Reforma na alma
Lembranças em cascata e avalanches de passados me invadiram feito fantasmas insolentes
Já passaram por uma obra de despedida? Obra mesmo. Pedreiro, pintor, bombeiro são meus novos parceiros de vida. Estou desmontando o apartamento da minha mãe, onde eu nasci e onde residem todas as minhas lembranças de outrora. É tipo navalha na carne. Ó metade de mim, ó metade arrancada de mim.
Ela está no processo de demência e agora mora comigo. O imóvel onde ela viveu por 60 anos ininterruptos está irreconhecível. Além da nova pintura, troca de aquecedores e canos, mexi em tudo. Abri todos os armários, gavetas, cantinhos. A cada enfiada de mão, uma emoção explodia no peito. Lembranças em cascata, avalanches de passados me invadiam feito fantasmas insolentes. Sem pedir licença. Brotavam do nada e me marcavam com lágrimas e paralisias do tempo.
É louco esse inventário dos anos, esse elencar de fatos e atos. Quase um arquivo de cicatrizes ainda vivas. Não sei qual será o saldo dessa minha atitude. Já pensei em vender o apartamento, alugar e até voltar a morar nele. Será uma ironia se a próxima moradora for alguém que conheça cada pastilha, azulejo, dobradiça, rejunte daquele antigo apartamento que hoje mais parece um vale assombrado de muitas dores e algumas maravilhosa alegrias.
Passei a olhar com ternura até para os meus tropeços. Ali eu andei, brinquei, estudei, namorei, casei, procriei, separei, chorei. Ali minhas filhas nasceram. Ali meu pai morreu. Ali minha mãe adoeceu. Chorei potes e ainda choro. Ao escrever essa coluna desaguo como uma cascata em looping. Chora Kika. Chora. Com essas lágrimas, tenho certeza que vou preparar a nova argamassa para recomeçar o meu futuro. Que seja espaçoso, claro e belo. Como uma linda matéria sobre arquitetura e construção. Sinto que sou o tijolo dessa nova obra. Coragem. Coragem. É isso que a vida pede de nós.