“Preciso curar meu feminino”
Sagrado Feminino despolitizado e ‘esbranquecido’ exclui mulheres racializadas e reforça estereótipos
Esta é uma frase bastante comum para as mulheres que decidiram desbravar os caminhos da espiritualidade e do autoconhecimento. E comigo não foi diferente.
Logo de cara, por eu ser uma mulher forte, decidida, independente, de fala grossa e cabelos curtos, estava “evidente” que eu vibrava mais na tal energia masculina.
Perdi as contas de quantas vezes tive minha orientação sexual questionada por causa da minha aparência e comportamento naquela época. E cheguei a me questionar como um homem se relacionaria comigo, tendo eu uma personalidade esperada de alguém do gênero masculino. Então, entrei, naturalmente, no jogo.
Passei a me feminilizar. Meus cabelos cresceram e numa insana epifania assumi um lado mais compreensivo e passivo diante das presepadas dos homens, afinal, “homem é assim mesmo.”
Achei que eu quisesse vislumbrar um relacionamento duradouro e “equilibrado”, eu precisava ser o que era esperado de uma mulher, senão, minha punição seria a solidão. Preço que, naquele momento, eu ainda não estava disposta a pagar.
Foi então que os estudos se aprofundaram e notei que havia uma confusão imensa entre feminino e feminilidade. Comecei a me questionar sobre o tornava as mulheres “mais mulher” e como isso afetava de forma diferente as mulheres dependendo do grupo social que elas faziam parte.
Foi então que compreendi a grande enrascada do Sagrado Feminino que eu estava acessando e consumindo em forma de conteúdo ou vivências, que são amplamente anunciadas nas redes sociais com apelos para as deusas de diversos panteões e ritos ditos com ancestrais que convergiam num único propósito: [supostamente] reconectar as mulheres ao seu feminino.
Porém, basta notar que existe um estereótipo da mulher que diz que curou esse feminino e, geralmente, ele está diretamente conectado com a feminilidade.
É a hora que o patriarcado coloca saia, reúne, principalmente, mulheres brancas e cheias de privilégios e oportunidades para dançar para Lua em volta da fogueira, sequestra saberes ancestrais, despolitiza a luta por emancipação e fantasia energias polarizadas com base em gênero, tornando as mulheres que dizem cultuar o Sagrado Feminino em cúmplices de um sistema extremamente opressor, principalmente para as mulheres racializadas.
Neste mês da Consciência Negra, CLAUDIA reuniu duas mulheres pretas e uma mestiça, donas dos projetos Vulva Negra, Sagrado Feminino Periférico e Yoni das Pretas, para contarem como esse Sagrado Feminino new age de alta performance afeta as mulheres que estão na base da sociedade e reforça discursos racistas, classistas e violentos.
“Mulheres não nascem femininas”
– Yasmin Morais, dona do projeto Vulga Negra e autora do livro Romãs Incandescentes no Inverno
“Penso que uma das grandes problemáticas de um culto religioso, espiritual e até mesmo do Sagrado Feminino é não estar associado às perspectivas políticas de emancipação das mulheres.
Eu compreendo que há algo chamado feminilidade e que a feminilidade como a conhecemos é um conjunto de regras, normas, estereótipos e comportamentos sociais que são esperados da mulher. Compreendo também que a feminilidade não é inata, mulheres não nascem femininas, passamos por um processo social de feminilização que é quando aprendemos como a sociedade patriarcal deseja que nós nos comportemos. E isso varia de cultura, mas a finalidade é a mesma: controlar, limitar e evitar a emancipação da mulher.
Então, muitos problemas desses ciclos de Sagrado Feminino, por não terem um conhecimento político da luta de emancipação das mulheres, acabam agindo como se a feminilidade fosse, na verdade, aquilo que de fato a mulher é. Existe uma feminilidade patriarcal, que é a feminilidade de submissão, de passividade, de infantilização, que é a favor das mulheres em espaços pequenos e que sempre recebem algo de alguém, e existe a força que emana do feminino, que é forte, criativa, expansiva e poderosa. Porém, quem não segue esse conjunto de estereótipos é punida e a vida fica mais difícil.
Quando entra a questão racial isso se agrava numa sociedade patriarcal e racista. No processo de colonização, mulheres negras sequer eram consideradas seres humanos. Se tínhamos mulheres caucasianas que não tinham seu reconhecimento, mulheres negras eram desumanizadas. Por isso, passamos por profundas objetificações e estupros.
O Sagrado da mulher negra é permeado por muito mais violações e por questões abusivas que dificultam essa reconexão. Os orixás, por exemplo, são vistas como demônios na cultura cristã. Isso torna tudo mais difícil para a mulher negra se reconectar com os arquétipos sagrados que são da sua cultura ancestral, principalmente quando notamos que a maioria das mulheres evangélicas são negras.
Então, a questão racial torna a experiência espiritual da mulher negra ainda mais difícil e espinhosa.
Esses espaços de vivência espiritual precisam ser democratizados com discursos politizados a respeito do racismo, de ações antirracistas, combate à afromisoginia, apoio às mulheres indígenas. A espiritualidade nunca esteve separada da vivência social e a vivência social é indiscutivelmente política. Então, quem tem mais tempo, dinheiro e espaço para ser escutado na sociedade e se quiser de fato ver uma transformação social, deve se posicionar de forma alinhada com essas comunidades.”
“Esse papo de energia feminina e masculina é uma fantasia”
– Letícia Nascimento, dona do projeto Sagrado Feminino Periférico
A perspectiva de quem é racializado se aproxima muito mais da realidade, porque a gente está lidando todos os dias com ela. É diferente da perspectiva de Sagrado, de espiritualidade e de religião de quem está no topo dos seus privilégios, que pode ignorar o que está ao redor e pode fazer um Sagrado fantasioso, que descola da realidade.
No meu caso, quanto mais eu mergulhava nos estudos do Sagrado, mais eu mergulhava na minha realidade material, então, o Sagrado para mim é a vida. Eu não desassocio espiritualidade de materialidade. Sagrado é dois pés no chão e encarar a realidade de frente, sem fuga, sem fantasia.
Enquanto as mulheres brancas estão falando de energia masculina e feminina, as mulheres pretas estão no corre do dia a dia para ganhar dinheiro e comprar comida, mas elas são impactadas por esses discursos de masculinidade e feminilidade.
Sou uma mulher mestiça, que não sou muito feminina e, por isso, sou preterida. A mulher preta, que não tem a beleza padrão europeia, e que não é feminina, não ganha afeto. E isso também é reflexo dessa fantasia sobre energia feminina e masculina.
Mulheres assertivas, fortes, que correm atrás e fazem as coisas acontecerem estão se sentindo mal, como se elas estivessem quebradas, precisando de conserto. Então, esse lance de energia feminina e masculina é um grande equívoco. Isso é um Sagrado Feminino que serve aos homens. Se precisa ensinar as mulheres a serem femininas, então não é algo natural.
As mulheres que estão na base precisam ser ouvidas. Não adianta as mulheres brancas darem uma vaga social para ficar falando baboseiras sobre feminilidade e coisas que não fazem nenhum sentido para uma mulher preta e nem para a maioria das mulheres, porque as [mulheres] privilegiadas são minoria. Precisa convidar para falar, precisa aprender a ouvir. Tem muita mulher preta e mestiça que está ensinando.
Sagrado Feminino é sobre uma proposta de superação das religiões patriarcais, é como uma religião mesmo, que ofereça a todas as mulheres novos paradigmas, simbólico e espiritual.”
“Mulheres brancas precisam trair a colonialidade e o patriarcado”
– Caroline Amanda Borges, dona do projeto Yoni das Pretas
Tudo que compõe o ser humano é sagrado. Mas a dimensão feminina é uma limitação ocidental. Eu acredito em matriarcado social, cultural e espiritual que antecede a denominação do conceito de feminino e feminilidade. O meu ponto de partida está na minha gênese, que é afroreferenciada, que traz conceitos de matripotência, matrigestão, que não se trata só de reprodução da vida do ponto de vista biológico, mas da manutenção da vida do ponto de vista estrutural.
Diante de tudo que está acontecendo, primeiro, eu tenho muita raiva, porque entendo que as mulheres brancas são cúmplices de todo empreendimento colonial que é orientado por uma diretriz patriarcal. Essas mulheres têm sido cumplices tanto do estupro da terra através do extrativismo, pensando em cacau, em ayahuasca e nas ervas mestras que têm sido vilipendiadas para a manutenção de uma fantasia da branquitude.
Passando a sensação de raiva, eu entendo que isso não é sustentável. Essas mulheres até ascendem, enriquecem, mas não se sustentam, porque o poder da natureza e do fenômeno natural é maior do que qualquer ideologia. Eu não dou conta de parar a branquitude, mas a natureza dá.
Essas mulheres estão criando uma performance de sacralidade de um feminino e todo mundo está pagando por uma experiência performática que descredibiliza a potência do matriarcado e da natureza.
O que me deixa contente é que esse Sagrado Feminino tem pouca capilaridade entre as mulheres negras, porque a gente reconhece essas tecnologias ancestrais como algo que nos trouxe com vida até aqui. Quem viveu longe da planta, da terra, do ar e da água foram vocês, urbanas, protegidas por inúmeras institucionalidades. Vocês que estão achando o máximo nadar pelada. Isso é inédito para quem? Então, não cola.
Fora as mulheres que se apropriam das tecnologias ancestrais de cura e acham que estão resgatando esse saber para ele não morrer. Se esses saberes não morreram até hoje, por que essas mulheres acham que eles vão morrer se elas não falarem sobre eles?
É fundamental que as mulheres brancas, que são confluentes (não basta ser aliadas) às causas, não só antirracistas, mas prol natureza, que elas traiam a colonialidade e o patriarcado, reconhecendo a sacralidade de toda e qualquer vida como recíproca e ressonante da sua própria existência.