Horizonte
"Só besteira que ouvi dela a vida inteira, que a gente não precisava de tanta coisa nem de dinheiro, só de amigos", escreve Maria Valéria Rezende
O menino, largado no sofá, olhos mortiços de enfado, polegares inquietos no smartphone, parece ausente. Volta com a voz raivosa do pai:
– E você nem liga! Eu aqui preocupado com sua avó, sozinha lá no sítio. Diz que torceu um pé, mas sai de casa o tempo todo pra carregar aqueles livros e ler pros matutos, com a teimosia de não ter celular. E agora o meu travou também. Você nem liga, não liga pra nada! Menos de um ano pra acabar o colégio e nem resolve pra que faculdade vai, se quer ir estudar fora do país, que carreira quer, afinal! É como se eu tivesse duas crianças pequenas pra cuidar. Pago um colégio caríssimo pra você, e você não põe o foco em nada! E minha mãe com aquela utopia dela!
– Como é a utopia dela, pai?
– Só besteira que ouvi dela a vida inteira e me dava uma raiva danada: que a gente não precisava de tanta coisa nem de dinheiro, só de amigos verdadeiros e ideais fortes na vida, dar amor ao próximo que voltava em dobro, só verdura e fruta da horta, e livro, livro, livro, e arte, poesia, música… que o mundo já sofreu demais com as divisões e guerras, que o capitalismo, a competição, o consumismo e a corrupção − pra ela, tudo que agilize os negócios é corrupção – destroem a vida de todos. Que só tem sentido a vida se for pra se dedicar a construir igualdade e harmonia e acabar com preconceitos, diferenças, privilégios… Enfim, essas coisas de sonhadores sem noção. Diz que tudo é possível se todos acreditarem, se dedicarem e se derem as mãos, dividirem tudo por igual. Essas coisas de hippie, de comunista, de sei lá o quê… Tudo fora da realidade, maluquice. Se eu tivesse ido pela cabeça dela, e meu pai não tivesse largado disso e dela, você estaria só comendo macaxeira com rapadura lá na roça. Eu pergunto cadê a sua utopia, mãe, que não chega nunca? E ela ri dizendo que um fulano disse que o outro disse que a utopia é um horizonte, você caminha pra ele e ele vai se afastando, serve pra fazer a gente caminhar sempre para diante… Caminhar pra frente no mesmo andar; eu, hein? Tem é que focar numa carreira e subir degraus, um atrás do outro, de dois em dois, de três em três, se for possível, ser competitivo, rapaz, competitividade sem trégua, meu filho. Essa é a realidade e o que vale a pena. Veja agora o meu patrimônio, é um elevador pronto pra botar você num andar bem alto, se você se importar… Mas você parece que não quer nada da vida! E agora esta porcaria de celular também travado, feito você.
Os olhos negros do menino, agora bem abertos. A mão morena agarra o celular novo largado no sofá e estende-se para o pai.
– Fique com ele, pai. Ganhei de prêmio no colégio pela melhor nota no simulado de vestibular. Tenho o velho. Pode ficar, não preciso. Mil vezes mais rápido que esse seu aí. Só me dê em troca um dinheiro a mais pra eu ir passar o feriadão com minha avó, lá no sítio.
Agora o menino desligou o ar-condicionado do quarto, abriu as janelas, 30º andar, nem se importa com a ventania do Atlântico a desordenar tudo o que tem acumulado. Cotovelos apoiados no beiral, palmas tapando os ouvidos, dedos finos mergulhados na cabeleira crespa, mira o horizonte, faixa de mar, faixa de céu, logo ali. O futuro muito mais longo e desejável então. É o que interessa, pela primeira vez. O feriadão começa daqui a três dias.
Maria Valéria Rezende ganhou os prêmios Jabuti de melhor livro com Quarenta Dias (Alfaguara), o Casa de las Américas e o São Paulo de Literatura com Outros Cantos (Alfaguara)
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