Corpos femininos: uma análise sobre poder e controle
A cultura do estupro que assola nossa sociedade e as consequentes objetificação e desumanização das mulheres
Nas últimas semanas, nos deparamos com notícias que chocaram o país. Uma menina de apenas 10 anos, grávida em situação de violência sexual, teve seu direito ao aborto legal negado pela Justiça. Na ocasião da divulgação dos fatos, vimos parte da opinião pública rechaçar a criança por sua escolha, sob alegações de que a entrega para a adoção “deveria ser” o caminho mais adequado.
Paradoxalmente, dias após a sensacionalização da vida daquela criança, veio à tona outro caso paradigmático: uma jovem atriz igualmente engravidou após ter sido vítima de violência sexual e revelou ter decidido pela entrega voluntária da criança à adoção, procedimento resguardado pela lei brasileira. Infelizmente, surpresa alguma foi assistir à espetacularização das escolhas desta mulher, também vítima de violência sexual, repleta de novas violações aos seus direitos.
Esta semana, nos deparamos com mais um caso de violência sexual – dos mais repugnantes e indigestos. Uma mulher, grávida, foi sedada e estuprada pelo médico anestesista durante o parto de seu bebê.
O fato é que, nos dois primeiros casos, por qualquer ângulo que os analisemos, percebemos que o linchamento público que ambas as vítimas sofreram não tem como objeto o aborto legal ou a adoção, mas a manutenção da lógica de controle dos corpos femininos por dinâmicas de poder.
Em um exercício mental rápido, pense comigo: homens que abandonam materialmente e emocionalmente seus filhos recebem o mesmo tratamento dispensado às mulheres que buscam direitos legais para interromper uma gestação fruto da violência sexual? Não, a resposta é sempre não.
A naturalização do abandono paterno é, em tantos casos, vista como socialmente adequada pela mesma estrutura falocêntrica que reproduz a lógica de controle das escolhas das mulheres. As justificativas utilizadas são muitas e velhas conhecidas nossas, “aquela é interesseira, engravidou de propósito”, “não se preveniu e agora quer acabar com a vida desse homem”, “transaram apenas uma vez e ela logo engravidou”, “ele não escolheu ser pai”. Quantas vezes vimos falas como estas serem repetidas para justificar o injustificável? Quantos homens adultos continuarão a ser tratados como crianças, enquanto meninas violentadas são tratadas como adultas?
No último caso, voltamos à lógica do controle dos corpos femininos por homens que, nem mesmo durante o parto de uma criança, deitadas em cama cirúrgica, dentro de um Hospital, têm sua dignidade sexual preservada.
Em todos estes casos, o ponto de inflexão é o mesmo: a cultura do estupro que assola nossa sociedade e as consequentes objetificação e desumanização das mulheres. Para iniciarmos esta conversa, é preciso ter em mente a desigualdade de tratamento existente entre homens e mulheres.
Até 1830, a legislação penal brasileira permitia que homens matassem suas esposas se suspeitassem de traição extraconjugal. A mesma previsão não existia para os homens.
Posteriormente, outro diploma legal afastou a permissão de que maridos tirassem a vida de suas esposas por mera suspeita de traição, mas manteve a criminalização do adultério praticado por mulheres com previsão de pena de “trabalho por um a três anos”.
Já em 1890, sobre o crime de estupro, presumia-se a prática do crime quando a vítima era menor de 16 anos, com exceção das prostitutas que, mesmo abaixo dos 16 anos, deveriam suportar o estupro, como se meros corpos disponíveis para satisfação dos homens fossem.
Em 1940, o Código Penal, ao tratar do estupro, previa que na hipótese do estuprador se casar com a vítima, estaria extinta a sua punibilidade, ou seja, não seria atribuída pena alguma ao agressor – bastando que contribuísse para que aquela mulher violentada cumprisse o único papel social imposto e disposto às mulheres: serem esposas e mães. Vale ressaltar que essa disposição deixou de existir apenas em 2005.
Por mais que todas essas previsões legislativas nos pareçam retratar uma sociedade distópica e distante da nossa realidade atual, o pensamento social que as legitimou permaneceu vivo por gerações, marcando as vidas de nossas ancestrais. Deixam, também, uma provocação: o quão distante, de fato, estamos deste cenário de distopia em que as mulheres, seus corpos e escolhas são controlados por homens?
Se hoje gozamos de mais autonomia para decidir sobre as nossas vidas, devemos permanecer vigilantes, pois o controle sobre os corpos femininos é brutal, histórico e fruto de complexo contexto cultural, que será objeto de mais debates nesta coluna.
Por hoje, cabe a reflexão: a mulher que hoje é julgada por exercer direito legal, amanhã, poderá ser você, cara leitora. A mulher que hoje é estuprada durante o parto, poderia ser sua filha, sua irmã, sua mãe. Se algumas pessoas enfrentam resistência em reconhecer a desumanização das mulheres nestes casos, um exercício simples é colocar-se no lugar do outro. Especificamente, da outra. Elas, hoje. Amanhã, não se sabe.