‘The Crown’: uma 5ª temporada importante e inteligente
A proximidade do tempo coloca a série da Netflix no fogo cruzado dos especialistas de Família Real, mas, em geral, dribla as principais armadilhas
Peter Morgan certamente é um dos maiores especialistas de Família Real da atualidade, tendo feito o oscarizado filme A Rainha, em 2007, e, desde novembro de 2016, brilhando com a premiada The Crown. Com uma proposta de cobrir a trajetória da Rainha mais longeva da história britânica, o showrunner conseguiu a cada temporada resgatar os fatos marcantes de cinco décadas das sete que Elizabeth II esteve no trono, porém, com a proximidade dos dias atuais, está cada dia mais visado. A 5ª temporada, disponibilizada na Netflix desde o dia 09, teve um hiato maior forçado pela pandemia, sendo lançado pouco depois da morte da soberana e em uma fase sensível para Monarquia. Tudo isso colabora para uma antecipação e crítica ainda mais severa à série, mas já alerto aos preocupados: é bobagem, segue excelente.
Com toda crise familiar dos Windsors nos últimos dois anos, o drama que começa a ser retratado em The Crown pode parecer pequeno, mas é a semente do que estamos acompanhando hoje, por isso tanto incômodo. Se nas temporadas iniciais havia poucos que pudessem dizer “lembro disso”, desde a 3ª há uma geração (a X) que conviveu com muito do que a série mostra e, nas palavras mais adequadas da Rainha, “as lembranças podem variar”. Nas redes sociais binárias, os defensores de Meghan Markle e Príncipe Harry argumentam o que os partidários da Família Real gritam: a série não é um documentário, mas não se iludam, mesmo ficcionalizando a verdade, está bem perto do que se considera fato real. Peter Morgan tem um vasto material de livros, entrevistas e fotos para se basear e o que vem mostrando está dentro do que se pode argumentar como sendo fiel. Essa narrativa é um dos charmes da franquia.
É difícil falar da temporada e uma série biográfica e evitar spoilers, mas fica o combinado: os fatos são conhecidos e fáceis de achar com um Google, portanto, evitarei mencionar as liberdades artísticas tomadas para recontá-los. Tínhamos deixado a série com uma Princesa Diana desiludida com a farsa de seu casamento e a reencontramos mais madura, mas ainda isolada e sofrendo, com Elizabeth II lidando com os finais dos casamentos de dois outros filhos (Anne e Andrew), assim como uma crise no seu próprio. A série passeia menos em questões políticas e econômicas dos anos 1990, centrando nas relações familiares. O que é, paradoxalmente, mais perigoso.
A reconstituição histórica de The Crown continua perfeita (e a raiz para a confusão de “não ser documentário”), com uma Elizabeth Debicki assustadoramente “i-gual” à Diana. Os fatos revivem são bem selecionados e significativos, mas, assim como na realidade, queremos mais a Princesa e menos a Rainha, e sentimos falta quando Diana não está em cena. A 5ª temporada marcou uma nova mudança de elenco e gerou ansiedade para os fãs, infelizmente, justificadas. Parte do elenco está personificando e outra parte, interpretando. Enquanto Olivia Williams e Elizabeth Debicki, “são” Camilla Parker-Bowles e Diana, Dominic West, Imelda Stauton e Jonathan Pryce “representam” Charles, Elizabeth II e Philip, o que nos engaja menos do que elas. Para Dominic, preencher o espaço do premiado Josh O’Connor era mais difícil, sabíamos. O jovem ator tinha trazido uma vulnerabilidade que o público pró-Diana não esperava, e, mesmo quando se transformou em um homem frustrado e cruel com a esposa, tinha uma certa simpatia. Já Dominic, que optou perigosamente de se afastar de qualquer imitação do verdadeiro Charles, destoa. Para Imelda é igualmente difícil, porque nessa temporada a Rainha é mais criticada do que nunca por sua atitude fria e distante como soberana e mãe. Mesmo que sofra em silêncio, sua passividade a deixa distante inclusive do público. Claro que isso é intencional na série, mas a atriz ainda não teve a dimensão que Claire Foy ou Olivia Colman trouxeram para o papel.
Peter Morgan nos apresenta um Charles lutando para antecipar sua coroação, firme, crítico e diferente de sua família alienada. Para um público que sabe que o período da história foi o pior em relação a ele, é uma surpresa como é retratado.
Em outras palavras, é uma versão simpática dentro do possível para o atual Rei. Considerando que a série foi escrita e gravada antes da morte da Rainha, não se pode dizer que o showrunner tenha feito a escolha porque as posições mudaram.
Em geral, concordo com a visão que Peter Morgan nos apresenta da Família Real britânica. Ele consegue contextualizar personalidades complexas e verdadeiras, quase sempre desagradando os dois lados – o que o deixa mais perto da isenção. Me irrita quando “editorializa” alguns diálogos, colocando na boca deles o recado que quer nos passar, mas entendo a necessidade de ser didático para que um público maior acompanhe os fatos. Talvez tenha exagerado a frequência que precisou do subterfúgio? A mesma reclamação se dirige às metáforas, gritando na tela, perdem a força quando ficam óbvias demais.
Se já leu que os episódios sobre Mohamed Al-Fayed e os bastidores da infame entrevista de Diana para BBC são os pontos altos da temporada, pode confiar. São emocionantes e tensos, mais do que o próprio drama dos Windsors. A conclusão fica no ar, mas isso porque a 6ª temporada já esteja sendo gravada. Sei que querem transformar The Crown em documentário, mas hoje é o melhor “reality ficção” das plataformas. Continua ímpar em sua posição.