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Diário De Uma Quarentener

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Juliana Borges é escritora, pisciana, antipunitivista, fã de Beyoncé, Miles Davis, Nina Simone e Rolling Stones. Quer ser antropóloga um dia. É autora do livro “Encarceramento em massa”, da Coleção Feminismos Plurais.

O que a gente come tem algo a ver com as pandemias?

No "Diário De Uma Quarentener", a escritora Juliana Borges faz uma reflexão sobre os impactos do consumo alimentar na transmissão de vírus

Por Da Redação
Atualizado em 7 abr 2020, 13h16 - Publicado em 6 abr 2020, 21h21
 (d3sign/Getty Images)
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Antes de mais nada, eu queria pactuar aqui com você que começarei a escrever aqui também aos finais de semana. Afinal, isso é um diário e a vida não para, mesmo em quarentena, porque é final de semana. E já digo que refleti bastante neste final de semana sobre essa pandemia. Por que será que estamos passando por ela? Por que as pandemias, epidemias estão ficando cada vez mais frequentes? Você pensa sobre isso também?

Há 15 anos, em 2005, tivemos o surto de gripe aviária; em 2009, a gripe suína, rebatizada como H1N1; 2014, ebola, como epidemia na Guiné; 2019/2020, Coronavírus. Muitas são as projeções e problematizações chiques realizadas sobre como pode ser nosso dia depois de amanhã da pandemia: taxação de grandes fortunas; fortalecimento ou reconstrução, como em alguns países, de sistemas públicos de saúde, fortalecimento do Estado, renovação do respeito à ciência, até como devemos repensar o “aquecimento global abstrato”. O que eu chamo aqui de “aquecimento global abstrato” passa longe dos negacionistas do efeito estufa. Acredito nele e nos vários alertas que ambientalistas e cientistas têm dado há anos sobre como a ação do homem de modo global, massivo e ofensivo traz a nós, natureza, impactos fatais. Digo, de natureza como todos nós, porque não acredito em uma divisão pretensa entre homem e natureza. Somos parte do planeta tanto quanto uma planta e estamos todos interconectados. A diferença, talvez, se dê no quanto nós fazemos de tudo para sustentar uma ideia de superioridade humana e de todo o esforço para destruir nossa casa. A história científica tem mostrado que o Planeta se transforma, mas segue firme. Quem nele habita é que corre sérios riscos de extinção.

Os danos que temos causado à nossa casa são inestimáveis e correm a passos largos para se tornarem irreversíveis. A questão é: esse processo acontece abstratamente? A emissão de gases é realizada apenas pelos transportes? Por que ninguém, ou poucos, fala dos efeitos do modelo de produção e consumo de alimentos em escala global no aquecimento global e, também, nas pandemias? Eu me tornei vegetariana há dois meses e pensar no quê como, na proveniência do que como, nos impactos do meu padrão de consumo alimentar tem sido uma constante. Mas, calma, eu não quero transformar você em vegetariana. Eu só quero que você reflita se, talvez, não seja o caso de diminuir o consumo de carne. Tá certo que alguns compas de vegetarianismo possam me achar uma louca em só falar em diminuição do consumo de carne. Mas eu acho que tudo começa de algum lugar, de algum jeito. O importante mesmo é a gente refletir sobre tudo isso. Porque muita gente está desejosa que nós voltemos ao que éramos antes logo. Mas eu não acredito nisso e acho equivocado. Você acha que como a gente estava antes estava bom? Certo, você podia sair, abraçar pessoas. Eu também sinto falta disso. Mas, os impactos de uma pandemia não se traduzem apenas no nosso sentir individual, certo? Topa que eu divida essa breve reflexão contigo?

Segundo um relatório, de 2013, da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), cerca de 70% das enfermidades que surgiram no mundo desde 1940 tiveram origem animal. Ou seja, há uma relação direta entre epidemias e manipulação de animais utilizados para alimentação. E mais, um relatório do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, divulgado em março deste ano, alertou para uma ascensão de doenças transmitidas pelos animais aos humanos por conta da destruição dos habitats de animais silvestres. Mas não se trata apenas de uma relação cada vez mais presente entre humanos e animais silvestres, que nos expõe a uma série de doenças ainda desconhecidas. A criação excessiva de animais criados para alimentação também é uma causa importante diante da disseminação e existência cada vez mais constante de epidemias e pandemias.

O vírus da gripe aviária, por exemplo, se alastrou a partir do consumo de frangos contaminados por vírus existentes nas fezes de animais da gaiola de cima, pelas condições a que estes animais são criados. E a ameaça de novo surto da gripe aviária é constante. Em 2016, a Alemanha abateu 55 mil aves por casos de gripe aviária. Em março deste ano, enquanto estamos enfrentando a pandemia do coronavírus, só as Filipinas abateram 12 mil aves por contaminação. No final de 2019, casos foram registrados na Eslováquia, Polônia, Hungria e República Tcheca, tendo como consequência 140 mil perus e galinhas sacrificados. Acalme-se. Ainda não há casos detectados de H5N6 em humanos a partir destes abates. Mas pensem nas condições às quais estes animais são criados para propiciar um nível tão alto de abates. Por conta da pandemia do coronavírus, o Comitê Permanente do 13o Congresso Nacional dos Povos, da China, que sempre foi reticente quanto a isso, começou a coibir o comércio e o consumo de animais silvestres. Mas os danos a nós não param por aí.

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Um dos principais emissores de gases que causam o aquecimento global é a cadeia produtiva de alimentos em escala global. A criação de animais para consumo é responsável pela ocupação de ¼ da superfície terrestre para pasto e 1/3 das terras aráveis para plantio de sementes que serão utilizados na pecuária. A produção de 1kg de carne emite mais gases do que dirigir por 3h de carro, ou seja, definir o que e como a gente come é mais impactante ao meio ambiente do que a escolha do automóvel que vamos usar, já que 18% da emissão de gases que causam o efeito estufa é lançado pela pecuária (dado também da FAO). Diversas pesquisas também têm apontado que diminuir, ou mesmo trocar, a carne por vegetais na nossa alimentação tem impacto direto no número de doenças cardíacas, câncer e doenças degenerativas. Essa melhoria de vida, segundo o modelo de Springmann (especialista em sustentabilidade ambiental, pela Universidade de Oxford), portanto, reduziria os gastos em saúde pública, por exemplo.

Alguns dos argumentos dos que contestam a relação direta entre a cadeia global de produção de alimentos, o aquecimento global e pandemias, ou seja, uma dieta onívora (na qual se come de tudo), é de que o impacto na emissão de gases não terá tanto efeito porque o aumento de consumo de carne será na Ásia, onde se consome mais carnes brancas (peixes, frangos, carne suína), que emitiram menos gases na atmosfera e consumiriam menos água para a sua produção. Mas, vamos falar destas carnes, então? Lembre que lá em cima eu falei de gripe aviária e H1N1, que não vieram de carne de vaca, por exemplo.

Vou ficar apenas no exemplo da criação suína para consumo. Uma das principais questões em torno da criação intensiva e confinada de suínos para consumo é se dá em torno do quê fazer com os dejetos destes animais e as consequências quando depositados no solo ou na água. Um suíno produz, em média, 7 litros de dejetos por dia. Seria preciso 5 pessoas para essa mesma produção de esgoto! Durante a lactação, essa produção de dejetos pode chegar a 27 litros! Os principais componentes destes dejetos são nitrogênio, fósforo e metais pesados (como zinco e cobre). O manejo indevido destes dejetos podem ter graves impactos no solo, na água e no ar. A poluição da água, por exemplo, pode causar riscos por microrganismos fecais patogênicos (leptospirose, febre aftosa, etc). Uma das principais formas pela qual estes dejetos são aplicados é para a fertilização. Mas esta forma também pode gerar riscos de poluição ambiental pela infiltração de nitrogênio no solo. Além disso, nas fezes de suínos há uma alta concentração de amônia, que pode provocar irritações nos olhos, narinas, na pele e distúrbios neurais variados.

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Olha só, não é o meu objetivo te deixar mais desesperada nessa quarentena. Mas da gente refletir sobre o nosso futuro. Lembra do ócio criativo de outro dia? Pois então. A gente não pode ficar pensando em “voltar” ao “normal”. Primeiro, porque novas doenças já indicam novos hábitos. Segundo, porque de que normal estamos falando? Se estamos pensando em tantas mudanças que percebemos serem necessárias para a gente lidar com crises globais como essa, na ação dos países, porque não discutimos e repensamos também nosso futuro e nossa existência no planeta? Uma pesquisa da multinacional Puratos, com 17 mil consumidores de todos os continentes, apresentou que 93% das pessoas afirmaram ler rótulos dos produtos e alimentos que consome. Mas apenas 38% se disse interessada pela origem dos ingredientes; e só 26% se mostrou preocupada com a sustentabilidade. Mas isso não tem a ver com a gente também?

Muitas pesquisas têm mostrado que as atuais geração não relacionam em nada os produtos que consome com a origem deles. Há crianças que pensam que o leite vem da caixinha, que o frango do jantar não se relaciona com um animal confinado em uma granja. Ou seja, a gente vive uma hiper alienação sobre o que consumimos. Não seria importante saber a real procedência do que você consome? Não seria importante garantir que a nossa saúde esteja acima do lucro de alguns?

Como eu disse no começo, não quero aqui falar que você tem que ser vegetariana. Mas que tal diminuir o consumo de carnes? Que tal começar a questionar porquê quando se fala em aquecimento global não se fala sobre como a gente consome comida? Eu ando pensando muito sobre isso e acho que é uma boa questão para que apontemos para o nosso futuro. O consumo de carne já diminuiu com o confinamento de muitos de nós. Mas eu também entendo que algo assim, sem nenhum planejamento, pode ser absorvido pelo debate dos impactos dos empregos. Algo como isso, também pede que a gente repense estes postos de trabalho e garanta outros em diversos e novos modelos de cadeia produtiva de grãos, legumes, verduras, frutas, etc. A ideia era te chamar para refletir sobre isso nestes tempos. E a gente ainda vai conversar bastante sobre isso. Topa?

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Juliana Borges é escritora, pisciana, antipunitivista, fã de Beyoncé, Miles Davis, Nina Simone e Rolling Stones. Quer ser antropóloga um dia. É autora do livro “Encarceramento em massa”, da Coleção Feminismos Plurais.

Acompanhe o “Diário De Uma Quarentener”:

01/04 – A rotina do isolamento de Juliana Borges no “Diário De Uma Quarentener”

02/04 – O manual de sobrevivência de uma quarentener

03/04 – Permita-se viver “o nada” na quarentena sem culpa

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