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Coluna da Liliane Prata

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Essas pessoas que largam tudo

"Pela primeira vez, eu fui uma dessas pessoas que topam largar tudo por amor"

Por Liliane Prata Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 13 abr 2017, 19h51 - Publicado em 13 abr 2017, 18h27
Cena do filme "Carol" (Divulgação/Divulgação)
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Ele sempre me zoava porque sou de humanas. Há vinte anos, ele tinha acabado de entrar no curso de ciências da computação e eu, que só tinha dezesseis, ainda nem era de humanas, mas ele já me zoava: era só eu ouvir Marisa Monte, fazer um curso de artesanato ou um desabafo qualquer por carta. Ele ria quando eu me atrapalhava com alguma conta, eu me vingava quando ele sofria para escrever o texto mais simples. Eu invejava sua ausência de dilemas amorosos, ele se espantava com os meus – e seus conselhos eram abreviados com um “para de brigar com esse cara” ou “larga esse cara”. Eu admirava sua objetividade, sua maturidade, sua responsabilidade; ele admirava minhas divagações, minha intensidade e meus rompantes desajuizados. Ele foi prestar concurso público para bancar o estilo de vida que amava, eu fui fazer o que amava e me virar com o estilo de vida que desse para ter. Quando me mudei para São Paulo, o comentário dele foi: você é uma dessas pessoas que largam tudo sem muito apego, eu não sou assim. Sorri, ele sorriu, perdemos contato.

Há algumas semanas, quando nos reencontramos para um café, ele me pareceu como sempre um cara de exatas. Ao mesmo tempo, estava mais perdido do que nunca – talvez pela primeira vez. Depois de tantas histórias de amor, algumas marcantes, outras caídas no esquecimento, eu estava sozinha e sentindo-me mais lúcida do que antes, enquanto ele, depois de tantos anos de lucidez, desaprendia um pouco sua objetividade. Ele tinha se apaixonado. Ali, aos quarenta anos, pela primeira vez.

O relacionamento durou apenas dois meses, ele me contou, num tom de quem narra uma ruína financeira, um acidente repleto de vítimas, uma doença terminal. Os olhos, como no romance de Kawabata, eram pura beleza e tristeza.

A gente sabia que ela logo iria se mudar para Barcelona, ele continuou. A gente também sabia que ela ainda não tinha terminado totalmente seu casamento, eles estavam separados, mas não totalmente… É complicado.

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Sim, é complicado.

E aí eu fui uma dessas pessoas que topam largar tudo, Lili, ele me disse. Pela primeira vez, eu fui uma dessas pessoas que largam tudo por amor: eu, que comprei meu apartamento na planta, eu, que visitava a obra toda semana para ver como ela estava, agora eu estava lá, tentando vender o apartamento por um preço abaixo do mercado e feliz, felizão, sabe? Eu ia pedir a exoneração do meu cargo, o cargo que consegui depois de quatro anos estudando que nem um louco, eu ia deixar minha cidade, meus amigos, meu plano de fazer uma pós… Tudo para ir com ela. Não fazia o menor sentido e, ao mesmo tempo, fazia sentido como nunca.

E então?, perguntei.

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E então a gente saiu pra jantar, e então a gente fez planos, e aquela noite foi… Eu não vou falar daquela noite, eu preciso esquecer aquela noite, eu só vou falar que foi uma noite ótima. Mas aí uns dias depois ela falou ei, espera um pouco, vamos conversar, e aí ela começou a falar a cada hora uma coisa, sabe, primeiro veio falar sobre o marido, ela sempre falava ex-marido, mas agora era falava marido, então ela falou em ficar sozinha, até agora não entendi essa parte, mas comecei a entender que ela não me amava, só pode ser isso, não é? Faz pouquíssimo tempo que eu comecei a entender isso, na verdade não sei se entendi, eu pensei isso pela primeira vez anteontem, quando me deu um estalo de madrugada: ela não me ama. Ou você acha que tem alguma chance de ela me amar? Eu fico relendo nossas mensagens, eu fico vendo as fotos dela, e aí eu não sei se fico na minha ou se insisto, vou ser sincero, faz três dias que eu mandei uma mensagem pra ela falando de novo que eu realmente posso ir para lá no dia que for, está tudo certo, eu posso ir…

E ela?, eu quis saber.

Ela não respondeu. Ela sempre respondia, eu não consigo entender por que ela não respondeu, eu não mudei com ela, será que eu mudei? Será que eu fiz algo errado? Ontem, dirigindo, eu pensei: sério, que curva foi essa que eu não vi? Sabe, Lili, eu me sinto ridículo te contando tudo isso, eu me ouço contando e soa tão banal, só que não é banal, é tipo tudo o que eu tenho hoje.

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Não tem nada de banal. Quando ela vai?

Ela já foi.

*

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Nos encontramos anteontem, em um bar. Ele seguia sem notícias dela, ou quase isso: para o mundo, ela aparecia em fotos dessas cheias de cores, dentes, paisagens, cappuccinos. Para ele, só a notícia maior, a certeza que foi se revelando aos poucos, mas com a precisão de uma agulhada – ele não era amado.

Mais uma história de amor que se transformava em desamor, uma mudança sempre veloz, insensível e inalcançável para a parte que jaz na permanência do sentimento.

Ali, no bar, do alto do meu coração em paz, chegou a ser medonho olhar para baixo e ver isso a que chamamos de história de amor.

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É uma coisa muito… Não sei o que é, ele disse. Como pode um negócio doer tanto?

Negócios doem menos, eu disse. E, já que você virou uma pessoa dessas que largam tudo, pega toda a seriedade que você sempre teve e tenta aprender uma coisa que eu vou te falar agora: as pessoas que topam largar tudo dominam a arte de largar tudo por amor. O que elas nem sempre sabem é largar tudo por falta de amor.

Terminamos a noite brindando a ela: não à mulher que não o ama, mas a essa aprendizagem difícil para quem é de humanas, para quem é exatas, biológicas, para quem nunca pisou em uma faculdade, para todos nós. Como toda aprendizagem, a aceitação da falta de amor é repleta de beleza e de tristeza.

Liliane Prata é editora de comportamento de CLAUDIA  e escreve semanalmente aqui no site. Para falar com ela, mande um e-mail para liliane.prata@abril.com.br

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