Os 75 anos de um filme perfeito: “Os Sapatinhos Vermelhos”
Um dos maiores clássicos do cinema pós-guerra fez de Moira Shearer uma estrela e é copiado até hoje por vários cineastas em todo o mundo
Os Sapatinhos Vermelhos é um dos filmes mais marcantes já feitos no cinema e não veio de Hollywood, mas da Inglaterra. Embora seja frequentemente mencionado como um filme “sobre balé” é muito mais do que isso. Inspirou obras tão distintas como Halloween, Touro Indomável ou Cisne Negro. Em 2023, completa 75 anos de lançamento e continua inovador e inspirador. Sou uma das maiores fãs da obra (já incluí em diferentes matérias e colunas em CLAUDIA) e não tenho má companhia. Martin Scorcese é tão apaixonado por ele que o restaurou e estudou profundamente. Tendo uma personagem tão fascinante como Victoria Page (Moira Shearer) no coração da trama, vale a nossa viagem nostálgica sobre esse clássico.
A semente para o filme nasceu em 1934, quando o empresário Alexander Corda queria transportar a tumultuada vida de Vaslav Nijinsky para as telas. Como ele queria que sua namorada, a atriz Merle Oberon fosse a estrela, mesmo que ela não fosse bailarina (usariam dublês), a produção começou a trabalhar no projeto, que foi pausado durante a Guerra. Em 1948, Merle e Korda já tinham se separado, mas o projeto se manteve ganhou corpo. O diretor Michael Powell insistiu que só trabalharia com bailarinos de verdade e com isso chegaram à desconhecida Moira Shearer, uma das solistas do Royal Ballet. Com o público pós-guerra ansiando por beleza e escapismo, Os Sapatinhos Vermelhos seria o veículo ideal para isso.
Usando o conto de Hans Christian Andersen de mesmo nome e que fala sobre obsessão e morte, a metáfora sobre a artista é narrada na história de uma companhia de dança comandada por um imperioso e cínico empresário que se prepara para apresentar o balé Os Sapatinhos Vermelhos. Todo gravado em Technicolor (incomum para época) com o vermelho aumentou o impacto dramático da história, quase uma personagem à parte, criando um efeito até hoje estudado nas faculdades de cinema. É um quadro filmado, uma sinfonia gravada e traz a dança clássica retratada com realismo. Vicky Page rapidamente vira a musa do compositor e do empresário, apaixonados por seu brilhantismo e paixão pela Arte. Porém, como alertava Andersen, quem calça os sapatinhos vermelhos dança até a morte.
Críticos e cineastas estudam a obra até hoje com fascínio e reverência. Ela é apontada como a primeira vez que o público entrou na mente de uma bailarina, com tomadas indiretas que são repetidas nos filmes de terror e copiadas assumidamente em Suspiria e Cisne Negro, esse último o filme que rendeu o Oscar para Natalie Portman praticamente vivendo uma versão atualizada de Vicky Page. Aliás, uma das cenas mais clássicas do filme de 1948 é justamente com O Lago dos Cisnes, quando em vez de mostrar a dança de forma estática, o diretor de fotografia Jack Cardiff alinha a câmera com os olhos de Moira Shearer em uma série de tomadas de ponto de vista estonteantes e giratórias, para ressaltar seu pânico de avistar o diretor da companhia na plateia. Mais tarde, ele repete as inversões, mesclando close-ups intensos e cortes entre realidade e fantasia. O filme é simplesmente lindo. Aliás, foi estudando ele que Scorcese criou as elogiadas cenas de luta de Touro Indomável.
A atemporalidade de Os Sapatinhos Vermelhos também está na trágica história da heroína, que é “obrigada a escolher” entre carreira e casamento, em ceder o estrelato ao marido, ao perder a saúde mental com a opressão de seus anseios e suas ambições. Há várias óticas muito além do balé para apreciar o filme. Por exemplo, eu sempre vi o final dele de uma maneira, mas, para Martin Scorcese é outra. Teria Vicky, em seu desespero e sob pressão, decidido se sacrificar para a dança ou teriam as sapatilhas tomado posse dela? Para ele o brilhantismo da cena final é justamente não esclarecer o que está acontecendo. E, 75 anos depois, nós ainda tentamos decifrar com ele.