Onde foi parar Angela Davis, a pantera negra mais famosa da história?
Caçada pelo FBI, mas amada pelos Beatles e Rolling Stones nos anos 70, a pantera negra Angela Davis não renega o passado conturbado nem deixa de lado velhos hábitos combativos
Ela adotou o penteado dos rebelados no Quênia e fez do penteado afro um símbolo do orgulho negro
Foto: Melloul/ Corbis/ Latinstock
Angela Davis é uma mulher muito digna, e também muito bonita, uma mulher de 70 anos. É professora de filosofia na Universidade de Santa Cruz, que fica entre São Francisco e Monterey, na Califórnia. Está tranquila. Ensina a seus estudantes as teorias de Karl Marx, Herbert Marcuse, Mikhail Bakunin. Quando substituímos o penteado comportado de hoje pelo black power, que se parece com uma formidável auréola negra no meio da qual estava encaixado um rosto bastante puro, então lembramo-nos de seu nome. Essa professora já idosa de Santa Cruz chama-se Angela Davis. Há 40 anos, ela foi uma das pessoas mais célebres do mundo. Uma das mais detestadas. Uma das mais admiradas.
Deus ou Diabo
O mundo se dilacerava em torno de Angela. Em Paris, 100 mil pessoas desfilavam na rua gritando seu nome, atrás de Jean-Paul Sartre e do poeta Louis Aragon. Na Inglaterra, os Beatles e os Stones entusiasmavam as multidões cantando “a pantera negra”. Na mesma época, nos Estados Unidos, o presidente Richard Nixon a amaldiçoava. Ronald Reagan, governador da Califórnia, tentou expulsá-la para sempre de qualquer universidade do estado. O chefe do FBI, Edgar J. Hoover, lançava suas tropas para caçá-la e jogá-la em uma prisão de isolamento absoluto. Essa era Angela Davis: um Diabo ou um Bom Deus. Hoje, quase meio século depois, ela não renegou nada. Está intacta.
Ela nasceu em 1944, em Birmingham, no Alabama. Não é um bom lugar para nascer quando se é negra. A América daquela época, pelo menos o sul, odiava os negros: rixas, linchamentos, Ku Klux Klan. Os pais de Angela faziam parte da pequena burguesia – o pai era professor de história na escola secundária, mas recebia tão pouco que pediu demissão para abrir um posto de gasolina; a mãe ensinava na escola primária. Eram comunistas. Moravam no bairro de Dynamite Hill. Por que esse nome? Os brancos não aceitavam que negros se instalassem próximos a eles. De tempos em tempos, as casas explodiam.
Aos 12 anos, Angela participa do boicote a um ônibus que praticava segregação. Dois anos mais tarde, graças a uma bolsa, ela vai para Nova York e continua seus estudos em um liceu de esquerda chamado Little Red School House. A moça é brilhante. Radicaliza-se. Entra na Universidade de San Diego, na Califórnia, e ali começa a militar contra a Guerra do Vietnã. Primeira prisão.
Mas é um pouco solitária. Mesmo nos movimentos negros não encontra seu lugar. Eram duas as tendências dominantes: uns sonhavam com revoltas negras hiperviolentas, como as de Watts ou as de Detroit. Do outro lado, Martin Luther King, personagem suave e brilhante, preferia “o integracionismo”. Angela rejeita as duas posições. A única saída que ela vê é o marxismo, a luta política cujo horizonte apenas o socialismo ilumina. Mas a maioria de seus amigos negros rejeita o marxismo, tido como “doutrina de homem branco”. Além do mais, ainda que Angela Davis seja marxista, ela não deseja aderir ao comunismo oficial.
Black Panther
Finalmente, ela adere ao Black Panther Party, organização revolucionária que rejeita tanto o integracionismo quanto o separatismo. Criado em 1966 por Bobby Seale e Huey P. Newton, dois estudantes de Oakland, era para ser pacífico. No início, se chamavam de “os pombos”. Mas o pombo, delicado e arrulhador, não estava dando certo. Influenciados por outro líder negro ilustre, Malcolm X, eles endurecem. Para responder com violência à violência dos brancos, adotam o símbolo da pantera negra.
Caçada
Em 1970, um pantera negra perigoso, George Jackson, estava encarcerado na prisão Soledad, na Califórnia, onde formava, com dois outros detentos, os “Irmãos de Soledad”. Eram acusados de matar um guarda penitenciário branco em retaliação à execução de outros três detentos negros. Em agosto daquele ano, na alegada luta para denunciar os maus-tratos a negros nos presídios americanos, o irmão de 17 anos de George, Jonathan, invadiu o tribunal de Marin County e tomou o juiz Harold Haley como refém. Há luta. Quatro são mortos, inclusive Jackson e Haley. A polícia examina a arma. O relatório acusa: o fuzil de cano cortado cuja bala atingiu a cabeça do juiz pertencia a Angela Davis.
Estupor. O diretor do FBI, Edgar Hoover, lança seus exércitos à procura de Angela e a inscreve na lista das dez pessoas mais procuradas nos Estados Unidos, a famosa Lost Wanted List. Ela foge. Por quê? “Teria sido morta”, diz ela hoje. Hoover manda prender centenas de mulheres que se parecem com ela. Sua foto está em todo lugar com a seguinte legenda de western: Armada e perigosa. Ela se disfarça. A polícia revista as comunidades negras. No sul do país, milhares de casas mostram este cartaz: Angela, nossa irmã, você é bem-vinda nesta casa. Mas o FBI tem mãos de ferro. Angela é presa em outubro em Nova York.
Reclusão
No exterior, um enorme movimento se ergue em seu favor, com as pessoas nas ruas. O poeta surrealista Jacques Prévert publica um texto belo com um choro: Angela em sua prisão escuta sem poder ouvi-las, e talvez sorrindo, as canções de seus irmãos de fé, de riso e de dor, e os refrões engraçados das crianças do gueto. Aqueles que enclausuram os outros sentem o enclausurado. Aqueles que estão enclausurados sentem a liberdade. (…) É preciso libertar Angela – enquanto não chega o dia em que serão condenadas todas as portas atrás das quais a vida negra está enclausurada.
Em Londres, Mick Jagger e Keith Richards cantam: Tem um doce anjo negro /Tem uma pin-up,/ Tem um doce anjo negro,/ Pregado na minha parede/ Bem, ela não é nenhuma cantora, ela não é nenhuma estrela/ Mas com certeza ela fala bem, com certeza ela se move rápido/ Mas essa garota está em perigo, ela está acorrentada (…) Não existe ninguém para libertá-la?/ Libertem a doce escrava negra/ Libertem a doce escrava negra.
Em Londres, outro canto é retomado por milhares de vozes. Este foi escrito por Yoko Ono: Irmã, você ainda é a professora do povo,/ Irmã, sua palavra chega longe/ Irmã, existem um milhão de raças diferentes,/ Mas todos nós dividiremos o mesmo futuro no mundo./ Eles te deram a luz do sol,/ Te deram o mar/ Te deram tudo menos a chave desta prisão,/ Sim, te deram café,/ Te deram chá/ Eles te deram tudo menos a igualdade.
Black is beautiful
Enquanto as multidões do mundo gritam seu nome, Angela permanece presa, em isolamento absoluto, durante 16 meses. “Eles queriam me quebrar, ela diria mais tarde. Me enlouquecer. Eu escrevi, refleti. Aprendi ioga nos livros. Vivi momentos muito duros, de angústia, de claustrofobia. E momentos de graça. Eu não podia desabar.” Em 5 de janeiro de 1971, ela é acusada de assassinato, sequestro e conspiração pelo caso Marin County. Em 1972, é absolvida e, mais livre que nunca, se torna uma celebridade mundial. Em toda parte, aparece a longa silhueta da combatente, seu rosto de porcelana, a imensa cabeleira afro. Black is beautiful.
Às vezes imaginamos que Angela inventou esse penteado. Nada disso. O penteado afro lhe foi dado pela história. Ele vem das colônias italianas do Quênia, quando os negros rebelados rejeitam o cabelo liso europeu e criam o estilo afro, que, mais tarde, dará a volta ao mundo como um símbolo de orgulho negro, com o pente afro acabando em black fist colocado nos cabelos.
A prisão, o terror, o isolamento não destruíram Angela. Ela martela sua pregação mantendo-se distante tanto dos comunistas, que ela acha “psicorrígidos”, quanto dos que defendiam o nacionalismo negro, com combates, criação de uma nação afro-americana ou mesmo a volta para a África.
Mulher e negra
A voz de Angela é quase única também por associar em uma mesma profecia a luta pela dignidade dos negros e a emancipação feminina. “Havia um machismo maciço, ela se lembra, tanto entre os comunistas quanto no nacionalismo negro. As mulheres não eram consideradas capazes de carregar a causa, de serem líderes.” Seria não conhecer bem Angela acreditar que ela iria se limitar, nas organizações negras, à tarefa de passar o pano no chão ou preparar a marmita dos senhores.
Então será que ela vai adotar o combate das feministas americanas da década de 70? Meu Deus! “Mas essas mulheres eram burguesas demais para mim. Elas eram brancas e lutavam pelo direito ao trabalho e ao aborto. Mas as negras já tinham uma profissão. Elas eram domésticas. Minha concepção do feminismo é a de uma emancipação que vai além das fronteiras estabelecidas. As questões de sexualidade, de raça, de classe e de gênero estão intimamente ligadas.”
E ela oferece esta bela fórmula: “Meu objetivo sempre foi encontrar pontos entre as ideias e derrubar os muros. E os muros derrubados se transformam em pontes”. Inimigo, o raivoso Louis Farrakhan, chefe da Nação do Islã que organizou a Marcha do 1 Milhão em 1995, acusou Angela de ser lésbica. Por isso não. Em 1997, na revista Out, ela declara: “Sim, sou lésbica”.
Longo caminho
A América mudou muito desde o tempo em que a menina de 12 anos boicotava um ônibus porque os negros não tinham o direito de andar ao lado dos brancos nos transportes públicos. Ângela reconhece os progressos. Em sua juventude, raros eram os negros no ensino superior. Hoje, eles são milhões. Mas a estrada é longa ainda, ela repete. Diante da observação de que uma coisa inacreditável aconteceu, a eleição de um negro para a Presidência dos Estados Unidos, ela modera o entusiasmo. “Hoje, ninguém na Casa Branca parece se preocupar com o fato de que 1 milhão de negros estão nas prisões americanas.”
É assim que fala a mulher de Santa Cruz, em uma universidade dessa Califórnia que Nixon e Reagan juraram lhe proibir para sempre. Ela ensina Kant e Hegel, Platão, Merleau-Ponty e Theodore Adorno, Herbert Marcuse. Ela não usa mais o cabelo afro. Às vezes ela tem dreadlocks, essas mechas misturadas que se formam sozinhas quando os cabelos crescem naturalmente ou quando são antes trançados. Ela está ali, tranquila, resoluta, intratável. Ela foi um momento trágico da história dos Estados Unidos. Ela permanece um momento da história do mundo.