Carta para minha mãe
"Fiquei órfã mais uma vez, e a única saída que encontro agora é te escrever”, desabafa Leila Ferreira em carta para sua mãe
Só hoje, mãe, tive coragem de ler a carta que você deixou para que eu abrisse depois de sua morte. Só agora, quatro anos depois, senti que estava pronta. Fiz um café do jeito que você amava (afinal, nunca conversávamos sem um café recém-coado por perto), coloquei uma jarra com gérberas junto ao porta-retratos em que seu sorriso ficou guardado (além do café, compartilhávamos a paixão por flores) e tirei da gaveta o envelope que durante tanto tempo armazenou suas palavras. Mas, ao contrário do que imaginei, eu não estava preparada. Ao ouvir, mais do que ler, sua carta – a suavidade da sua voz pontuando cada frase –, eu me dei conta da enormidade da sua ausência. Da falta que você me faz. Fiquei órfã mais uma vez, e a única saída que encontro agora é te escrever.
Você começa sua carta se desculpando – e pede desculpas até o final. Desculpas por quê, mãe? Por amar da forma como me amou? Você diz que me sufocou com seu amor. Que projetou em mim os seus sonhos e frustrações. Quis que eu tivesse o casamento que você não teve, a felicidade que você não teve, a tranquilidade que faltou na sua vida… você quis muito para mim. Aliás, tem uma frase na sua carta que resume tudo: “Eu sempre me contentei com o essencial, mas para você eu quis também o supérfluo”. Você tentou me poupar, se interpor entre o sofrimento e eu, e nem sempre conseguiu. Em primeiro lugar, porque há sofrimentos que são inevitáveis, por menos que uma mãe os queira para os filhos. Em segundo lugar, porque muitas vezes eu escolhi sofrer: fiz escolhas que me custaram caro, mas eram minhas escolhas. Se eu seguisse sempre o que você escolhia para mim, eu não teria me fortalecido. E eu tinha que ser forte. Inclusive para protegê-la.
O que gostaria de te dizer agora é que não há o que perdoar. Por mais que sua “preocupação obsessiva” em me ver feliz (suas palavras) me sufocasse às vezes, o que ficou da nossa convivência foi a imensidão do amor que sempre sentimos uma pela outra. Um amor que tropeçava, cometia excessos e erros, mas jamais deixou de ser amor. E eu aprendi tanto com você… Quando você chegava em casa depois de dar aulas o dia todo para criar seis filhos sozinha, ignorava o cansaço para se sentar conosco ao lado do fogão a lenha, nos fazendo rir e sonhar com suas histórias, você me ensinava a importância das conversas amorosas. Talvez o maior presente que uma mãe possa dar aos filhos. Quando conversávamos, eu ainda criança, e você falava de coisas sérias, me tratando como adulta, estava mostrando o respeito que tinha por mim, e me ensinando a me respeitar. Quando me incentivou a me associar à biblioteca e a tirar livros em meu nome aos 12 anos, você fez nascer em mim o gosto pela literatura. E, quando deixava bilhetes e poemas na minha cama, principalmente quando eu estava triste, me ensinava a encontrar conforto nas palavras (que é o que faço agora).
Tantas coisas eu aprendi com você… E quando você envelheceu, e eu me vi no papel de mãe, cuidando de você como se fosse minha filha, continuei aprendendo. Você foi silenciando aos poucos, me entregando aos poucos o corpo frágil sobre o qual já não tinha domínio. Mas seu olhar me acompanhava com o mesmo amor infinito. E me ensinava a ser generosa, paciente com seus limites, e a imaginar com coragem um futuro em que você não existiria.
Agora olho, mais uma vez, sua carta escrita com letra trêmula. E avisto seu sorriso na foto. Ele me protege. Acho que vou coar o café que tomávamos juntas, mãe. Sei que você me ouve (ou me lê) neste momento. Sinto – e sei – que está comigo.
Sua filha.
Leila Ferreira é escritora e acaba de lançar O Amor Que Sinto Agora (Planeta). É autora também de Viver Não Dói (Principium/Globo Livros)
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