidade, de que, se tudo seguir seu curso sem intercorrências, agora conhecemos o que nosso código genético estava predestinado a ser. A pessoa que estávamos predestinadas a nos transformar, em seu auge.
Então, como a transformação é a única constante da vida, chega o processo de envelhecimento. Mesmo quem envelhece bem, e conheço muitas pessoas que o fazem — gosto muito de tê-las no meu radar, sinto que tenho tanto a aprender ao observá-las —, está tendo experiências que muitas vezes são classificadas e sentidas como perdas. Mesmo quem envelhece bem, em todos os aspectos, precisa lidar com um corpo cada vez mais vulnerável, não importa o quão forte e sadio continue sendo.
Estou há poucas semanas do meu aniversário. Vou fazer quarenta e três anos. Não é da minha natureza, ao menos não ainda, sofrer por essa data. Gosto de celebrá-la e costumo preferir dias calmos e contentes, que reservo para fazer minhas coisas preferidas, na medida do que estiver ao meu alcance. Já tive fases mais expansivas, em que adorava comemorar cercada das minhas pessoas queridas. Mas, há alguns anos, sinto vontade de passar essa data mais recolhida. Algo que não tento compreender, apenas sentir e respeitar. Sei que isso, como tudo mais, também pode voltar a ser como antes, ou ainda ser diferente de tudo que conheço. Mas, vivendo o que tenho vivido, e estando próxima dessa ocasião, não consigo escapar dessa reflexão, que escolho, não sem algum constrangimento, compartilhar aqui.
Perdemos colágeno, perdemos massa magra, perdemos massa óssea, alguns exames precisam ser refeitos em intervalos cada vez menores. A ideia de que somos finitos deixa de ser uma abstração no horizonte, se tornando uma espécie de sombra, ainda que leve, que está sempre nos acompanhando. Ter consciência da nossa mortalidade: que ferida narcísica.
Mas também, perdoem se o contraponto soa otimista demais, consigo ver beleza em tudo isso. Em um texto recente, que escrevi para a revista Quatro Cinco Um que, por coincidência deve ser publicado agora em maio, no mês do meu aniversário, faço uma analogia entre um livro que fala belamente da morte — um livro alemão muito sensível para pessoas de todas as idades chamado O pato, a morte e a tulipa, do escritor e ilustrador Wolf Erlbruch — que me faz pensar da celebração oriental do hanami, costume que há tempos admiro. Nessa ocasião, perdoem a simplificação, as pessoas no Japão contemplam a beleza do florescimento das árvores de cerejeira, com suas lindíssimas sakuras.
É uma contemplação algo ambivalente, já que as flores enfeitam o país por apenas alguns dias. Por isso, a alegria de sua chegada também acompanha o anúncio de sua partida. Ainda assim, mais do que a beleza das cerejeiras em flor, tenho a impressão de que a cultura japonesa parece celebrar a beleza da efemeridade. Uma ideia um pouco indigesta para a cultura ocidental, mas que poderia ser bem-vinda tanto para as flores como para nós.
Somos finitos. No meio tempo, o que experimentamos de bom e de ruim é o material de que é feito a vida. A vida acontecendo tanto.